Comunicação apresentada por José Vítor Malheiros no Colóquio Internacional "Manipulação e persuasão - Discursos e Práticas"
UBI-Universidade da Beira Interior - Museu dos Lanifícios - 20-21 Novembro 2014
Resumo
Os media descrevem e (nos melhores casos), comentam, analisam e criticam a realidade. Esse trabalho de descrição (notícia, entrevista, reportagem), de comentário, análise e crítica constitui um discurso que não é criado de raiz, fruto do desejo ou da imaginação do seu autor, mas usa como matéria-prima um corpus lexical e um conjunto de proposições que são criados pelos principais agentes dos vários acontecimentos que são matéria mediática. Essa limitação constitui um molde ideológico do qual os media, por boas e más razões, têm uma enorme dificuldade em se descolar. Essa descolagem constitui, porém, um imperativo para o jornalismo se este pretende servir a liberdade e a democracia através do alargamento das escolhas sociais disponíveis para os cidadãos e não perpetuar situações de tutela ou de totalitarismo.
Texto
A ficção e a poesia nascem da cabeça dos seus autores.
O jornalismo não.
Os jornalistas não produzem os textos que escrevem a partir da sua imaginação.
O jornalismo não só tem o dever de descrever o real mas tem o dever de dar voz às pessoas. As histórias que o jornalismo conta, são contadas por outras pessoas. O jornalismo selecciona as histórias que conta, escolhe a forma como as conta e escolhe as pessoas que usa como fonte de informação, mas baseia-se sempre em "fontes".
Os jornalistas recolhem informação através de testemunho directo, através dos seus olhos e dos seus ouvidos, como acontece no caso das reportagens, mas, na esmagadora maioria dos casos, as informações que recolhem e que usam para produzir os seus textos são constituídas por depoimentos de pessoas ou fontes documentais.
Um texto de jornal ou uma peça de rádio ou televisão é sempre o resultado final de um trabalho em cadeia que começa com uma informação primária que vai sendo trabalhada por sucessivas vagas de pessoas e que vai sendo enriquecida com informação de outros afluentes.
Uma das preocupações do jornalista durante o manuseamento da informação que pesquisa, que solicita a outrem ou que lhe é enviada sem que ele a solicite é o RIGOR.
Há quem lhe chame ainda “objectividade”, apesar do debate sobre a inexistência da objectividade, e é evidente que se trata de uma preocupação com a "verdade", mas é mais adequado chamarmos-lhe aqui rigor. Rigor no sentido de “exactidão” e de “disciplina”.
Em que consiste este rigor na prática? No cuidado em não corromper a informação primária, em não se afastar dos testemunhos recolhidos e dos textos consultados, em não desvirtuar a informação transmitida pelas fontes.
No jornalismo as fontes são preciosas. Um dos aforismos do jornalismo que todos os jornalistas conhecem é “Não se faz jornalismo sem fontes”.
Só que há um problema, que todos os jornalistas também conhecem bem e ao qual corresponde outro aforismo: “Não há fontes desinteressadas”.
As fontes são sempre parte interessada. Não há fontes puras, inocentes, sem história e sem desejo. As fontes possuem perspectivas próprias, valores próprios, interesses próprios (muitas vezes legítimos, outras vezes menos legítimos) e todas elas (quer se trate de pessoas ou de documentos) tentam convencer os seus interlocutores da bondade das suas teses.
Como se evita o enviesamento da informação devido à parcialidade das fontes?
A principal solução consiste em diversificar as fontes. Por isso se tenta confirmar informação em duas ou mais fontes independentes, para estabelecer “os factos”, para saber “o que aconteceu”, para encontrar “a verdade”. Se houver coincidência nos relatos de duas ou mais fontes independentes, podemos ter um razoável grau de confiança na descrição.
