Texto publicado no jornal Público a 4 de Junho de 2013
Crónica 21/2013
O Estado é sempre apresentado como um buraco sem fundo, que tudo destrói, tudo queima e nada produz
“Os trabalhadores portugueses vão precisar de trabalhar este ano até ao dia 4 de Junho só para pagar impostos”. A notícia invadiu há uns dias todos os meios de comunicação social portugueses, das rádios às televisões e dos jornais aos sites da Internet, com honras de primetime e de manchete. A redacção quase idêntica de todos os textos revelava a eficácia da operação de comunicação que difundiu as conclusões de um estudo, "The tax burden of typical workers in the EU 27" ("O fardo fiscal dos trabalhadores médios na Europa a 27"), realizado pela organização New Direction - Fundação para a Reforma Europeia. As notícias não identificavam a orientação ideológica do think tank, mas o seu site identifica-o como uma organização “euro-realista” e “defensora do mercado livre”, criada em 2010 em Bruxelas e filiada na Aliança dos Conservadores e Reformistas Europeus, um grupo da direita ultraliberal. Mais revelador: a patrona do grupo é a baronesa Thatcher e a capa do estudo é ocupada por uma fotografia de uma grilheta, com a sua corrente e a respectiva bola de ferro. O símbolo dos impostos, claro.
O teor e o tom das notícias é idêntico: o estudo é apresentado como um trabalho científico; a organização que o produziu como “um think tank” ou “um grupo de reflexão”, a imagem da objectividade e do rigor; as suas conclusões como objectivas. A inflexão dos pivots da televisão é sempre grave: os portugueses tiveram de trabalhar em 2011 até 29 de Maio para pagar os seus impostos, em 2012 até 3 de Junho e este ano terão de trabalhar mais um dia para chegar ao "Dia da Libertação de Impostos" - a expressão usada no relatório e que as notícias repetem. Só depois desse dia começam a trabalhar “para si”.
Para quem estarão a trabalhar antes disso, se não é para si? O estudo explica: para o monstro do Estado, que lhes come os rendimentos, para quem havia de ser? Para funcionários públicos parasitas que não fazem nada e que é bem feito que sejam depedidos aos milhares. Para aquele buraco sem fundo, que tudo destrói, tudo queima, que nada produz, sem o qual a vida dos trabalhadores seria um paraíso. Onde é gasto esse dinheiro pelo Estado? Será que o Estado, com esse dinheiro, produz bens e serviços que são disponibilizados aos cidadãos? Será que o Estado, com esse dinheiro, paga centros de saúde, hospitais, escolas, universidades, laboratórios de investigação, vacinas, bibliotecas públicas, estradas e esgotos, tribunais e polícia? As notícias não dizem. Como não dizem que um alto nível de impostos pode significar uma elevada qualidade dos serviços fornecidos pelo Estado ou um Estado mal gerido. O que se consegue perceber pelas notícias é que cada vez se paga mais para o Estado e que isso é mau. O que as notícias não explicam é por que razão os países onde o nível de vida é mais elevado e onde há maior bem-estar, a Finlândia, a Holanda, a Alemanha, ainda se paga muito mais impostos. O que importa é dizer que em todos os países se paga demais. Muito, muito mais do que se devia pagar.
E porque se paga cada vez mais ao Estado em Portugal? Será que isso se deve ao facto de o Estado oferecer aos seus cidadãos cada vez mais e melhores serviços? Ao facto de os serviços do Estado serem cada vez mais inclusivos e terem uma cobertura geográfica cada vez mais alargada? Ou ao facto de a política de austeridade estar a destruir a economia e estar a canalizar para o pagamento de juros agiotas cada vez mais recursos dos cidadãos? O estudo não diz, as notícias não dizem. Aliás: austeridade é uma palavra que não aparece no relatório do think-tank. A sugestão é que o Estado gasta cada vez mais porque é mau.
O que temos é o pior dos mundos: o Governo começa por roubar os contribuintes para pagar juros aos seus amigos financeiros e difama em seguida o Estado-gastador, através de instrumentos como este think tank, acusando-o de malbaratar dinheiro em sistemas de protecção social de luxo insustentáveis. De uma cajadada, três coelhos: reduzem-se os trabalhadores à miséria e à submissão, enriquecem-se os amigos ricos e reúnem-se argumentos para destruir o Estado Social, para alienar património público e para transferir os bons negócios da saúde e da educação para as empresas privadas.
O tratamento da notícia é típico das notícias de economia. Explicita ou implicitamente, o pano de fundo das notícias que os noticiários de televisão e os artigos de jornal nos fornecem é uma ideologia ultraliberal que considera o papel do Estado na economia e na sociedade em geral sempre excessivo, que considera a protecção dos trabalhadores sempre perniciosa e contrária ao interesse da economia, os impostos pagos ao estado sempre injustificados, o mercado desregulado como o maior dos bens, a “flexibilização das relações de trabalho” como algo cuja bondade está estabelecida cientificamente. Pouco importa que tudo isso seja cientificamente falso ou eticamente abjecto ou ambas as coisas. (jvmalheiros@gmail.com)
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