Texto publicado no jornal Público a 25 de Março de 2014
Crónica 18/2014
Há todas as razões para o combate à corrupção ser uma bandeira da esquerda e nenhuma para não o ser.
Existem diferenças de monta entre as análises feitas à esquerda e à direita sobre a nossa crise económica e financeira. Essas diferenças têm que ver com as diferentes perspectivas sobre a origem dos nossos males, com o diagnóstico dos males em si e com o prognóstico.
Quanto às origens, enquanto a esquerda coloca de uma forma geral a tónica nas regras de funcionamento do euro, na crise financeira de 2008, na consequente redução das receitas do Estado e aumento de despesas sociais, na austeridade ela própria e na debilidade da nossa estrutura produtiva, a direita coloca em geral a tónica num excesso da despesa do Estado — seja devido aos investimentos em grandes projectos ou aos serviços do Estado social — e na corrupção.
A corrupção está também presente nas análises à esquerda, mas é em geral tratada com alguma contenção, já que a esquerda considera disparatado colocar este factor no topo da lista de responsáveis pelo empobrecimento do país, pelo desemprego e pela perda de direitos sociais. De facto, mesmo que Portugal fosse o mais impoluto dos países, a nossa situação económica, social e política não seria substancialmente diferente, se se mantivessem todos os outros factores.
Esta diferença de perspectivas é rica em consequências: a primeira é que a mensagem da esquerda é dificilmente compreensível (o que é “a arquitectura do euro”? o que é “a soberania monetária”? o que foi “a crise de 2008”?), enquanto a da direita é fácil de perceber — ficámos sem dinheiro porque gastámos acima das nossas possibilidades e porque nos andaram a roubar.
Podemos dizer que a mensagem da direita é uma descarada mentira ou que é uma simplificação abusiva. Seja como for, ela passa mais facilmente para a opinião pública. É simples e fácil de reproduzir.
Esquerda e direita podem discutir a questão da despesa do Estado, mas é impossível um acordo total sobre estas questões, onde qualquer compromisso obrigará a cedências mútuas: qual deve ser o papel do Estado no fornecimento de serviços sociais essenciais como a educação, a saúde e a Segurança Social? Que tipo e que nível de protecção deve o Estado garantir aos mais desprotegidos? Que papel deve o Estado guardar para si? O que deve fazer em nome próprio e o que pode subcontratar? Deve executar e gerir ou regular e encomendar? Que nível de gastos são admissíveis? Que impostos estamos dispostos a pagar para garantir as funções do Estado?
No entanto, sobre a questão da corrupção, não existem, em princípio, diferenças de opinião entre a esquerda e a direita: ambos os campos acham que não se deve roubar e que é particularmente feio roubar o dinheiro da comunidade.
No entanto, apesar disso, a denúncia vociferante da corrupção é usada com frequência como recurso retórico da direita — é mesmo típica da direita populista “antipolítica” emergente — e só raramente ele ocupa um papel central nas posições da esquerda.
Este facto é tanto mais estranho quanto a corrupção é um fenómeno especialmente ligado à prática política dos partidos do chamado “arco da governação” — tanto, aliás, que seria mais rigoroso usar a expressão “arco da corrupção” — e quanto as suspeitas ou casos de corrupção são raros e combatidos com particular veemência nos partidos à esquerda destes. Apesar disso, esta esquerda, piedosamente, continua a considerar a corrupção como um epifenómeno da política, independente das ideologias, e recusa-se no seu discurso político a estabelecer um laço entre os partidos do “arco da governação” e a corrupção, como a simples correlação estatística sugeriria.
A direita, porém, amalgama alegremente no seu discurso corrupção e despesas do Estado, sugerindo que as duas coisas possuem uma estreita relação e que a segunda alimenta a primeira. Nas entrelinhas do discurso do Governo, do PSD e do CDS, nos blogues da direita, nas intervenções de Paulo Morais e Marinho e Pinto, acção do Estado e corrupção parecem ser duas coisas indissociáveis, onde um alargamento da primeira (que a esquerda defende) não pode deixar de provocar um aumento da segunda.
Por estas razões, é fundamental que a esquerda, sem perder de vista o combate ideológico e o debate das opções políticas, se empenhe sem hesitação no combate à corrupção, que deve ser, para muitos cidadãos, a causa central da acção política, da mesma forma que a percepção de uma corrupção generalizada é a causa do seu afastamento da actividade políitica e até do simples voto. Há todas as razões para o combate à corrupção ser uma bandeira da esquerda e nenhuma para não o ser. A corrupção é o mais pernicioso factor de desigualdade de uma sociedade.
O escândalo da prescrição do processo de Jardim Gonçalves, os escândalos anunciados da prescrição de outros crimes cometidos no âmbito do mesmo caso BCP, do caso BPN ou do caso BPP são armas de destruição maciça da credibilidade das instituições, da justiça, da política e da democracia. Uma lei que não é igual para todos não pode sustentar uma democracia. E todos estes casos de corrupção, fraude, abuso de confiança, lavagem de dinheiro, evasão fiscal, são casos de corrupção permitidos pelos altos dignitários do “arco da governação”. É bom lembrá-lo. (jvmalheiros@gmail.com)
Existem diferenças de monta entre as análises feitas à esquerda e à direita sobre a nossa crise económica e financeira. Essas diferenças têm que ver com as diferentes perspectivas sobre a origem dos nossos males, com o diagnóstico dos males em si e com o prognóstico.
