Por José Vítor Malheiros
Julho 2013
Particularmente marcantes nas profundas mudanças que a evolução da Web e do seu uso imprimiram na nossa vida nos últimos 20 anos, e que a entrada “Web” de Hermínio Martins e José Luís Garcia abordam [ver abaixo], são o carácter cada vez mais público da nossa vida privada e, paralelamente, o carácter cada vez mais privado dos espaços públicos onde se exerce e se manifesta a nossa cidadania.
É verdade que “público” e “privado” não se referem aqui rigorosamente à mesma dimensão, como as palavras poderiam sugerir.
Quando falamos do carácter cada vez mais público da nossa vida privada referimo-nos à sua exposição e publicidade - activa e assumida ou pelo menos consentida, ainda que talvez não informadamente consentida - e à desintegração ou reconfiguração de uma certa ideia de esfera privada e de esfera íntima que é hoje subvalorizada.
Por sua vez, quando falamos do carácter cada vez mais privado dos espaços públicos que ocupamos e usamos referimo-nos à sua propriedade. De facto, os “espaços públicos” virtuais representados pelas redes sociais como o Facebook, o Twitter ou o YouTube são serviços de empresas privadas, que definem as suas próprias regras, que se apropriam dos conteúdos que os seus utilizadores publicam nas suas páginas, que podem aplicar sanções como a suspensão ou a expulsão de utilizadores individuais ou de grupos de utilizadores e que podem mesmo cessar a sua actividade de um dia para o outro devido a uma decisão que seria, no âmbito empresarial, legal e legítima.
Porém, se esta antinomia público-privado não é, na acepção em que usamos as duas palavras, perfeita, ambos os fenómenos reflectem faces de uma mesma alteração que a Web promove: uma alienação de algo que era uma prerrogativa minha e uma propriedade minha (de mim como indivíduo ou da sociedade a que pertenço) em favor de algo que nem sou eu nem a sociedade onde vivo. Há aqui uma perda, palpável, mas difícil de quantificar, tanto mais quanto ela é voluntária (no caso da publicidade da vida privada), quanto o risco é apenas potencial (no caso da propriedade privada das nossas discussões públicas) e quanto ela tem lugar como contrapartida de uma acção que confere uma real sensação de autonomia e influência - se não um real poder. Esta perda de recolhimento, de reflexão, de introspecção, esta dessensibilização em relação à exibição da intimidade, esta renúncia a um tempo só meu, a um pensamento só meu, desvalorizará inevitavelmente o que é único e pessoal e intransmissível ou poderá estar na origem de uma nova proximidade e compreensão entre as pessoas, de uma nova transmissibilidade? Tornar-nos-emos mais humanos ou mais espectadores por causa disso?
E o estatuto privado dos novos espaços públicos saldar-se-á pela construção de um espaço virtual verdadeiramente comunitário, um commons da web (ar, água, comida, terra... Internet?), ou pela sua evolução para condomínios fechados, espaços de exclusão? Vamos nacionalizar ou privatizar as redes sociais?
As relações de poder no tabuleiro da Web estão ainda em grande turbilhão, mas o que é evidente desde já é que a Web se tornou demasiado central como campo de exercício de cidadania para ser controlada pelas regras do mercado - ainda que isso não queira dizer que tal coisa não possa acontecer. As regras que temos de fazer vingar nesta arena são as regras da democracia e as dos direitos humanos. O que significa, no mínimo, que há um commons que é preciso inventar na web e defender e que vai muito para além da defesa da neutralidade da infraestrutura da web. Se a Web não for democrática, nada o será. E não, ninguém disse que ia ser fácil.
José Vítor Malheiros
Julho 2013
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É verdade que “público” e “privado” não se referem aqui rigorosamente à mesma dimensão, como as palavras poderiam sugerir.
Quando falamos do carácter cada vez mais público da nossa vida privada referimo-nos à sua exposição e publicidade - activa e assumida ou pelo menos consentida, ainda que talvez não informadamente consentida - e à desintegração ou reconfiguração de uma certa ideia de esfera privada e de esfera íntima que é hoje subvalorizada.