Mas quando se trata de um facto que possui uma única fonte primária? Quando se trata de uma decisão do Governo, que consta de um documento oficial? Quando se trata de uma opinião emitida por uma pessoa, de um discurso, de uma proposta da organização X ou do partido Y? Quando se trata da declaração de greve de um sindicato ou de um alerta da Protecção Civil ou de um aviso do Banco de Portugal? Nestes casos é evidente que há uma e uma só fonte primária. Não há volta a dar. Sempre que se trata de uma decisão, de um anúncio, de uma declaração, da resposta de uma qualquer instituição, de um qualquer poder, basta ter acesso à fonte primária para termos toda a informação. É claro que se podem pedir comentários, críticas ou análises a outrem mas, no que diz respeito à notícia em si, há uma única fonte primária.
E mais: qualquer desvio da fonte primária pode ser lida como um desvirtuamento da informação, uma manipulação indevida, talvez mal-intencionada, um atrevimento.
Em nome do rigor e do não-enviesamento da informação, o jornalista irá provavelmente repetir ipsis verbis o que diz o comunicado, a intervenção parlamentar, a proposta de lei, o entrevistado.
É assim que o discurso do entrevistado, o léxico do documento, a sua estrutura, a sua argumentação lógica, a sua filosofia implícita, os seus valores, vão sendo insensivelmente transpostos para o texto jornalístico.
E é assim que a própria preocupação de rigor, de objectividade, de não comentar, de não dar opinião, de não editorializar, se tornam o principal instrumento do imperialismo lexical e proposicional do poder, dos poderes, um instrumento de propaganda que apenas repete, nos mesmo termos e sem comentários, o discurso do poder, a narrativa do poder.
Há quem pense que isso acontece porque todos ou a maior parte dos jornalistas são de direita. Ou porque foram comprados para repetir o que diz a voz do dono. Ou porque têm medo de exprimir uma opinião divergente. Mas não é preciso procurar tão longe uma explicação. Existem, na própria lógica de produção do jornalismo, mecanismos perversos que facilitam a reprodução da narrativa dominante.
É evidente que a prática jornalística que se refere acima não faz parte das "boas práticas" e existem, nas boas práticas, preceitos e exemplos que permitem evitá-la e fazer diferente. Outros aforismos usados na profissão dizem "o jornalista não é um mensageiro" ou "o jornalista não é um pé de microfone" - para sublinhar que o jornalista não pode limitar-se a registar e repetir o que lhe é dito. O que significa que é possível e desejável fazer de outra forma. Mas é mais difícil fazer de outra forma. E mais arriscado.
É possível fazer mal sem ofender de forma frontal as regras básicas da profissão (repetir um discurso sem a mínima nota crítica) e é muito fácil expor-se a críticas quando se faz bem. Porque fazer bem significa explicar conceitos, desmontar argumentações, apontar ambiguidades, considerar contextos, lembrar antecedentes, denunciar eufemismos, encontrar contradições.
Dizer "O ministro garantiu que não haverá despedimentos e que os 697 funcionários da Segurança Social passarão para o regime de requalificação" pode ser formalmente rigoroso, mas é uma mentira. Uma enorme mentira. Mas dizer que serão despedidos também não é absolutamente verdadeiro. Pelo menos não é juridicamente verdadeiro. A verdade encontra-se algures entre as duas formulações. Os funcionários são colocados num limbo onde lhes reduzem drástica e progressivamente os salários, mas esse limbo não tem um nome além do seu nome no léxico da propaganda: "requalificação". E, quando o jornalista fala deste limbo, para que não haja ambiguidade sobre aquilo de que está a falar, para que se perceba que se trata desta situação precisa e não de qualquer outra, é obrigado a usar o eufemismo ambíguo criado pelo poder. Para evitar a ambiguidade no discurso jornalístico, impõe e credibiliza a ambiguidade do discurso do poder.
A situação é particularmente grave porque este discurso dos poderes não tem uma contrapartida por parte dos não-poderes, dos desvalidos, dos pobres, dos desempregados, dos doentes, dos pensionistas, dos velhos, do "homem da rua". E não tem essa contrapartida porque os não-poderes não existem de forma organizada, institucionalizada. Os não-poderes não tem porta-vozes nem documentos pré-formatados, não emitem comunicados nem fazem discursos. Os sem-abrigo não têm porta-voz. O discurso dos não-poderes não existe já feito, tem de ser fabricado laboriosamente desde o início pelo jornalista, peça a peça, palavra por palavra, com o risco de que tem de o construir a partir de contribuições não-legitimadas institucionalmente.