Quanto às origens, enquanto a esquerda coloca de uma forma geral a tónica nas regras de funcionamento do euro, na crise financeira de 2008, na consequente redução das receitas do Estado e aumento de despesas sociais, na austeridade ela própria e na debilidade da nossa estrutura produtiva, a direita coloca em geral a tónica num excesso da despesa do Estado — seja devido aos investimentos em grandes projectos ou aos serviços do Estado social — e na corrupção.
A corrupção está também presente nas análises à esquerda, mas é em geral tratada com alguma contenção, já que a esquerda considera disparatado colocar este factor no topo da lista de responsáveis pelo empobrecimento do país, pelo desemprego e pela perda de direitos sociais. De facto, mesmo que Portugal fosse o mais impoluto dos países, a nossa situação económica, social e política não seria substancialmente diferente, se se mantivessem todos os outros factores.
Esta diferença de perspectivas é rica em consequências: a primeira é que a mensagem da esquerda é dificilmente compreensível (o que é “a arquitectura do euro”? o que é “a soberania monetária”? o que foi “a crise de 2008”?), enquanto a da direita é fácil de perceber — ficámos sem dinheiro porque gastámos acima das nossas possibilidades e porque nos andaram a roubar.
Podemos dizer que a mensagem da direita é uma descarada mentira ou que é uma simplificação abusiva. Seja como for, ela passa mais facilmente para a opinião pública. É simples e fácil de reproduzir.
Esquerda e direita podem discutir a questão da despesa do Estado, mas é impossível um acordo total sobre estas questões, onde qualquer compromisso obrigará a cedências mútuas: qual deve ser o papel do Estado no fornecimento de serviços sociais essenciais como a educação, a saúde e a Segurança Social? Que tipo e que nível de protecção deve o Estado garantir aos mais desprotegidos? Que papel deve o Estado guardar para si? O que deve fazer em nome próprio e o que pode subcontratar? Deve executar e gerir ou regular e encomendar? Que nível de gastos são admissíveis? Que impostos estamos dispostos a pagar para garantir as funções do Estado?
No entanto, sobre a questão da corrupção, não existem, em princípio, diferenças de opinião entre a esquerda e a direita: ambos os campos acham que não se deve roubar e que é particularmente feio roubar o dinheiro da comunidade.
No entanto, apesar disso, a denúncia vociferante da corrupção é usada com frequência como recurso retórico da direita — é mesmo típica da direita populista “antipolítica” emergente — e só raramente ele ocupa um papel central nas posições da esquerda.
Este facto é tanto mais estranho quanto a corrupção é um fenómeno especialmente ligado à prática política dos partidos do chamado “arco da governação” — tanto, aliás, que seria mais rigoroso usar a expressão “arco da corrupção” — e quanto as suspeitas ou casos de corrupção são raros e combatidos com particular veemência nos partidos à esquerda destes. Apesar disso, esta esquerda, piedosamente, continua a considerar a corrupção como um epifenómeno da política, independente das ideologias, e recusa-se no seu discurso político a estabelecer um laço entre os partidos do “arco da governação” e a corrupção, como a simples correlação estatística sugeriria.
A direita, porém, amalgama alegremente no seu discurso corrupção e despesas do Estado, sugerindo que as duas coisas possuem uma estreita relação e que a segunda alimenta a primeira. Nas entrelinhas do discurso do Governo, do PSD e do CDS, nos blogues da direita, nas intervenções de Paulo Morais e Marinho e Pinto, acção do Estado e corrupção parecem ser duas coisas indissociáveis, onde um alargamento da primeira (que a esquerda defende) não pode deixar de provocar um aumento da segunda.
Por estas razões, é fundamental que a esquerda, sem perder de vista o combate ideológico e o debate das opções políticas, se empenhe sem hesitação no combate à corrupção, que deve ser, para muitos cidadãos, a causa central da acção política, da mesma forma que a percepção de uma corrupção generalizada é a causa do seu afastamento da actividade políitica e até do simples voto. Há todas as razões para o combate à corrupção ser uma bandeira da esquerda e nenhuma para não o ser. A corrupção é o mais pernicioso factor de desigualdade de uma sociedade.
O escândalo da prescrição do processo de Jardim Gonçalves, os escândalos anunciados da prescrição de outros crimes cometidos no âmbito do mesmo caso BCP, do caso BPN ou do caso BPP são armas de destruição maciça da credibilidade das instituições, da justiça, da política e da democracia. Uma lei que não é igual para todos não pode sustentar uma democracia. E todos estes casos de corrupção, fraude, abuso de confiança, lavagem de dinheiro, evasão fiscal, são casos de corrupção permitidos pelos altos dignitários do “arco da governação”. É bom lembrá-lo. (jvmalheiros@gmail.com)
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