sábado, maio 25, 2013

O jornalismo e o pensamento único - Revista "Fiscalidade e Sociedade"

Artigo publicado na revista "Fiscalidade e Sociedade" de 25 Maio 2013

José Vítor Malheiros
Na entrevista que o ex-primeiro-ministro José Sócrates deu à RTP antes de iniciar a sua actividade regular como comentador político da estação pública de televisão, foi notória a repetição da expressão “narrativa” por parte do entrevistado. Sócrates apresentou-se como alguém que vinha apresentar a sua “narrativa” alternativa e contrapô-la à “narrativa” dominante do Governo sobre a crise.

O uso e abuso da expressão (várias pessoas nas redes sociais entretiveram-se a contar o número de vezes que a palavra foi repetida) foi objecto de comentários mais ou menos jocosos e de críticas diversas, que preferiram sublinhar a relação semântica entre “narrativa” e “ficção”, querendo sugerir que o novo comentador se propunha apenas substituir um conto do vigário por outro ou vender um tipo de banha da cobra diferente da do Governo, mas a questão levantada por Sócrates tem de facto toda a relevância e a questão da narrativa da crise tem toda a pertinência.

Antes de mais, uma narrativa não tem de ser de forma alguma uma invenção e não é pelo facto de lhe chamarmos “narrativa” que ela se encontra desligada da realidade. Existem inúmeras maneiras de descrever situações e acontecimentos reais. Posso fazê-lo utilizando apenas uma sucessão de dados estatísticos, posso fazer descrições estáticas de certos momentos, posso descrever uma situação apenas através do seu reflexo nos media, posso usar a perspectiva de um sociólogo, de um historiador ou de um cidadão comum, etc. Existem múltiplas perspectivas possíveis (pontos de vista), existem múltiplas atitudes possíveis da parte de quem relata (pretensamente objectivas ou com um assumido envolvimento pessoal), existem diferentes elementos com os quais podemos construir a nossa narrativa (dados, documentos oficiais, fotografias, relatos na primeira pessoa, literatura de ficção) e existem diferentes técnicas que podemos usar para contar o que queremos contar. Mas há sempre algo que queremos contar e aquilo que se conta é sempre uma narrativa. Também poderíamos usar a palavra “história” em vez de “narrativa”, como dizem os jornalistas em todo o mundo, frequentemente grafada como “estória” em português, mas o significado é exactamente o mesmo.
Mas o que faz de algo uma “narrativa” em vez de apenas um discurso, uma opinião, uma visão, uma proposta, uma explicação ou qualquer outra coisa? O que transforma um discurso numa “narrativa” é a sua capacidade de ser difundido de uma forma ampla e de ser reproduzido com fidelidade. Uma “narrativa” é uma mensagem formatada (poderíamos dizer “empacotada”) de forma simples, fácil de apreender e fácil de repetir. Uma história.

É evidente que as narrativas podem ser mais ou menos honestas, podem pretender explicar ou manipular, podem escamotear ou pôr em evidência certos aspectos, mas não é de forma alguma por algo ser rotulado como uma narrativa que deve ser considerado como uma peça de propaganda. Pode sê-lo ou não.  Não são apenas os políticos e os jornalistas que constroem narrativas como parte central do seu ofício: os cientistas também constroem narrativas para explicar o mundo e a forma como retocam, alteram, abandonam, substituem e afinam essas narrativas constituem a evolução da própria ciência.

Há uma característica, porém, que uma narrativa possui sempre: um elevado grau de simplificação. Uma narrativa não é um mapa do mundo à escala 1:1 como o do conto de Borges. É uma visão que transforma milhões de pontos em imagens fáceis de apreender.

Mas vejamos alguns exemplos práticos da política.

A narrativa do Governo e da direita em geral sobre a crise financeira é simples: Nos últimos anos gastámos de mais. Vivemos acima das nossas possibilidades, gastámos mais do que produzimos. Endividámo-nos. Estado, empresas, famílias. Mas as pessoas honestas pagam as suas dívidas e chegou a altura de pagar.

Simples de perceber, com um elemento moral culpabilizador para que a má consciência não nos deixe criticar, fácil de repetir.