Por sua vez, quando falamos do carácter cada vez mais privado dos espaços públicos que ocupamos e usamos referimo-nos à sua propriedade. De facto, os “espaços públicos” virtuais representados pelas redes sociais como o Facebook, o Twitter ou o YouTube são serviços de empresas privadas, que definem as suas próprias regras, que se apropriam dos conteúdos que os seus utilizadores publicam nas suas páginas, que podem aplicar sanções como a suspensão ou a expulsão de utilizadores individuais ou de grupos de utilizadores e que podem mesmo cessar a sua actividade de um dia para o outro devido a uma decisão que seria, no âmbito empresarial, legal e legítima.
Porém, se esta antinomia público-privado não é, na acepção em que usamos as duas palavras, perfeita, ambos os fenómenos reflectem faces de uma mesma alteração que a Web promove: uma alienação de algo que era uma prerrogativa minha e uma propriedade minha (de mim como indivíduo ou da sociedade a que pertenço) em favor de algo que nem sou eu nem a sociedade onde vivo. Há aqui uma perda, palpável, mas difícil de quantificar, tanto mais quanto ela é voluntária (no caso da publicidade da vida privada), quanto o risco é apenas potencial (no caso da propriedade privada das nossas discussões públicas) e quanto ela tem lugar como contrapartida de uma acção que confere uma real sensação de autonomia e influência - se não um real poder. Esta perda de recolhimento, de reflexão, de introspecção, esta dessensibilização em relação à exibição da intimidade, esta renúncia a um tempo só meu, a um pensamento só meu, desvalorizará inevitavelmente o que é único e pessoal e intransmissível ou poderá estar na origem de uma nova proximidade e compreensão entre as pessoas, de uma nova transmissibilidade? Tornar-nos-emos mais humanos ou mais espectadores por causa disso?
E o estatuto privado dos novos espaços públicos saldar-se-á pela construção de um espaço virtual verdadeiramente comunitário, um commons da web (ar, água, comida, terra... Internet?), ou pela sua evolução para condomínios fechados, espaços de exclusão? Vamos nacionalizar ou privatizar as redes sociais?
As relações de poder no tabuleiro da Web estão ainda em grande turbilhão, mas o que é evidente desde já é que a Web se tornou demasiado central como campo de exercício de cidadania para ser controlada pelas regras do mercado - ainda que isso não queira dizer que tal coisa não possa acontecer. As regras que temos de fazer vingar nesta arena são as regras da democracia e as dos direitos humanos. O que significa, no mínimo, que há um commons que é preciso inventar na web e defender e que vai muito para além da defesa da neutralidade da infraestrutura da web. Se a Web não for democrática, nada o será. E não, ninguém disse que ia ser fácil.
José Vítor Malheiros
Julho 2013
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“Portugal Social de A a Z” - Edição do Instituto de Ciências Sociais (ICS) 2013Coordenação de José Luís Cardoso, Pedro Magalhães e José Machado Pais
WEB
por Hermínio Martins e José Luís Garcia
A Web, sensivelmente como funciona hoje, data da década de 1990. Trata-se pois de um acontecimento recente, embora tão incorporado no quotidiano que se “naturalizou” tanto ou mais como qualquer outro fenómeno cultural, qualquer “tecno-facto” da vida pré-digital. Para além dos computadores pessoais habituais, hoje temos que ter em conta a difusão dos dispositivos de comunicação móveis, smartphones e tablets, especialmente os com acesso à Internet de banda larga. Os smartphones têm estado a adquirir variadíssimas funcionalidades, tornando-se um paradigma do dispositivo digital maxi-funcional. Acrescem ainda as dezenas de milhares de aplicações (apps) já desenvolvidas com outras a aparecer constantemente, para uso local ou trans-local, para sectores restritos da população ou para um grande universo de utilizadores, em rápida expansão. A velocidade de difusão dos telemóveis foi considerável, mas a difusão internacional dos smartphones tem sido avaliada por muitos comentadores como a mais rápida das tecnologias de consumidor em toda a história da civilização industrial, decerto da história das telecomunicações. De qualquer modo, o mundo, e a vida quotidiana, tornaram-se inimagináveis e mesmo impossíveis, sem esta aparelhagem, a sua presença e disponibilização contínua.