Os trabalhadores sindicalizados são representados por um sindicato, os trabalhados não sindicalizados podem ser representados por uma central sindical, mas quem representa os desempregados, quem pode falar em seu nome? Um jornalista que tente "dar voz a quem não tem voz" (outro aforismo querido da profissão) só pode citar declarações pessoais, narrar casos anedóticos, nunca formalmente representativos, que desaparecem num mar de faits-divers de faca e alguidar. São apenas mais umas quantas histórias "de interesse humano", a somar-se às das telenovelas. Nada para ser levado muito a sério. O poder, esse, tem sempre representação e uma representação formal e legítima. O poder pode sempre ser citado.
O desequilíbrio na autoridade aparente destes discursos é abissal.
Os poderes, para mais, falam muito. Não há poder calado. Há todos os dias declarações de empresas, de partidos, de ministros, de comentadores, de bancos, de polícias, de entidades reguladoras, de organismos comunitários suficientes para encher 24 horas de notícias com as imagens convenientes.
Mas, apesar de tudo, se os jornalistas não são coniventes em massa com este estado de coisas, porque não mudam a forma como fazem a cobertura da actualidade? Porque não chamam despedimentos às "dispensas" de trabalhadores e à "libertação" de funcionários públicos, porque não chamam empréstimo ao "resgate", porque não chamam trabalhadores aos "colaboradores", porque não dizem "facilitar despedimentos" em vez de "flexibilizar o emprego" ou de "agilizar licenciamentos", porque não dizem "empobrecimento" em vez de austeridade, porque não dizem CDS, PSD e PS em vez de “arco da governabilidade” ou “arco da governação”? Porque não dizem cortes em vez de "poupanças"?
A razão principal é o processo de proletarização e de precarização a que os jornalistas têm sido submetidos e o processo de pauperização das redacções. Não porque isso tenha aumentado a sua precariedade ou o seu medo, mas porque isso alterou de forma radical a forma de produção do jornalismo.
Por razões que não cabe aqui analisar, as redacções sofreram cortes profundos que reduziram o número de jornalistas e de outros trabalhadores e que reduziram os seus recursos em geral. E o trabalho de jornalista, que tinha sido durante um século um labor intelectual, transformou-se numa actividade industrial, sujeita às exigências da "eficiência", da "produtividade", da "optimização", da "redução de custos" de qualquer outra actividade industrial.
O jornalismo obedece hoje, na esmagadora maioria das redações (há excepções) a regras características do modo de produção industrial.
Isto significa que o consumo de recursos (tempo, deslocações, número de fontes consultadas, tempo dedicado a cada fonte, tempo dedicado a confirmar informações, a procurar contraditório) foi reduzido ao mínimo. E significa que são privilegiadas as notícias que sejam mais fáceis e mais baratas de fazer. A consequência é que aqueles critérios-notícia que nos habituámos a considerar como decisivos (a actualidade, a novidade, a relevância, o impacto, etc.) foram suplantados por outro critério: o custo.
O que significa que a disponibilidade passou a ser o bem mais prezado pelos jornalistas.
Que disponibilidade? A disponibilidade de imagens e fontes passíveis de ser usadas num texto, a disponibilidade de explicações e citações, à mão de semear, prontas a usar.
Há um fenómeno que dá pelo nome de "availability bias", que os psicólogos conhecem bem, que significa que todos temos uma tendência para recorrer à explicação mais disponível, mais familiar, para criar uma narrativa que dê sentido ao nosso mundo. A actual situação dos jornalistas reforça de uma forma extrema esse "availability bias". A explicação mais disponível será sempre a mais usada pelos jornalistas. Porque não há tempo a perder. É a "optimização" da produção das notícias.
