terça-feira, novembro 15, 2005

Discriminação sem rasto

por José Vítor Malheiros


Texto publicado no jornal Público a 15 de Novembro de 2005
Crónica 34/2005

A inexistência destes dados permite-nos desconhecer oficialmente a discriminação racial na contratação de trabalhadores.


Em Portugal não é possível conhecer os dados sobre emprego das minorias étnicas que vivem no território nacional, como não é possível conhecer as facilidades ou dificuldades na obtenção de emprego por parte dos portugueses negros ou detectar alguma discriminação dos empregadores relativamente aos candidatos muçulmanos.

Nada disto é possível porque as nossas estatísticas de emprego, do Instituto Nacional de Estatística ou do Instituto do Emprego e Formação Profissional, não possuem dados sobre a cor da pele, a pertença étnica ou a religião dos indivíduos. A única instância em que se pergunta a um cidadão a sua religião é por ocasião dos censos nacionais e trata-se de uma pergunta de resposta voluntária que não é cruzada com as estatísticas de emprego.

É claro que podemos deduzir através de factos isolados qual a situação possa ser aqui ou ali e existem estudos que nos permitem obter retratos sectoriais. Mas dados estatísticos nacionais não existem – ao contrário do que acontece, por exemplo, nos Estados Unidos, onde dados sobre cor, etnia e religião são comummente perguntados e respondidos em candidaturas a universidades ou entrevistas de emprego.

As razões para a proibição de colheita de dados raciais ou religiosos entre nós são as mais nobres: a teoria diz que a igualdade dos cidadãos perante a lei e perante as oportunidades oferecidas pela sociedade civil tornam estes dados inúteis e que a sua recolecção poderia dar origem a discriminações. Se não vier na sua ficha que o candidato a um emprego é negro, será menos provável que ele seja objecto de discriminação racial? É evidente que não, mas é essa a razão da proibição.

O que acontece na prática é que a inexistência destes dados nos permite desconhecer oficialmente a discriminação racial na contratação de trabalhadores, nas políticas de educação e formação, nos critérios de promoção das empresas, a desigualdade de tratamento por parte dos sistemas de segurança social e de saúde, etc.

Ninguém pode dizer que os empregadores em Portugal são racistas porque ninguém sabe se, perante candidatos com o mesmo nível de formação e experiência profissional, existe ou não um tratamento de desfavor em relação aos que têm a pele mais morena.

Esta mancha de ignorância voluntária que afecta a sociedade portuguesa permite que mantenhamos a nossa boa consciência e façamos um ar de estranheza quando nos fazem notar a misteriosa uniformidade racial do Parlamento, das direcções e administrações das nossas empresas ou de qualquer grupo dirigente de qualquer instituição – que seria estranha em qualquer país com “a história de relação com África” de que Portugal diz orgulhar-se.

Recentemente, segundo a mesma linha de pseudo-anti-discriminação racial, a Comissão Nacional de Protecção de Dados deu parecer negativo à inclusão da cor da pele nos dossiers das crianças disponíveis para adopção, apesar de se saber que esse é um dado crítico para os candidatos a adoptantes. Esta decisão é tanto mais inaceitável quanto a cor da pele é um dos critérios que é perguntado aos candidatos a adoptantes. Ou seja: os futuros adoptantes têm direito a discriminar, mas as crianças não têm direito a ser o que são. Penso que é legítimo que os futuros pais possam usar esse critério, mas pelo menos em nome da eficácia do processo de adopção, seria razoável que as crianças fossem devidamente identificadas – já que se trata neste caso, para mais, de características públicas e notórias.

Que as normas existem por razões de protecção da igualdade não há dúvida. Mas do que existe legítima dúvida é que estas razões se traduzam na prática nalguma vantagem para aqueles que se pretende proteger. O que acontece é que, pelo contrário, esta pseudo-protecção constitui a melhor forma de encobrir o crime.

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