terça-feira, julho 23, 2013

Temos dinheiro para pagar os juros, mas não sobra para uma democracia

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 23 de Julho de 2013
Crónica 28/2013



Lembram-se daquela página dos primeiros tempos da Internet chamada "The End of the Internet"? Se procurarem agora no Google, há imensas e há até um site com esse nome onde se vendem T-shirts, mas esta era a primeira e a verdadeira, a única "The End of the Internet". Era uma página branca, com umas linhas de texto que diziam: "This is the end of the Internet. There are no more links. You can turn off your computer."

A política portuguesa parece-se cada vez mais com esta página. "There are no more links."

A política é, necessariamente, algo que nos deveria conseguir levar daqui para ali. Deveria ser a arte de nos oferecer diferentes links a clicar e de nos levar para onde queremos ir, a arte de escolher os links sem nos obrigar a desviar demasiado dos nossos interesses colectivos, tornando possível o que é desejável e fornecendo-nos ideias para desejarmos cada vez melhor.

Em vez disso, encontramo-nos num beco de onde ninguém parece ter a mínima ideia de como se sai e de onde os principais actores políticos não parecem sequer ter interesse em sair. Como uma caravela em calmaria, esperam que o vento se levante de novo e os leve algures, seja onde for, mesmo que seja para o naufrágio.

Como se dizia há anos a respeito do Brasil, o problema não é que Portugal esteja a atravessar uma crise. O problema é que não está a atravessar a crise, está parado no meio da crise. E o que é ainda pior é que a crise não está parada. Ela aprofunda-se, levando cada vez mais pessoas para o fundo, para o desemprego, a miséria e o desespero.

Porque é que as coisas até nem parecem estar pior? Porque os pobres não aparecem no telejornal, a não ser que seja para gritar no meio da rua quando há um acidente, um incêndio, um tiroteio. Os desempregados também não, a não ser que seja para ilustrar a estatística do INE, filmados à porta do centro de emprego, a dizer que "isto está mau". E a esquerda que está à esquerda do centro do PS também não, a não ser nos anos bissextos. Quantas pessoas explicam na televisão que a dívida não é pagável, como o sabemos todos? Quantas pessoas explicam na televisão que a recusa dos cortes de 4700 milhões é uma questão de mero bom senso e que Passos Coelho e a troikadevem estar loucos para insistir neles? Por que razão continuam os media (e as televisões em particular) a participar nesta enorme operação de ocultamento?

A descrição do país continua a ser feita nas mesas-redondas da televisão, nos comentários dos comentaristas, nos discursos dos ministros e dos dirigentes partidários do arco da governação, seguidos em matilha por uma pequena floresta de microfones. Será que um dia aqueles jornalistas todos, que repetem as mesmíssimas palavras dos ministros, que falam de "requalificação" em vez de despedimentos na função pública, de "reformas estruturais" em vez de cortes no Estado social, de "ajustamento" em vez de empobrecimento, do arco da governação como se fosse um artigo da Constituição, será que um dia todos estes jornalistas vão fazer dos tripés coração?

A função dos jornalistas não é repetir as declarações dos políticos. A função do jornalismo é produzir democracia. Porque a democracia é o regime das escolhas e a função do jornalismo é identificar opções, esclarecê-las, confrontá-las e colocá-las em discussão. Há demasiada retórica por explicar na política portuguesa, demasiada língua de trapos repetida por jornalistas, demasiadas perguntas por responder, demasiados discursos sem perguntas, demasiado respeito perante um poder que não respeita leis nem direitos.

Ao contrário do que se diz, não estamos em crise há três semanas por causa das demissões no Governo, nem há nove meses por causa das divisões no Governo. Estamos numa crise política profunda porque o Governo não sabe o que faz e vai continuar a fazer o que não sabe até ao fim, custe o custar, até à miséria final. Como se pagarão os juros em 2014? E em 2015? E por aí fora? Ninguém sabe. Mas pagar-se-ão custe o que custar. Mesmo que isso nos custe a vida, a democracia, o país. Afundamo-nos, mas pagamos primeiro os juros. Só depois as mulheres e as crianças. Como se governa assim? Segue-se o script que a troika escreveu e repete-se sempre a mesma coisa à frente do microfone com ar sério.

E a democracia? A soberania não reside no povo? O povo podia desempatar isto. Quando vai o povo escolher? O mais tarde possível. A democracia, já explicaram Cavaco Silva e Passos Coelho, é muito cara. As eleições fariam subir os juros, dariam uma ideia de instabilidade, obrigariam a um segundo "resgate". Só caloteiros é que fazem eleições, gente inconsciente, sem a noção do poder dos mercados. Um novo governo assustaria os credores. Para comprar uma democracia ficávamos sem dinheiro para pagar pensões. Não temos dinheiro para comprar mais democracia. Temos de ficar com esta democracia de plástico comprada na loja chinesa, com este manequim que faz de primeiro-ministro, com esta marioneta que faz de Presidente, com esta boneca de trapos que faz de oposição, com estes pés-de-microfone que fazem de jornalistas. (jvmalheiros@gmail.com)

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