E o poder, todos os poderes, sabem isto e investem meios consideráveis para criar e disponibilizar explicações prontas-a-usar para que os jornalistas as utilizem. Conceitos sintéticos, ágeis e cheirando a moderno. "Requalificação", "sair da zona de conforto", "compressão das despesas", "corte nas gorduras". Explicações devidamente formatadas, concisas e elegantes, como os jornalistas gostam, como os jornalistas precisam. "Vivemos acima das nossas possibilidades, agora chegou a hora de pagar." "Não podemos pagar o Estado Social. Se fôssemos ricos podíamos, mas não somos." "O Estado não tem vocação para gerir empresas".
Ou mesmo outras formulações mais brutais, que servem de subtexto a muitas das formulações dos media. "Os desempregados não encontram emprego porque são preguiçosos". "Os trabalhadores velhos estão a roubar os empregos aos desempregados jovens". "Só os parasitas é que vivem de subsídios". Etc. , etc.. Explicações simples, que toda a gente percebe, que vão buscar alimento nos nossos preconceitos, na nossa raiva, na nossa ignorância.
É assim se reproduz um discurso, sempre simplificado, sempre eufemístico e melífluo, secretamente repressivo, que distribui culpas e méritos segundo os interesses do poder. Assim se reproduz o discurso do poder. Que os media amplificam e impõem no discurso social, no nosso discurso. Às tantas, todos falamos como o poder. E até os sindicatos falam de "mobilidade" e "qualificação" quando querem dizer despedimentos.
É possível mudar este estado de coisas? Penso que sim. Existem aliás ainda muito bons exemplos de excelente jornalismo, de verdadeiro jornalismo, como provou recentemente a história dos acordos fiscais secretos no Luxemburgo, publicado pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação.
Precisamos, antes de mais, de leitores e espectadores mais exigentes, que exijam saber o que se passa e não apenas o que os poderes dizem. Precisamos de exigir aos jornalistas que fiscalizem de facto os actos do poder em vez de os descrever e que fiscalizem as suas declarações em vez de as repetir. Precisamos de contraditório mas não o contraditório do "este diz isto e aquele diz aquilo", nem o contraditório do "o Governo diz isto e a oposição diz aquilo" (ou melhor: "o Governo diz isto e o maior partido da oposição diz aquilo"). Precisamos de verificar os factos, de "fact checking".
Precisamos de contrapor às declarações do poder, a realidade. O jornalismo não tem como função ser uma caixa de ressonância do poder. O jornalismo tem de descrever o mundo, de fiscalizar os poderes e de mostrar aos cidadãos quais são as escolhas possíveis.
O jornalismo tem como dever descrever o mundo, mas não para nos divertir ou distrair. O entretenimento é uma função nobre, mas não é a função do jornalismo. O jornalismo tem como função descrever o mundo, contar o que se passa e o que se diz, apresentar-nos coisas e pessoas, para nos permitir agir como cidadãos. O jornalismo fornece-nos informação, opinião e debate para nos permitir criar uma opinião que possa sustentar a nossa acção. A função do jornalismo é alargar o leque de escolhas dos cidadãos e mostrar as consequências de cada uma de forma a permitir escolhas informadas. É esse o ethos do jornalismo. O problema é que, na maior parte dos casos, não o está a fazer.
Ao contrário do marketing e da publicidade, que tentam conquistar "share of mind" para os seus produtos, impor-nos determinados comportamentos e reduzir o nosso leque de escolhas, o jornalismo tem o dever de alargar as opções que temos à nossa frente. Identificando essas opções, trazendo-as para a luz ou desenterrando-as, de forma a mostrar-nos tudo o que é possível. A função do jornalismo é tornar evidente essa diversidade de escolhas a que chamamos democracia. E não matraquear-nos com a cassete do poder, com os chavões da inevitabilidade e da impossibilidade da escolha.
A função do jornalismo é produzir democracia porque a democracia é o regime das escolhas e não é possível fazer escolhas livres e informadas sem jornalismo.
É uma nobre função que os jornalistas têm de assumir com responsabilidade e correndo os riscos necessários.
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