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quarta-feira, janeiro 17, 2007

Evitar o aborto

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 16 de Janeiro de 2007
Crónica 3/2007

Uma grande maioria dos portugueses defende medidas enérgicas que permitam evitar o aborto

Nos últimos anos, verificou-se uma pequena mas significativa evolução na abordagem do aborto: enquanto as pessoas que são contra continuam a ser contra, hoje já não há ninguém que se declare "a favor" do aborto. Tendo sempre sido um defensor da despenalização, devo dizer que sempre me senti chocado quando alguém simplificava a sua posição ao ponto de se declarar "a favor" da interrupção voluntária da gravidez. O que existem são pessoas que consideram o aborto moralmente inadmissível em todas as circunstâncias e outras que admitem que se recorra ao aborto em circunstâncias especiais – ainda que reconhecendo a prática como indesejável. E, entre estas últimas, existem como se sabe discussão sobre quais devem ser essas circunstâncias especiais que tornariam o aborto admissível.

Penso que existe por isso uma grande maioria na sociedade portuguesa (para não dizer que existe uma opinião unânime) que defende medidas enérgicas que permitam evitar o aborto.
É verdade que há divergência entre o que poderão ser essas medidas. Num extremo, encontramos os que consideram que o aborto pode ser evitado através da abstinência sexual ou convencendo as mulheres que engravidam sem o desejar a aceitar como uma cruz o que deveria ser uma bênção e a levá-la até ao calvário. Mas, para além desta posição extremista, penso que existe mais uma vez uma maioria significativa (que reúne pessoas que vão votar sim e não no referendo) que aprova medidas que poderiam ser de grande alcance em termos de redução do aborto e que ainda escasseiam.

A primeira dessas medidas é uma política de apoio à família, que se traduza não só mas também em incentivos fiscais sensíveis pelo nascimento de um filho. Uma tal política faz sentido em termos de justiça social, faz sentido em termos demográficos e económicos e faz sentido em termos de prevenção do aborto. Não é preciso inventar a roda neste domínio: basta copiar as boas medidas existentes noutros países.

Outra medida é uma oferta alargada e profunda de educação sexual, e nomeadamente de aconselhamento de controlo da natalidade, que atinja todos os adolescentes sem excepção, a partir do momento em que iniciam uma vida sexual activa – rapazes e raparigas, maiores e menores, em ambiente escolar ou fora dele.

Outra medida indispensável é uma oferta eficaz e barata (vide gratuita) de contraceptivos e de métodos de diagnóstico e interrupção precoce da gravidez (pílula do dia seguinte) – que poucas sensibilidades podem considerar equivalente ao IVG às dez semanas. Não se pode ser contra o aborto e contra a contracepção acessível.

Outra medida, finalmente, seria uma política de acompanhamento e apoio de mulheres grávidas que não querem ficar com os seus filhos mas que estão dispostos a levar a gravidez a termo desde que sejam apoiadas durante a gestação e que tenham a garantia de que os bebés poderão ser entregues para adopção imediata.

Quando se fala de propostas como estas, há sempre quem venha dizer que muito disto já existe. E, em certos casos, isso é verdade. Trata-se é de uma questão de grau. Uma jovem de um meio social favorecido possui a informação, o acesso aos serviços médicos e sociais e, nos melhores casos, pode explicar o que pretende, lutar pelos seus direitos e encontrar aconselhamento. O pior são as outras.

Não basta que certos serviços existam. É preciso promover o seu uso e generalizar a sua cobertura. É preciso promover a sua qualidade (respeito pela mulher, reconhecimento do direito a escolher, protecção do anonimato, dignidade do acolhimento). É preciso não pressionar as mulheres grávidas a guardar o seu filho quando sabem que elas não o desejam ou não o podem fazer. É preciso fazer chegar a contracepção as mulheres em vez de esperar que as mulheres se dirijam às consultas. É preciso garantir que todas as jovens passam por consultas de planeamento familiar onde lhes seja oferecida (literalmente) uma verdadeira escolha.

Sem tudo isto, com referendo ou sem referendo, com sim ou com não, com ou sem objecção de consciência dos médicos, o aborto vai continuar a ser a maldição que é.

sexta-feira, maio 19, 2006

Aborto nos EUA com os dias contados?

