por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Outubro de 2014Crónica 48/2014
Não é possível disfarçar a incompetência do processo liderado pela ESF, nem a falta de lisura dos métodos da FCT
1. A avaliação dos centros de investigação portugueses que a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) encomendou à European Science Foundation (ESF), e que se poderá traduzir no corte do financiamento e consequente morte para metade destes centros, arrisca-se a ficar na história de ambas as instituições como o momento menos honroso das suas vidas.
Apesar das inúmeras falhas detectadas, documentadas e denunciadas no processo, apesar das irregularidades processuais conhecidas e noticiadas, apesar da descarada batota de tentar impor à partida um resultado com cinquenta por cento de chumbos a essa avaliação e da mais descarada ainda tentativa de negar essa evidência apesar de ela constar de um contrato assinado, tanto a FCT como a ESF continuam a tentar encobrir o sol com uma peneira, tentando dar a entender que quem critica a avaliação o faz apenas porque viu os seus interesses beliscados e não devido ao monte de erros, falhas, irregularidades e batotas do processo.
Na semana passada, ficámos a conhecer mais uma peça do enredo, com a publicação de uma carta do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) dirigida ao ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, cuja acção política neste e noutros domínios se tem resumido a fazer de morto e esperar que o tempo passe.
O CRUP, numa posição consensual assumida pelos seus quinze reitores, escreveu que já não lhe era possível dar o “benefício da dúvida” ao actual processo de avaliação e declarava recusar "a morte anunciada de quase 50% do tecido científico português". Note-se que o CRUP e os reitores têm sido de uma enorme benevolência para com o Governo, apesar dos cortes que têm afectado e vão continuar a afectar a ciência e o ensino superior. É por isso significativo que tenham finalmente perdido a paciência. O documento do CRUP mostra que, mesmo para aqueles que aceitam a retórica da austeridade e estão sempre dispostos a fazer um jeitinho ao poder, a situação se tornou insustentável. “Para que um sistema de avaliação seja capaz de promover a excelência tem de, ele próprio, ser pelo menos excelente, se não excepcional. Não é o caso.”, diz a carta. Os reitores afirmam ainda que os painéis de avaliação, mesmo quando confrontados com os "inúmeros erros de avaliação, muitos inteiramente factuais", se "desculparam de diversas formas para não retirar daí consequências, mantendo avaliações inexplicáveis" e concluem que o processo de avaliação se traduziu num "falhanço pleno" e numa "oportunidade perdida". A tomada de posição do CRUP é tardia, mas não podia ser mais clara.
O que irá fazer o ministro? Corrigir ou anular o processo de avaliação? Provavelmente vai fingir que não leu ou leu mas não percebeu ou telefonar a este ou aquele reitor para deitar água na fervura e pedir-lhes ainda mais um jeitinho, mas a verdade é que já não é possível disfarçar a incompetência do processo liderado pela ESF, nem a falta de lisura dos métodos da FCT, nem a agenda de estrangulamento da investigação do ministro Nuno Crato e da secretária de Estado Leonor Parreira.
2. Na semana passada também se conheceu uma outra carta, enviada pela ESF à revista Nature, na sequência de uma primeira carta que a mesma ESF tinha dirigido a uma investigadora espanhola que aí tinha publicado um artigo de opinião denunciando falhas no processo de avaliação dos centros de investigação portugueses. Na primeira carta, a ESF ameaçava a autora do artigo de um processo judicial se não mudasse de opinião e se não se retractasse, o que suscitou uma avalanche de críticas contra a ESF por toda a Europa. Desta vez, a ESF decidiu enviar uma mensagem revista e corrigida, para tentar fazer esquecer o tom rufia da primeira, mas volta a considerar que as referências a erros no processo de avaliação "não são sustentadas". É aborrecido que o diga porque, quando uma organização quer provar o seu rigor, deve evitar mentir com este descaramento. De facto, a ESF recebeu inúmeras críticas, correcções e queixas feitas directamente pelos próprios centros, seguindo canais oficiais, no âmbito do processo de contestação e revisão das avaliações. As principais críticas podem ainda ser lidas no blog Rerum Natura, que inclui mesmo posts em inglês, que a ESF poderia (e deveria) ter consultado caso quisesse honestamente informar-se das críticas feitas ao seu trabalho.
Quando a ESF nega a existência evidente dessa sustentação às críticas de que foi objecto, apenas nos conforta na convicção de que foi a organização errada para este trabalho e de que a sua idoneidade está muito abaixo do nível exigido a uma organização europeia com a sua pretensão. Que os dirigentes da FCT não o vejam é mais uma prova lamentável da sua baixa exigência e de que, no processo de avaliação realizado, apenas interessava chegar a um valor pré-definido, independentemente dos métodos usados.
jvmalheiros@gmail.com
Crónica no Público: http://www.publico.pt/ciencia/noticia/investigacao-continua-entregue-aos-bichos-1674394?page=-1
Nota 1 (publicada no Facebook a 29 Out 2014 como comentário à minha crónica) - Na carta da European Science Foundation (ESF) à Nature que cito na minha crónica de hoje no Público (http://www.publico.pt/ciencia/noticia/investigacao-continua-entregue-aos-bichos-1674394?page=-1), a primeira refere, de forma algo críptica, a existência de "interferência directa com pares e membros dos painéis", o que condena. Parece que a ESF se queixa (sem o dizer claramente, o que seria mais honesto, mas não podemos ser demasiado exigentes) de que investigadores avaliados tentaram pressionar avaliadores. Se isso aconteceu, é evidente que se trata de algo inaceitável. Mas o que é igualmente inaceitável é que a ESF se queixe da pressão dos índios mas tenha aceite sem rebuço a pressão dos chefes, com a imposição dos 50% de chumbos que o contrato com a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT)impõe ou que tenha ela própria obrigado avaliadores a baixar notas para satisfazer os desejos do seu cliente. Como é inaceitável que tenha, à vista de todos, ameaçado a investigadora espanhola Amaya Moro-Martin por crime de opinião.
Que a FCT só queira financiar metade dos centros portugueses é uma questão em relação à qual a ESF pode dizer que nada tem a ver. Mas que tenha aceitado martelar as notas para que metade dos centros parecessem fracos e pudessem assim mais facilmente sustentar a escolha política de Nuno Crato, de Leonor Parreira e da FCT é inaceitável.
Nota 2 (publicada no Facebook a 29 Out 2014 como comentário à minha crónica) - No meio deste Carnaval, continuamos à espera de que a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) se digne divulgar as famosas adendas ao contrato que assinou com a European Science Foundation (ESF) e que constituem a base legal da avaliação realizada pela ESF. A FCT diz que ainda não estão assinadas, mas essa justificação é certamente um lapso, porque o Estado não poderia usar um serviço que lhe é facultado por um fornecedor sem uma cobertura contratual.
jvmalheiros@gmail.com
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