terça-feira, março 11, 2014

Quer transportes públicos? Denuncie o seu vizinho!

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Março de 2014
Crónica 10/2014

O Governo encontrou uma ocasião de ouro para nos arregimentar como denunciantes dos mais pobres


A campanha usou a técnica do teaser. Primeiro, começaram a aparecer nas estações de Metro e nos autocarros de Lisboa uns cartazes de fundo branco, mostrando apenas um par de lindíssimos olhos azuis femininos esbugalhados, enquadrados por umas belas sobrancelhas arqueadas. Passados uns dias, foram substituídos por outros com a mesma fotografia mas já com dizeres: “Abra os olhos e combata a fraude” e, por baixo, “A falta de validações pode sair-lhe caro” (sic), seguida da lista de castigos que o utente dos transportes públicos (porque é disso que se trata) deve esperar: “menos carreiras, menos comboios, maior tempo de espera, degradação do serviço”. Por baixo, os logos do Metro e Carris.

A campanha tem uma enorme qualidade gráfica e estética e, não fora a incorrecção gramatical, poderia considerar-se tecnicamente excelente. Mas o seu conteúdo é moralmente abjecto e politicamente obsceno.

A campanha, que acontece sobre o pano de fundo da concessão dos transportes públicos a empresas privadas por imposição da troika e da Comissão Europeia, pretende transmitir uma ideia muito simples: se os transportes públicos são maus e serão cada vez piores a culpa não é da inexistência de uma política de transportes públicos justa e sustentável nem é do Governo que subfinancia estas empresas públicas. A culpa também não se deve ao facto de o Governo querer forçar estas empresas a ter um resultado de exploração positivo apesar do serviço social que prestam e de as obrigar por isso a reduzir carreiras e a degradar o serviço. A culpa da má qualidade dos transportes públicos é nossa. Dos cidadãos, dos utentes. E porquê? Porque fazemos fraude ou deixamos que os outros façam.

A tese do Governo é que os maus resultados das empresas de transportes públicos se devem, antes de mais, ao facto de serem públicas (daí que seja imperativo passar a sua gestão para mãos privadas) e, depois, à fraude. A prova que a fraude aumentou? O facto de o número de viagens pagas ter diminuído. Não será porque as pessoas têm menos dinheiro e porque todos os que podem cortam nos passes e nos bilhetes? Não será porque o desemprego aumentou e as pessoas que não precisam imperativamente de se deslocar ficam em casa ou andam a pé? Não. O Governo diz que é a fraude e tem um estudo onde a Carris aparece com números substancialmente mais elevados que os que a própria empresa estima.

A ideia percebe-se bem. A tese da fraude em massa que arrasta as empresas de transportes públicos para o fundo serve a agenda política do governo, que consiste em colocar os cidadãos uns contra os outros, desviar as atenções das malfeitorias do governo e preparar a opinião pública para a concessão dos transportes a privados. Neste quadro, não são apenas as empresas públicas que não funcionam e que têm uma gestão deficiente. São também os utentes das empresas públicas que agem de forma irresponsável - ao contrário dos clientes das empresas privadas, que são cidadãos responsáveis. Para o Governo, há algo de intrinsecamente pecaminoso nas empresas públicas. E esta campanha é para nos convencer a todos disso. É, mais uma vez, dinheiro público gasto a fazer a propaganda ideológica extremista do Governo PSD-CDS.

Uma vez estabelecida que a culpa é dos utentes que cometem fraudes podemos passar ao passo seguinte que é a mensagem explícita da campanha: abra os olhos. Denuncie quem tenta viajar sem bilhete. Não os deixe passar. São eles, os pobres, que nos estão a lixar a vida. Não é o Governo, nem a troika. Aqueles lindos olhos azuis são os olhos do Big Brother, a ver se você denuncia os pobres ou se os deixa passar.

É provável que a fraude nos transportes públicos tenha aumentado, porque as pessoas têm cada vez menos dinheiro e há cada vez mais pessoas sem dinheiro nenhum. Muitas dessas pessoas deixaram de usar os transportes públicos - cujos passes sociais são demasiado caros - e muitas tentarão talvez viajar sem bilhete. Mas a fraude, se aumenta, é, antes de mais, um indicador da existência de um preço que não é “social” e de um transporte que é cada vez menos “público”. Poucas pessoas gostam de andar a fugir aos fiscais e à polícia ou arriscar-se a pagar uma multa gigantesca se puderem não o fazer. Mas o Governo vê aqui uma ocasião de ouro para nos arregimentar como denunciantes dos mais pobres.

2. Sobre a birra de Pedro Passos Coelho no Parlamento, quando Catarina Martins referiu algo tão verdadeiro, tão evidente e tão fácil de provar como a ausência de valor da sua palavra: será que alguém poderia explicar ao primeiro-ministro que, quando ele se apresenta no Parlamento, é ao povo que responde, através dos seus representantes legítimos, e não a esta ou àquela pessoa? E será que alguém pode explicar a mesmíssima coisa à inefável reformada que preside ao Parlamento? E será que alguém pode explicar a ambos que “responsabilidade” significa o dever de responder? Ou será que PPC e Assunção Esteves acham que o Governo apenas é responsável perante a troika? (jvmalheiros@gmail.com)

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