terça-feira, setembro 07, 2004

Borndiep

Por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 7 de Setembro de 2004
Crónica 31/2004


Os navios de guerra não são brinquedos de que se deva puxar para impressionar os amigos ou meter medo aos vizinhos.

Regressar de um período de férias sem contactos com a realidade portuguesa para mergulhar de novo na actualidade nacional tem com frequência o sabor de um duche de água fria.

A primeira surpresa do regresso foi que o ministro Paulo Portas decidiu (invocando a segurança nacional, a defesa da ordem e a saúde pública) enviar a Marinha de Guerra impedir a entrada em águas territoriais portuguesas de um navio-clínica holandês com meia dúzia de tripulantes, que realiza abortos em águas internacionais, de acordo com a lei do país sob cuja bandeira navega. Deve registar-se como gesto imbuído de alguma racionalidade que o ministro tenha decidido não confiar apenas na Nossa Senhora de Fátima para afastar o navio das nossas costas e tenha recorrido às Forças Armadas. Só que o gesto provavelmente deve mais ao gosto do ministro pelos gestos de opereta que à sua distância do anti-racionalismo.

Que Paulo Portas e o seu partido são contra o aborto já se sabe e essa posição é, em princípio, respeitável. O que é menos respeitável é que um membro do Governo (para mais extravasando as suas funções no que respeita à jurisdição do Presidente da República) venha invocar falsos argumentos para limitar de uma forma inaceitável a liberdade de movimentos de um navio de um país da União Europeia, tripulado por elementos que não são (que se saiba, pelo menos tal não foi invocado) criminosos internacionais.

Que os argumentos invocados podem ser objecto de discussão jurídica é evidente. É claro que um país pode impedir o acesso de um navio que coloque de facto problemas de segurança ou de saúde pública. A questão neste caso, porém, não é de interpretação jurídica mas de substância política. Não é possível sustentar de forma séria que a presença do navio coloca em risco a soberania nacional ou suscita problemas de saúde pública. A ordem de Portas é uma medida autocrática, onde uma limitação das liberdades de uns quantos cidadãos europeus é ditada por razões exclusivamente ideológicas e defendida publicamente com base numa mentira popular. A prática tem seguidores notáveis, de Bush a Putin, em particular nesta era “anti-terrorista”, onde de novo os meios justificam os fins.

A questão que se coloca em relação ao “Borndiep” é simples: o navio ou algum dos seus tripulantes violou a lei portuguesa? Há razões concretas para recear que isso aconteça? Não havendo é evidente que a sua liberdade de movimentos não pode ser limitada. Dizer que o navio não violou a lei mas a contorna e que isso justifica a limitação dos direitos cívicos dos seus tripulantes é regressar aos tempos em que tudo o que não era expressamente permitido devia por uma questão de prudência ser considerado proibido.

E se é esse o argumento que dita a razão do Governo não se percebe a razão por que, usando o mesmo critério, não há-de também perseguir aqueles que conseguem pagar menos impostos através de habilidades legais para contornar as leis fiscais. O Estado de Direito não pode ser um jogo de plasticina à mercê de uma criança caprichosa e os navios de guerra não são brinquedos de que se deva puxar para impressionar os amigos ou meter medo aos vizinhos. O instrumento é brutal, desproporcionado em relação à “ameaça” e o seu uso gratuito um insulto ao papel das Forças Armadas.

É tristemente significativo dos tempos que, num inquérito feito pelo PÚBLICO, cerca de 40 por cento dos respondentes tenha concordado com Portas ­(imagina-se que exaltados com os arroubos de patriotismo do prócer ou simplesmente discordantes das práticas do navio holandês). Os argumentos nacionalistas colhem sempre um apoio desproporcionado em relação à sua verdade, sensatez ou bondade e Portas é pródigo na sua aspersão. Seria bom que eles fossem sistematicamente desmontados desde a sua origem pela oposição. Os atentados à liberdade e os atropelos à lei, principalmente quando são feitos apelando ao patriotismo (e mesmo quando são discursos de opereta em voz de falsete), não podem ser acolhidos com um encolher de ombros displicente. A história está cheia de palhaços trágicos que gostavam de puxar da pistola.

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