A nomeação dos juízes conservadores John G. Roberts Jr. e Samuel A. Alito Jr. para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos pode vir a pôr em causa a jurisprudência do caso "Roe versus Wade" (uma decisão do Supremo de 1973, por 7/2 votos), que impede os estados de restringir o direito ao aborto. Um artigo na "Atlantic Monthly" de Junho de 2006 avança os cenários para o que poderá ser o fim do direito ao aborto em muitos dos estados dos EUA.
Para um perfil do juiz Alito e das peripécias da sua nomeação, leia o artigo "The Strange Case of Judge Alito", de Ronald Dworkin, publicado na "New York Review of Books" de 23 de Fevereiro de 2006.

Post de José Vítor Malheiros publicado no blog "Em Revista", do jornal Público, em 19 de Maio 2006: http://em-revista.blogspot.pt/2006/05/aborto-nos-eua-com-os-dias-contados.html

terça-feira, maio 17, 2005

Anjos e demónios

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 17 de Maio de 2005
Crónica 16/2005

O padre de Lordelo do Ouro usou sem pudor o sangue de uma criança para levar avante a sua propaganda

1. Na semana passada, a propósito do assassinato de uma menina de cinco anos, um padre católico decidiu defender, desde o púlpito da missa de sétimo dia da criança, a tese de que este crime seria menos violento e menos grave do que um aborto. Segundo o padre, neste último a vítima do crime seria um ente incapaz de se defender, enquanto uma criança de cinco anos “pode reagir, pode chorar, queixar-se”.

Não se sabe se, no entender do padre, esta redução da gravidade evolui de forma linear com a idade da vítima, tornando-se o crime progressivamente menos grave à medida que passam os anos, para chegar a ser admissível numa certa idade, desejável a partir dela e acabando mesmo por ser louvável nos anos mais maduros da vítima. Ou se a gravidade do crime, dependendo não da idade em si mas da capacidade da vítima se defender, vai descendo à medida que aumenta o seu vigor físico para, a partir de uma certa idade (dos 25 anos, digamos) se lançar numa curva crescente de pecaminosidade.

É admissível que um sacerdote ou a Igreja adopte uma posição fundamentalista (a expressão é aqui usada com absoluto rigor) sobre a defesa da vida humana e decida considerar que tudo aquilo que classifique como “vida humana” (mesmo que se trate de uma bolinha de células indiferenciadas) deve ser defendido a todo o transe. O que já não é admissível, nem para a Igreja nem para um sacerdote, é decidir que algo que considera como vida humana vale menos do que outra vida humana. Vale a pena lembrar aqui que os defensores da liberalização ou descriminalização do aborto até um dado momento de gestação o fazem porque não consideram o embrião até esse momento como “vida humana” – debatendo-se esse limite da admissibilidade com base em critérios como a viabilidade do feto ou a emergência da consciência.

Quando se diz que A é mais grave do que B, está-se forçosamente a dizer que B é menos grave que A. E compreende-se mal como relativamente a um crime de tal brutalidade como o assassinato de uma criança de cinco anos alguém se possa atrever a algum tipo de branqueamento. A observação é desumana e, se serve algum fim, é para nos mostrar como nestas questões doutrinais a Igreja e os seus sacerdotes se preocupam mais com a retórica do que com as pessoas e o seu sofrimento. Inserindo-se zelosamente numa campanha de demonização do aborto a que a Igreja entendeu dar prioridade devido à iminência de uma decisão política, o padre de Lordelo do Ouro decidiu usar sem pudor o sangue de uma criança para levar avante a sua propaganda. Se ainda lhes sobrassem lágrimas, os anjos teriam chorado.

2.
No registo “todos somos iguais mas uns são mais iguais que outros”, houve quem se escandalizasse com o acórdão do Tribunal Constitucional que considerou inconstitucional o articulado do Código Penal que considera que os actos heterossexuais praticados com menores dos 14 aos 16 anos são ilegais se não forem consensuais, mas são sempre ilegais quando se trata de actos homossexuais, quer sejam ou não consensuais.

É de uma liminar clareza que o artigo 175 é inconstitucional, por definir um quadro penal diferente para um acto sexual (praticado exactamente nas mesmas circunstâncias) conforme ele seja praticado por heterossexuais ou homossexuais. Pode-se não concordar com a Constituição, não se pode é achar que ninguém deva ser discriminado em função da sua orientação sexual e aceitar o artigo 175 do Código Penal.

