sábado, setembro 07, 2013

Swaps: a compra de lotaria como técnica de gestão financeira

por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 7 de Setembro de 2013 no blog Esquerda.net (http://www.esquerda.net) incluído no dossier "O escândalo dos swaps"


A coisa mais digna de nota em todo o estranho caso dos swaps das empresas públicas não é o facto de o Governo, pela mão de Maria Luís Albuquerque, ter tentado esconder que sabia o que sabia de facto ou ter fingido que não sabia para poder acusar o governo anterior de sonegar informação. 

Também não é o facto de o governo ter decidido adiar a sua intervenção nestas empresas e deixar degradar ainda mais a sua situação financeira para poder contar com mais uma arma de arremesso contra o PS. Também não é o facto de Maria Luís Albuquerque ter levado o seu contorcionismo ético-semântico para além do que o pudor e o bom senso aconselhariam, nem o facto de a ministra ter uma noção demasiado vaga de quais são os deveres de um ministro para com o Parlamento. 
Também não é o facto de o Governo ter contratado um swapboy para secretário de Estado, nem o facto de este ter conseguido enredar-se de tal maneira nas suas diferentes versões dos factos que teve de ser sumariamente aliviado das suas responsabilidades antes que magoasse mais alguém. 
Também não é sequer o facto de estes swaps nos irem custar a todos, cidadãos-trabalhadores-contribuintes, uns milhares de milhões de euros, que se traduzirão em sacrifícios desumanos para os mais pobres (pois, infelizmente, casos com este desenlace são frequentes, como se vê na saga das PPP).

O que é mais espantoso no caso dos swaps é que as empresas públicas que os contrataram, como se tornou evidente pelas declarações dos seus vários gestores, ou não faziam ideia do que estavam a comprar (algo traduzido pelo eufemismo “produtos complexos”) ou sabiam que o que estavam a comprar era um produto de alto risco mas estavam dispostos a correr esse risco porque sabiam que esse era o preço a pagar para adiar por uns anos o momento em que a verdadeira dimensão dos problemas financeiros das suas empresas se tornaria evidente - momento esse que, se tudo corresse bem, aconteceria depois da sua saída da empresa.

O que o caso dos swaps mostra são as empresas públicas e o Estado como uma gigantesca coutada privada onde os grandes bancos entram e saem a seu bel-prazer, onde vêm caçar quando querem e como querem, onde conseguem “colocar” os seus produtos tóxicos a bom preço com um mínimo de entraves e garantia de lucros. A chave? Vender facilidades imediatas em troca de catástrofes futuras, mas que acontecerão apenas depois de os mandatos dos administradores terem terminado e depois de a legislatura ter chegado ao fim.

É evidente que pelo menos algumas destas empresas compraram algo extremamente caro, cujo custo punha em causa a sobrevivencia das suas empresas, cujo verdadeiro valor e utilidade não tinham capacidade para avaliar, mas que o compraram, apesar disso, conhecendo os riscos a que expunham o património público. Como é que isto pôde acontecer?

Uma primeira explicação tem certamente a ver com a desmesurada força negocial dos bancos, a quem esta história prova que é difícil dizer que não. Não interessa quão tóxicos são os produtos em venda: um banco de investimento conseguirá sempre encontrar clientes para eles no sector público, para que nós lhes paguemos os seus lucros. Que misteriosos poderes de persuasão terão os bancos sobre os gestores e políticos é algo que apenas podemos tentar imaginar.

Uma segunda explicação tem a ver com o carácter aleatório e volátil da especulação financeira, que está no cerne da cultura económica de hoje, totalmente desligada de qualquer ideia de produção de riqueza real. Há uma geração atrás seria impensável que um gestor comprasse um produto financeiro que não percebesse como funciona ou cuja evolução não tivesse quaisquer ferramentas para prever. Hoje, no ambiente de política de casino em que o mundo vive, isso tornou-se normal. Mais: é assim que se faz dinheiro a sério. É assim que brincam os meninos grandes. Por isso, nada mais natural que comprar bilhetes de lotaria para tentar cobrir as perdas que podem ocorrer numa empresa. As probabilidades estão contra eles? É verdade, mas podem sempre dizer que a intenção era boa e que, se lhes tivesse saído a sorte grande,…

Só que os cidadãos, nós, os accionistas destas empresas (digamos “accionistas” porque, no mundo da finança, conceitos como “cidadão” ou “pessoa” possuem uma cotação insignificante) temos o direito de exigir racionalidade e transparência na gestão das nossas empresas. Não basta dizer que “as outras empresas também fazem” ou que o banco que apresentou a proposta tem uma “reputação irrepreensível” no mercado. É imperioso que um gestor, quando toma uma decisão destas, tenha uma boa razão, compreensível, explicável, honrosa e responsável para a defender. E é igualmente imperioso que o Estado defina um quadro de actuação claro para as empresas públicas, que defina claramente os seus objectivos e responsabilidades, que lhes forneça os meios de trabalhar e não as coloque sob uma pressão que é apenas capaz de gerar contas marteladas e decisões irracionais, para exclusivo benefício dos bancos.

A não ser que o benefício dos bancos, ainda que seja à custa da destruição dos bens públicos, seja o único objectivo da operação.

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