por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Novembro de 2014
Crónica 51/2014
A convergência não exige identidade entre as organizações, mas apenas a partilha de alguns princípios essenciais.
Um dos tópicos em foco quando se comenta o panorama partidário que vai servir de pano de fundo às próximas eleições legislativas é o da “fragmentação da esquerda”. O uso da expressão tem diferentes objectivos conforme quem a profere. Para a direita, a “fragmentação da esquerda” é um slogan que visa difundir a ideia — não totalmente falsa — de que a esquerda é uma família de irmãos desavindos, incapazes de entendimento e compromisso, e que, por isso, qualquer solução governativa que tenha como base “a esquerda” é, por natureza, instável e não merece a confiança dos eleitores. Este discurso visa, acima de tudo, pressionar o PS, em caso de maioria relativa, a fazer a aliança à direita, que muitos acham natural, e tirar-lhe da ideia qualquer veleidade de entendimento à esquerda.
Para a esquerda, a “fragmentação de esquerda” tem, inevitavelmente et pour cause, significados diferentes conforme a área da esquerda que usa a expressão.
É evidente que falar de “fragmentação da esquerda” em geral não tem o mínimo sentido. O PCP não dá quaisquer sinais de fragmentação e, pelo contrário, evidenciou um crescimento considerável nas últimas eleições europeias, e o PS (pelo meio do qual passa o meridiano que separa a esquerda da direita), depois da sua última semivitória, parece lançado numa dinâmica de crescimento. Há todas as razões para pensar que, apesar da persistente ambiguidade de António Costa, o PS vai apresentar nas eleições uma subida considerável. Assim, quando se fala de “fragmentação da esquerda”, aquilo de que falamos é, de facto, da fragmentação do Bloco de Esquerda, real e não imaginada, e dos grupos, mais ou menos partidários, recentes ou não, com ligações ao BE ou não, que existem entre o PS e o PCP.
A fragmentação “desta esquerda entre o PS e o PCP” é, apesar de tudo, motivo de preocupação para o PS e o PCP, já que é possível que um ou outro grupo nessa terra-de-ninguém entre os dois partidos capte eleitores de esquerda que “votavam útil” num ou noutro partido mas que não eram apoiantes de nenhum deles.
Por estas ou outras razões, existem muitas vozes à esquerda que criticam a “fragmentação da esquerda” — e que criticam com particular veemência as organizações de esquerda nascidas de alguma cisão mas que defendem a convergência — com críticas do tipo “dizem que querem unir mas só dividem”.
Há em tudo isto alguma confusão. De facto, as organizações de esquerda que têm manifestado uma posição de defesa e tentativa de construção de uma convergência de esquerda (como o partido Livre, nascido do desentendimento de Rui Tavares com o Bloco de Esquerda; o Fórum Manifesto, movimento que se desvinculou do Bloco de Esquerda; ou a Renovação Comunista, que nasceu de uma dissidência do Partido Comunista) nunca defenderam nada parecido com um partido único à esquerda. Pelo contrário.
As divergências existentes entre estas organizações e os partidos onde nasceram são divergências políticas reais e seria ingénuo defender que elas não deveriam ter acontecido. Aconteceram porque, a partir de um determinado momento, foi impossível para algumas pessoas continuar dentro de uma dada organização. Um partido não deve ser o mínimo denominador comum dos seus membros nem uma massa amorfa que tropeça em todos os sentidos sem avançar para nenhum. As pessoas que saíram de organizações onde militaram têm o direito de o fazer e têm o direito de criar novas organizações. E que estas organizações defendam uma convergência à esquerda não tem nada de contraditório.
A convergência, o compromisso, a criação de uma plataforma comum ou de uma frente comum são acções que não exigem identidade entre as organizações mas apenas a partilha de alguns princípios essenciais. O entendimento é possível e necessário entre o que é diferente, com a manutenção de identidades diferentes entre organizações que cooperam, desde que possuam um entendimento estratégico e táctico compatível. A ideia de que todos os militantes de esquerda devem ficar nas suas organizações e mudá-las por dentro, para evitar a sua fragmentação, pode dar origem ao saco de gatos a que chamamos Bloco de Esquerda, cuja orientação futura é tudo menos clara para os seus próprios apoiantes. A criação de novas organizações tem a vantagem, preciosa, de clarificar as escolhas, de tornar transparentes as diferenças — ao mesmo tempo que mostram que as diferenças não são impeditivas da luta por um objectivo comum.
Vivemos um momento pantanoso no panorama partidário, onde ninguém consegue dizer qual é a diferença entre o CDS e o PSD, onde ninguém sabe qual é a sociedade ideal que o PS defende, onde ninguém sabe o que o Bloco de Esquerda pretende e onde ninguém sabe se o PCP gostaria de participar no governo do país. A clarificação destas questões é fundamental para que os cidadãos não continuem a alhear-se das escolhas políticas. E a criação de novas organizações, capazes de se apresentar de forma clara ao eleitorado e de ajudar a clarificação das escolhas políticas, é positiva.
jvmalheiros@gmail.com
Crónica no Público: http://www.publico.pt/politica/noticia/pela-convergencia-de-uma-esquerda-plural-1676550
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