por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Outubro de 2013
Crónica 39/2013
“Viver em protectorado” e impor os mandados dos “protectores” é algo natural para Paulo Portas
1. O debate sobre a constitucionalidade das medidas contidas no Orçamento de Estado de 2014 tem algo de fútil. É importante em termos práticos, é uma questão de princípio central num estado de direito (trata-se do respeito pela lei fundamental, que o mesmo é dizer pela lei democrática) e é o combate político do momento mas, paradoxalmente, tem algo de fútil. E tem algo de fútil porque, desde a assinatura do memorando de entendimento com a troika, que Portugal não vive num regime constitucional. Este facto tem aliás sido salientado pelo vice-primeiro-ministro Paulo Portas quando usa a expressão “protectorado”, dando mostras de uma leviandade cuja aceitação o deve divertir imenso mas que, em momentos menos tolerantes da história, lhe poderia custar a cabeça. Que “viver em protectorado” e impor a nível nacional os mandados dos “protectores” seja algo aceite com tal naturalidade por alguém que se diz conservador e patriota é apenas uma das muitas incoerências com que o relativismo moral de Portas nos tem brindado. Mas pavoneia-se com uma pàtriazinha pequenina na lapela.
A violação dos princípios constitucionais com que temos convivido começa logo no artigo primeiro, que declara que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.
Para que a actuação do governo estivesse de acordo com o primeiro artigo da Constituição, teria sido necessário revê-la e reescrevê-lo, transformando-o em algo como “Portugal é um estado sob ocupação, tutelado por potências estrangeiras, baseado na preeminência do poder financeiro e na vontade das instituições financeiras internacionais e empenhada na construção de uma sociedade com desigualdades sociais crescentes.”
O artigo terceiro, “A soberania, una e indivisível, reside no povo”, deveria passar simplesmente a “A soberania, una e indivisível, reside na troika”.
O artigo 12º, que abre o capítulo dos direitos e deveres fundamentais, que reza actualmente “Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição” deveria passar a proclamar “Os direitos de que eventualmente gozem os cidadãos serão conferidos de acordo com o seu poder financeiro, a sua origem de classe e a sua filiação partidária”.
Quanto à acção do Governo, ela enxovalha todos os dias o artigo 199 (“Defender a legalidade democrática”, “Praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades colectivas”). Uma das vantagens de que o Governo, apesar de tudo, goza é do facto de a Constituição, apesar de definir as competências do poder executivo em termos formais, não lhe atribuir uma obrigação de honestidade, de respeito pela verdade, de integridade moral, de respeito pelas promessas eleitorais, de defesa do património nacional, de defesa do interesse nacional a ser respeitadas por esse executivo, assim como não prever sanções em caso de traição reiterada desse interesse nacional - ainda que outras leis o façam. Mas quanto a inconstitucionalidades estamos devidamente servidos, a todas as horas do dia. O Orçamento de 2014 é apenas mais um episódio.
2. Não há dia em que os jornais não tragam meia dúzia de histórias que retratam o nível de abjecção das medidas de “austeridade” do governo. Basta escolher. Anteontem foi oDia da Paralisia Cerebral, um momento escolhido para informar a população sobre a doença e para reunir doentes e familias em confraternização. Os doentes com paralisia cerebral são apenas um dos grupos sob ataque do Governo. O que lhes acontece? Para Nuno Crato fazer o seu brilharete de cortes na Educação, há cada vez mais crianças com paralisia cerebral que estão sem escola. As escolas não têm pessoas qualificadas nem condições materiais para acolher e ensinar estas crianças, que têm de ficar em casa. Como é de esperar, são as crianças com deficiências mais profundas as mais afectadas. E isto além de o Estado não considerar dignas de ajuda as famílias com um filho com paralisia cerebral onde um casal ganhe 1256 euros. Fraldas, medicamentos, ventiladores, equipamentos especiais? O Governo acha que 1256 euros chega para tudo. Não ouviram? Só há dinheiro para os bancos! Que parte desta frase tão simples é que estas famílias não perceberam?
A Constituição diz que “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”? O Governo acha que não.
Quem tem um filho com uma deficiência ou uma doença grave percebe bem o que significa o Estado Social: uma solidariedade que mutualiza os riscos, que garante o indispensável a todos, que é boa para todos. Infelizmente, os membros do Governo vivem numa fantasia de omnipotência adolescente, escondidos dentro dos seus carros, embriagados de felicidade por haver gente rica que os trata pelo primeiro nome. E sabem que há bons empregos à sua espera nos escritórios daqueles a quem servem. Que importância têm uns miúdos torcidos numas cadeiras de rodas? (jvmalheiros@gmail.com
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