Que determinados actos choquem determinadas pessoas é admissível, o que não se pode admitir é que o quadro legal seja definido em função desses preconceitos. Da mesma forma que a liberdade de expressão não é a liberdade de os outros dizerem aquilo com que eu concordo, a liberdade de orientação sexual não pode ser a liberdade de os outros praticarem a sexualidade com que eu concordo.

terça-feira, setembro 07, 2004

Borndiep

Por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 7 de Setembro de 2004
Crónica 31/2004


Os navios de guerra não são brinquedos de que se deva puxar para impressionar os amigos ou meter medo aos vizinhos.

Regressar de um período de férias sem contactos com a realidade portuguesa para mergulhar de novo na actualidade nacional tem com frequência o sabor de um duche de água fria.

A primeira surpresa do regresso foi que o ministro Paulo Portas decidiu (invocando a segurança nacional, a defesa da ordem e a saúde pública) enviar a Marinha de Guerra impedir a entrada em águas territoriais portuguesas de um navio-clínica holandês com meia dúzia de tripulantes, que realiza abortos em águas internacionais, de acordo com a lei do país sob cuja bandeira navega. Deve registar-se como gesto imbuído de alguma racionalidade que o ministro tenha decidido não confiar apenas na Nossa Senhora de Fátima para afastar o navio das nossas costas e tenha recorrido às Forças Armadas. Só que o gesto provavelmente deve mais ao gosto do ministro pelos gestos de opereta que à sua distância do anti-racionalismo.

Que Paulo Portas e o seu partido são contra o aborto já se sabe e essa posição é, em princípio, respeitável. O que é menos respeitável é que um membro do Governo (para mais extravasando as suas funções no que respeita à jurisdição do Presidente da República) venha invocar falsos argumentos para limitar de uma forma inaceitável a liberdade de movimentos de um navio de um país da União Europeia, tripulado por elementos que não são (que se saiba, pelo menos tal não foi invocado) criminosos internacionais.

Que os argumentos invocados podem ser objecto de discussão jurídica é evidente. É claro que um país pode impedir o acesso de um navio que coloque de facto problemas de segurança ou de saúde pública. A questão neste caso, porém, não é de interpretação jurídica mas de substância política. Não é possível sustentar de forma séria que a presença do navio coloca em risco a soberania nacional ou suscita problemas de saúde pública. A ordem de Portas é uma medida autocrática, onde uma limitação das liberdades de uns quantos cidadãos europeus é ditada por razões exclusivamente ideológicas e defendida publicamente com base numa mentira popular. A prática tem seguidores notáveis, de Bush a Putin, em particular nesta era “anti-terrorista”, onde de novo os meios justificam os fins.

A questão que se coloca em relação ao “Borndiep” é simples: o navio ou algum dos seus tripulantes violou a lei portuguesa? Há razões concretas para recear que isso aconteça? Não havendo é evidente que a sua liberdade de movimentos não pode ser limitada. Dizer que o navio não violou a lei mas a contorna e que isso justifica a limitação dos direitos cívicos dos seus tripulantes é regressar aos tempos em que tudo o que não era expressamente permitido devia por uma questão de prudência ser considerado proibido.

E se é esse o argumento que dita a razão do Governo não se percebe a razão por que, usando o mesmo critério, não há-de também perseguir aqueles que conseguem pagar menos impostos através de habilidades legais para contornar as leis fiscais. O Estado de Direito não pode ser um jogo de plasticina à mercê de uma criança caprichosa e os navios de guerra não são brinquedos de que se deva puxar para impressionar os amigos ou meter medo aos vizinhos. O instrumento é brutal, desproporcionado em relação à “ameaça” e o seu uso gratuito um insulto ao papel das Forças Armadas.

É tristemente significativo dos tempos que, num inquérito feito pelo PÚBLICO, cerca de 40 por cento dos respondentes tenha concordado com Portas ­(imagina-se que exaltados com os arroubos de patriotismo do prócer ou simplesmente discordantes das práticas do navio holandês). Os argumentos nacionalistas colhem sempre um apoio desproporcionado em relação à sua verdade, sensatez ou bondade e Portas é pródigo na sua aspersão. Seria bom que eles fossem sistematicamente desmontados desde a sua origem pela oposição. Os atentados à liberdade e os atropelos à lei, principalmente quando são feitos apelando ao patriotismo (e mesmo quando são discursos de opereta em voz de falsete), não podem ser acolhidos com um encolher de ombros displicente. A história está cheia de palhaços trágicos que gostavam de puxar da pistola.