terça-feira, maio 14, 2013

A vida tão barata e a propriedade tão sagrada

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Maio de 2013
Crónica 18/2013

Rana Plaza: um exemplo de “eficiência”, de “produtividade”, de “racionalização de custos” e de “optimização”

O crítico de arte vitoriano e reformador social John Ruskin, que morreu em 1900, dizia, num dos seus escritos sobre economia, que um dos mais sérios problemas do capitalismo era o facto de a concorrência entre produtos poder levar a uma situação onde os produtos de menor qualidade se sobrepõem e acabam por eliminar os produtos de maior qualidade, assim condenando à falência os artesãos mais competentes e mais empenhados. Produtores e consumidores, arte e indústria e comércio, podem assim entrar numa espiral descendente onde não só a dignidade do trabalho dos artesãos mas também a qualidade de vida dos cidadãos que utilizam os artefactos que saem das mãos dos primeiros se vai degradando sem apelo.

A este tipo de argumentos respondem os defensores do liberalismo económico que o mercado se encarrega de seleccionar os melhores produtos e respondem os social-democratas que a regulação do mercado pode evitar os males que Ruskin e outros anteciparam. E há argumentação de grande elegância para defender ambos os pontos de vista. Mas o que acontece de facto no mundo é o que nós vemos: 1127 pessoas mortas pelo desabamento de um edifício no Bangladesh onde trabalhavam 5.000 operários, em condições sub-humanas, com remunerações de miséria, para fazer a roupa que nós compramos nas lojas Benetton, Mango, Primark e outras.

Chama-se a isto deslocalizar a produção - algo que todas as empresas do mundo gostam de fazer, ainda que não para qualquer país. As empresas preferem os países onde as condições de trabalho se assemelham às da escravatura, aqueles onde os trabalhadores não têm direito nem a intervalos, nem a segurança física, nem sequer a sindicatos. Os patrões, que defendem nos salões o primado da lei e os direitos humanos, deslocalizam com tanta mais vontade para um país quanto menos regulado for aí o mercado de trabalho e quanto mais frágil for a sua lei. O capitalismo, na sua sede de “eficiência”, de “produtividade”, de “racionalização de custos”, de “optimização”, de “extrair o máximo valor” dos seus recursos, de “maximizar” os seus lucros, cumpre assim sem peias o seu destino selvagem: remeter os trabalhadores ou à miséria do trabalho escravo, nos países que acolhem as empresas “deslocalizadas”, ou à miséria do desemprego, nos países de onde retira as mesmas empresas. “A vida dos homens e das mulheres é tão barata e a propriedade é tão sagrada”, exaltava-se a admirável sindicalista Rose Schneiderman em 1911, poucos dias depois de um terrível incêndio num edifício de Nova Iorque, muito semelhante ao Rana Plaza, que matou então 146 operárias da confecção. Em Nova Iorque, as operárias, todas imigrantes, judias e italianas, não puderam fugir porque as saídas de incêndio estavam fechadas a chave, “para que não fizessem intervalos”. Sempre a eficiência. “Há tantas mulheres como nós por cada emprego, que não interessa muito se 146 como nós morrerem queimadas”, dizia Schneiderman. Ainda é assim. Cem anos depois, ainda é assim. O mesmo desprezo pela vida, a mesma ganância dos patrões, agora mascarada com expressões técnicas: deslocalizar, rentabilizar, adquirir competitividade. Deslocalizar é procurar os sítios onde ainda se pode praticar escravatura. Legalmente, claro.

Em 1911, o incêndio da Triangle Shirtwaist Factory incendiou as consciências e deu origem a regulamentações de segurança no trabalho que se estenderam pelo mundo. Mas hoje as empresas sabem como poupar e como continuar a extrair o máximo valor dos seus trabalhadores: deslocalizam-se para países onde nunca se ouviu falar da Triangle Shirtwaist Factory, onde não há salário mínimo e onde os trabalhadores só podem formar um sindicato com autorização prévia do patrão. Até agora. Porque ontem as notícias relatavam uma “vitória” dos trabalhadores: uma lei vai permitir sindicatos sem autorização dos patrões. E o activista e prémio Nobel Muhammad Yunus propunha às empresas fabricantes de roupa ocidentais algo igualmente radical: um salário mínimo de 50 cêntimos de dólar.


Já repararam nas fotos do Rana Plaza? Como é que é possível enfiar 5.000 pessoas naquele espaço? E já repararam no nome? Rana Plaza é um detergente de consciências em nove caracteres.


Que mundo é este? É o mundo dos colaboracionistas Passos Coelho e Portas, dos Gaspar e Mota Soares, que comentam estarrecidos as notícias do Bangladesh nos corredores de Bruxelas, desfiando o rosário com a mão esquerda enquanto com a direita assinam a condenação à miséria e à prisão domiciliária de mais uns velhos. O Rana Plaza é o neoliberalismo em todo o seu esplendor. O sofrimento das pessoas? A condenação à miséria, à ignorância e à violência de crianças só porque nasceram num determinado bairro? O abraço de morte dos dois operários do Rana Plaza captado pela fotógrafa Taslima Akhter? Aqueles dois corpos abraçados que dizem “Somos seres humanos como tu. A nossa vida é tão preciosa como a tua e os nossos sonhos também são preciosos” como explica a fotógrafa? Não têm mais importância que um bocejo. (jvmalheiros@gmail.com)

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