Texto publicado no jornal Público a 22 de Abril de 2014
Crónica 22/2014
Houve uma altura em que a actividade bancária se podia descrever de forma honesta.
1. Já sabíamos, mas ficámos a saber em pormenor, através de um trabalho publicado nestas páginas há dias, que a banca tem andado a arredondar o seu fim do mês através de taxas cobradas aos seus clientes sobre todas as operações possíveis e imaginárias. Só no ano passado, o valor das comissões cobradas pelos cinco maiores bancos a operar em Portugal (CGD, BES, BCP, BPI e Santander Totta) ascendeu a 2661 milhões de euros, num total de receitas de 7265 milhões. No ano anterior tinham sido 2534 milhões de euros.
O facto é escandaloso a vários títulos. Em primeiro lugar, porque a esmagadora maioria destas comissões é cobrada nas costas dos clientes, sem que a estes seja facultada informação prévia e uma real possibilidade de escolha e são mesmo alteradas sem pré-aviso e muito menos com possibilidade de opting out. Em segundo lugar, porque as taxas são, como os números provam, claramente excessivas. Em terceiro lugar, porque estas taxas dizem respeito a operações que são hoje em dia indispensáveis na vida de qualquer cidadão, o que equivale a dizer que correspondem a necessidades básicas da vida em sociedade. Em quarto lugar, porque não existe um verdadeiro mercado bancário a que os clientes possam recorrer (trocando de banco sempre que considerem as taxas de um deles excessivas, por exemplo), já que todos os clientes bancários se encontram aprisionados aos seus bancos por regras leoninas de fidelidade que impedem uma verdadeira concorrência. Em quinto lugar, porque as taxas são tanto maiores quanto mais frágeis são os clientes, ou seja: são cobradas aos pequenos clientes que ganham a vida com o seu trabalho e que possuem saldos médios baixos, mas não aos clientes que movimentam grandes quantias.
Houve uma altura em que a actividade bancária se podia descrever de forma honesta: os depositantes depositavam o seu dinheiro, que o banco emprestava a outras pessoas ou investia em negócios, dividindo depois os lucros entre si e os depositantes. Hoje em dia, os bancos funcionam de uma forma que não possui nenhuma espécie de justificação moral e que oscila entre o jogo de casino e a actividade predatória contra os trabalhadores, protegidos por políticos sem escrúpulos. Verdadeiros atentados à liberdade que ninguém esperava ter de suportar 40 anos depois do 25 de Abril.
2. Pertenço ao grupo dos milhares de portugueses que ontem não puderam adormecer à hora habitual devido aos festejos esfuziantes dos adeptos do Benfica, noite fora, que encheram as ruas com as suas cornetas, buzinadelas, gritos e petardos. Não guardo pelo facto nenhum azedume, apesar do incómodo. Gosto de festas ruidosas, gosto de ver pessoas na rua, tenho a felicidade de um sono fácil, tenho janelas com vidros duplos e não tenho nenhuma antipatia particular pelo Benfica. Mas confesso a minha dificuldade para entender estas euforias com as vitórias alheias, ainda que perceba o entusiasmo que o futebol transmite. Percebo o gosto, mas não consigo compreender a febre. De Gaulle dizia que patriotismo era amar o seu país e que nacionalismo era odiar o país dos outros. O que me espanta no fervor futebolístico é haver tanto “nacionalismo” e tão escasso “patriotismo” ou, dito de outra forma, que o “nacionalismo” que consiste no ódio aos outros clubes seja a forma predominante de viver o “patriotismo” que é o amor ao seu clube. Tanto ou mais do que a vitória do seu clube, o que arrebata os adeptos é a derrota e a humilhação dos adversários (basta ouvir os gritos na rua e ler os blogues), e isso é algo que tenho dificuldade em aceitar, tanto mais que as grandes conquistas vão sempre muito para além da derrota dos rivais.
Há no fervor guerreiro dos adeptos dos clubes um aspecto puramente tribal, que há anos é objecto de estudos antropológicos e psicológicos. Não há no amor clubista nenhum valor substantivo, mas apenas uma adesão à camisola, à bandeira e ao grupo. O que é estranho é que a forma mais fácil de mobilizar multidões e de acirrar os seus ânimos seja através de um ritual tribal e não através de valores substantivos, de ideias ou de projectos que tenham um real impacto na vida dessas próprias pessoas.
Ontem, ao ouvir as buzinadelas, pensava em quantos adeptos deste ou de outro clube, loucos de alegria pelo resultado de um jogo que em nada modificaria a sua vida, estariam dispostos a sair à rua para defender o aumento do salário mínimo, o aumento das pensões, o fim das propinas ou o pleno emprego. Quantas dessas pessoas seriam capazes de vir para as ruas exigir o fim da pobreza? Quantas dessas pessoas viriam para a rua indignadas pelos milhares de crianças que passam fome? Quantas dessas pessoas viriam para a rua exigir um combate eficaz à corrupção e uma justiça igual para todos? Quantas viriam defender uma escola pública de qualidade? Quantas destas pessoas virão para a rua no 25 de Abril gritar que não esquecemos a liberdade? Quantas dessas pessoas irão votar nas eleições europeias? Quantas irão votar nas legislativas? E quantas irão votar nos mesmos que hoje os condenam a eles à pobreza e os seus filhos à ignorância? Para que lhes serve este feroz orgulho de grupo e esta embriaguez selvagem da vitória se, nos momentos que importam realmente, irão baixar o pescoço onde se irá pousar a canga?
jvmalheiros@gmail.com
1. Já sabíamos, mas ficámos a saber em pormenor, através de um trabalho publicado nestas páginas há dias, que a banca tem andado a arredondar o seu fim do mês através de taxas cobradas aos seus clientes sobre todas as operações possíveis e imaginárias. Só no ano passado, o valor das comissões cobradas pelos cinco maiores bancos a operar em Portugal (CGD, BES, BCP, BPI e Santander Totta) ascendeu a 2661 milhões de euros, num total de receitas de 7265 milhões. No ano anterior tinham sido 2534 milhões de euros.
