terça-feira, novembro 04, 2014

Quantas vezes vamos ter de dar para este peditório?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 4 de Novembro de 2014
Crónica 49/2014


O peditório deste ano da Liga Portuguesa Contra o Cancro terminou ontem e teve direito, como sempre, a uma extensa e benevolente cobertura dos media, oscilando entre o encómio e a propaganda, louvando a organização e os seus voluntários e incentivando os donativos.

Qual é o problema? O que pode ser mais nobre do que contribuir para combater o cancro, fonte de tanto sofrimento de tantas pessoas?

De facto, os objectivos enunciados pela LPCC são nobres e os voluntários que dedicam horas ou dias de trabalho ao peditório são certamente abnegados e animados pelas melhores intenções. Mas vale a pena olhar para além das intenções.

As pessoas que fazem donativos fazem-nos porque esperam, como a LPCC diz, que este dinheiro vá servir para financiar programas de educação para a saúde, acções de detecção precoce do cancro, apoio à formação de técnicos de saúde e investigação em oncologia. Qual é o problema? O problema é que, cada um destes objectivos constitui um dever do Estado, que o Estado assume perante todos os cidadãos e que justifica os impostos que todos pagamos precisamente para esses fins. Não vejo nenhuma justificação para que uma organização privada faça uma recolha de fundos, junto de uma estreita camada da população (são as classes mais modestas quem mais contribui para a LPCC), para ajudar o Estado a levar a cabo tarefas que fazem parte da sua tarefa central (educação, saúde, prevenção de doença, investigação) e menos ainda me parece aceitável que essa recolha de fundos constitua uma campanha de propaganda para a necessidade de a “sociedade civil” se envolver no financiamento dessas actividades para além da sua contribuição fiscal. A “sociedade civil” já se envolve no financiamento dessas actividades (melhor: financia integralmente essas actividades) através dos impostos que paga e apenas deve exigir que o Estado recolha esses impostos de forma eficaz e justa, através de taxas progressivas, e que distribua os fundos segundo as prioridades e necessidades.

Há quem argumente que “o Estado não pode fazer tudo e precisa da ajuda dos cidadãos” e que, por isso, acções como o peditório da LPCC são essenciais. É fácil ver que isso é falso.

O peditório da LPCC, por muito bem sucedido que seja, constitui um ínfima gota de água no oceano de necessidades e de despesas realizadas pelo Estado neste domínio. Ele serve, de facto, quer isso seja ou não do agrado da LPCC, apenas um objectivo político: a crescente desresponsabilização do Estado nas tarefas essenciais da saúde.

É falso que peditórios como o da LPCC sejam essenciais para financiar aquelas actividades. O Estado possui, aqui e agora, recursos financeiros mais do que suficientes para cumprir todos os seus deveres, como prova o dinheiro que se esbanja em privatizações, PPP, swaps, BPN, BES e quejandos, onde pagamos sem pestanejar rios de dinheiro sem benefícios para o Estado apenas porque os beneficiários são banqueiros e empresários e o PSD e CDS consideram normal que os ricos fiquem cada vez mais ricos à custa do erário público.

Mais: se acontecesse que a colecta fiscal não fosse suficiente para financiar a educação e a investigação, seria fácil ao governo – que já mostrou não ter escrúpulos na matéria – aumentar impostos para esse fim.

Quer isto dizer que não há lugar para organizações como a LPCC ou que o voluntariado não é necessário porque o Estado se deve ocupar de tudo? De forma nenhuma. Há um sem-número de actividades que o Estado não só não possui meios para levar a cabo como não possui as melhores condições para levar a cabo. Associações de doentes (como a LPCC também é, ainda que não seja apenas isso) têm um papel essencial e insubstituível. A LPCC leva a cabo inúmeras actividades de apoio a doentes e famílias (aconselhamento, acompanhamento) que o Estado não poderia levar a cabo com a mesma qualidade, mesmo que dispusesse de meios humanos e financeiros para o fazer. Mas o que uma organização como a LPCC não deve fazer é contribuir para desresponsabilizar o Estado relativamente àquilo que a própria LPCC sabe que ele tem de fazer. A investigação é uma dessas áreas. A formação é outra. A detecção precoce é outra. A LPCC não deve colaborar nestes domínios? Pode e deve, mas não permitindo que o Estado fuja às suas responsabilidades. Não oferecendo-se para financiar actividades que fazem parte do dever do Estado. Dar aos cidadãos a ideia de que, “agora que o Estado não o pode fazer” temos de ser nós a dar dinheiro para a prevenção do cancro e para a investigação oncológica é errado e gravíssimo.

A LPCC deve usar a sua capacidade de mobilização e o seu voluntariado para denunciar as carências nestes domínios, para fazer pressão sobre o Estado para que este conceda ao combate do cancro todos os meios necessários e não aceitar a sua redução, dando a ideia de que, com uns peditórios, se podem colmatar as falhas da irresponsabilização governamental.

jvmalheiro@gmail.com

Crónica no Público: http://www.publico.pt/opiniao/noticia/quantas-vezes-vamos-ter-de-dar-para-este-peditorio-1675029?page=-1

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