É verdade? É uma descarada mentira se for vendida como descrevendo toda a história, mas contém suficientes elementos de verdade para ser verosímil.

Há versões alternativas? Há, mas são mais complexas. Dizem-nos que a crise não é de agora mas vem de longe, que se deve a uma moeda única que privilegia necessariamente as economias mais fortes como a Alemanha, à nossa perda de soberania monetária que não nos deixa desvalorizar a moeda, à inexistência de um papel de emprestador de última instância do BCE que coloca os Estados na mão dos mercados financeiros, a ataques especulativos contra a dívida dos países mais frágeis, à usura dos bancos e à desonestidade das agências de rating, à destruição sistemática da capacidade produtiva do país em benefício de outros países que desiquilibrou a nossa balança com o exterior, à financeirização da economia que privilegia os investimentos não produtivos, à desregulação da circulação de capitais, a um conluio internacional que visa destruir o Estado Social e privatizar as suas riquezas e serviços em benefício do capital privado. Complicado não é? Parece algo paranóico e de difícil articulação. E o que significa “ataques especulativos”, “desregulação” e “financeirização”? E onde é que isto começou? E de quem é a culpa afinal?

Há nitidamente aqui - na visão da esquerda política - uma narrativa por construir, por “empacotar”, por simplificar. Falta um princípio, um meio e um fim. A história moral da direita é simples. A visão da esquerda é complexa. E, problema suplementar, quanto mais escrúpulo de rigor existe, maior é a dificuldade da simplificação. Nunca é impossível, mas é mais difícil. Numa narrativa (por oposição a uma descrição) as coisas não “estão” ou “são”. As coisas “acontecem”. Precisamos de encadeamentos, de consequências, de um fio condutor, um fio narrativo. Quanto maior a complexidade do contexto maior é a dificuldade da narrativa - e não há muitas coisas mais complexas que as finanças globais com os seus múltiplos actores, Estados, especuladores, políticos, bolsas. A narrativa oficial, da direita neoliberal, oferece para mais uma saída: sacrifício, austeridade, empobrecimento. A saída parece moral e agrada à nossa cultura católica penitente. Pouco importa que seja falsa: ela faz sentido narrativo porque todos conhecemos histórias morais assim, “sete anos de pastor Jacob servia Labão, pai de Raquel”... A saída proposta pela esquerda? A do PS não é uma alternativa distinguível da da direita mas a da restante esquerda é complexa, é preciso actuar em inúmeros tabuleiros, reconstruir a economia, renegociar com toda a gente sem sabermos o que conseguiremos alcançar, fazer sacrifícios na mesma, talvez sair do euro, talvez não... uma complicação. Não há uma história aqui.

Mas a que se deve essa predominância da narrativa oficial, tão omnipresente que se transforma em pensamento único?

Há uma visão conspirativa do jornalismo que diz que os jornalistas são meras correntes de transmissão do poder, instrumentos da classe dominante e seus agentes de propaganda. Ponto. Assim, a sua adesão à narrativa dominante, que preenche de facto os media em geral e a televisão em particular, dever-se-ia a esta posição de classe, ideológica, ao arrepio dos seus deveres deontológicos e dos seus compromissos de procura de verdade, de independência e de fiscalização dos poderes.

É evidente que há jornalistas que assumem este papel de meros propagandistas, mas não penso que o pensamento único que vemos plasmado nos media (não apenas no jornalismo, mas nos media em geral, dos programas de entretenimento às telenovelas) se deva a essa posição consciente. O problema deve-se à disponibilidade da narrativa dominante, à sua simplicidade e facilidade de reprodução. Está ali mesmo à mão, curtinha e fácil: “Gastámos de mais, chegou a altura de pagar”. Ou: “O Estado Social pode ser bom mas é um luxo. Não temos dinheiro para o pagar.”

O que falta à esquerda é o empenho na construção da sua narrativa. Não se trata de construir uma peça de propaganda. Trata-se de seleccionar o que é essencial e operativo na sua visão, em separar o fundamental do acessório e em saber por onde quer começar. Só assim será possível colocar essa narrativa alternativa à consideração dos cidadãos e mobilizá-los para a sua construção real.

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