O facto é escandaloso a vários títulos. Em primeiro lugar, porque a esmagadora maioria destas comissões é cobrada nas costas dos clientes, sem que a estes seja facultada informação prévia e uma real possibilidade de escolha e são mesmo alteradas sem pré-aviso e muito menos com possibilidade de opting out. Em segundo lugar, porque as taxas são, como os números provam, claramente excessivas. Em terceiro lugar, porque estas taxas dizem respeito a operações que são hoje em dia indispensáveis na vida de qualquer cidadão, o que equivale a dizer que correspondem a necessidades básicas da vida em sociedade. Em quarto lugar, porque não existe um verdadeiro mercado bancário a que os clientes possam recorrer (trocando de banco sempre que considerem as taxas de um deles excessivas, por exemplo), já que todos os clientes bancários se encontram aprisionados aos seus bancos por regras leoninas de fidelidade que impedem uma verdadeira concorrência. Em quinto lugar, porque as taxas são tanto maiores quanto mais frágeis são os clientes, ou seja: são cobradas aos pequenos clientes que ganham a vida com o seu trabalho e que possuem saldos médios baixos, mas não aos clientes que movimentam grandes quantias.
Houve uma altura em que a actividade bancária se podia descrever de forma honesta: os depositantes depositavam o seu dinheiro, que o banco emprestava a outras pessoas ou investia em negócios, dividindo depois os lucros entre si e os depositantes. Hoje em dia, os bancos funcionam de uma forma que não possui nenhuma espécie de justificação moral e que oscila entre o jogo de casino e a actividade predatória contra os trabalhadores, protegidos por políticos sem escrúpulos. Verdadeiros atentados à liberdade que ninguém esperava ter de suportar 40 anos depois do 25 de Abril.
2. Pertenço ao grupo dos milhares de portugueses que ontem não puderam adormecer à hora habitual devido aos festejos esfuziantes dos adeptos do Benfica, noite fora, que encheram as ruas com as suas cornetas, buzinadelas, gritos e petardos. Não guardo pelo facto nenhum azedume, apesar do incómodo. Gosto de festas ruidosas, gosto de ver pessoas na rua, tenho a felicidade de um sono fácil, tenho janelas com vidros duplos e não tenho nenhuma antipatia particular pelo Benfica. Mas confesso a minha dificuldade para entender estas euforias com as vitórias alheias, ainda que perceba o entusiasmo que o futebol transmite. Percebo o gosto, mas não consigo compreender a febre. De Gaulle dizia que patriotismo era amar o seu país e que nacionalismo era odiar o país dos outros. O que me espanta no fervor futebolístico é haver tanto “nacionalismo” e tão escasso “patriotismo” ou, dito de outra forma, que o “nacionalismo” que consiste no ódio aos outros clubes seja a forma predominante de viver o “patriotismo” que é o amor ao seu clube. Tanto ou mais do que a vitória do seu clube, o que arrebata os adeptos é a derrota e a humilhação dos adversários (basta ouvir os gritos na rua e ler os blogues), e isso é algo que tenho dificuldade em aceitar, tanto mais que as grandes conquistas vão sempre muito para além da derrota dos rivais.
Há no fervor guerreiro dos adeptos dos clubes um aspecto puramente tribal, que há anos é objecto de estudos antropológicos e psicológicos. Não há no amor clubista nenhum valor substantivo, mas apenas uma adesão à camisola, à bandeira e ao grupo. O que é estranho é que a forma mais fácil de mobilizar multidões e de acirrar os seus ânimos seja através de um ritual tribal e não através de valores substantivos, de ideias ou de projectos que tenham um real impacto na vida dessas próprias pessoas.
Ontem, ao ouvir as buzinadelas, pensava em quantos adeptos deste ou de outro clube, loucos de alegria pelo resultado de um jogo que em nada modificaria a sua vida, estariam dispostos a sair à rua para defender o aumento do salário mínimo, o aumento das pensões, o fim das propinas ou o pleno emprego. Quantas dessas pessoas seriam capazes de vir para as ruas exigir o fim da pobreza? Quantas dessas pessoas viriam para a rua indignadas pelos milhares de crianças que passam fome? Quantas dessas pessoas viriam para a rua exigir um combate eficaz à corrupção e uma justiça igual para todos? Quantas viriam defender uma escola pública de qualidade? Quantas destas pessoas virão para a rua no 25 de Abril gritar que não esquecemos a liberdade? Quantas dessas pessoas irão votar nas eleições europeias? Quantas irão votar nas legislativas? E quantas irão votar nos mesmos que hoje os condenam a eles à pobreza e os seus filhos à ignorância? Para que lhes serve este feroz orgulho de grupo e esta embriaguez selvagem da vitória se, nos momentos que importam realmente, irão baixar o pescoço onde se irá pousar a canga?
jvmalheiros@gmail.com
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