Em 2000 tinham acesso à Internet de banda larga cerca de 50 milhões de pessoas. Em 2012 contavam-se 2 mil milhões de pessoas (mais de um terço da população mundial). Em alguns anos, segundo extrapolações correntes, poderão contar-se 5 mil milhões de pessoas, o que tornaria a Internet a mais planetária e planetarizante das tecnologias de informação e comunicação na história. Mesmo assim, as preocupações com a “fractura” ou “fosso digital”, ou melhor os fossos digitais, têm sido permanentes nas últimas décadas. O exemplo mais óbvio desta assimetria, inicialmente, foi a disparidade entre os países avançados e os outros, em especial no caso dos países africanos, onde a infraestrutura de telecomunicações estava bem menos articulada, embora os telemóveis se tenham difundido extremamente nalguns países, ainda que sem acesso à Internet. De qualquer modo, esta distância está a diminuir constantemente. Alguns países saltaram para além da época dos telefones fixos para a era dos telemóveis (na Índia o número de assinantes de telemóveis é quase o mesmo que o dos habitantes do país), e agora para a era dos smartphones e dos tablets sem fios, embora com acesso limitado à Internet de banda larga, sem passar pela fase de expansão de telemóveis que nos países ocidentais precedeu a erupção dos smartphones.
O fosso digital dentro dos países, entre classes, grupos etárias ou gerações, por exemplo, deve ser registado: mesmo nos EUA, vinte milhões de pessoas não estão conectadas à Internet, por razões económicas. A disparidade mais comentada dentro dos países “avançados” tem sido entre as gerações, e especialmente entre os chamados “nativos digitais” e os que tiveram de se adaptar às novas tecnologias com um certo atraso ou capacidades limitadas. No entanto, em vários países tem-se verificado uma disposição cada vez maior para aceder à Internet da parte da população mais idosa, não só para informações de todo o tipo, para contactos pessoais e para entretenimento. A população mais jovem, dezenas ou mesmo centenas de milhões de adolescentes em todo o mundo, consome parte das suas energias psíquicas envolvidos em jogos online. Fora dos grupos mais jovens, o nível de instrução marca significativamente as disparidades na utilização regular da Internet. Em Portugal encontramos uma diferença de 58% entre os níveis de maior e menor instrução, por comparação à média da União Europeia a 27, onde existe uma distância de 46 pontos percentuais (dados Eurostat referentes a 2012).
O homo connexus, a pessoa que vive online, que se liga aos outros instantaneamente por dispositivos digitais, qualquer que seja a distância, paradoxalmente, é também cada vez mais um homo urbanus, concentrado em gigantescos centros urbanos. Parece que, mesmo com a grande “densidade dinâmica” de ligações virtuais muito extensas e de todos os tipos, cognitivas, afectivas, lúdicas, profissionais, e a alegada “morte da distância” precisamos ainda de viver em grandes cidades, ou numa série delas. Sujeitamo-nos à condição de estarmos “sós juntos” (o “alone together” de Sherry Turkle), vivendo “solidões interactivas” (no conceito de Dominique Wolton), assim como não-interactivas. Em Portugal, a concentração na costa marítima urbanizada parece uma tendência irresistível. Os tele-modos em rede de comunicação (emails, IMs, Web, redes sociais informáticas variadas, gerais ou especializadas), de cooperação, trabalho, negociação, coordenação, discussão, colaboração intelectual, comunicação e pesquisa científica, convívio, sexualidade, evangelização, comércio, mobilização humanitária ou política, etc., virtuais, são de vasta e crescente utilização. No nosso país, 45% da população publicava mensagens em redes sociais online ou enviava mensagens instantâneas, e 33% carregava conteúdo criado pelos próprios (dados Eurostat referentes a 2012).
Foi já proclamado o advento da “ciência-em-rede” (Michael Nielsen), da “economia em rede”, da “sociedade-em-rede” (Manuel Castells), da “sociedade de indivíduos-em-rede” (Barry Wellman), da “inteligência colectiva” dos internautas (Pierre Lévy), da “sabedoria das multidões” (James Surowiecki). No limite, surge a visão da Internet, com os seus milhares de milhões de internautas, como uma “mente-colmeia” (hive mind) planetária emergente, uma espécie de super-mente gerada pelas sinergias dos internautas: uma imagem inspirada no conceito de “noosfera” de Teilhard de Chardin. No entanto, os contactos pessoais, presenciais, em lugares físicos, como em reuniões, debates, colóquios, congressos (muitos deles com milhares de pessoas vindo de vários países e continentes), conferências, cimeiras, nacionais, internacionais, globais, multiplicam-se como nunca, especialmente em grandes centros urbanos (há excepções como Davos, e outras desse tipo, em que se encontram as super-elites económicas, financeiras, políticas, globais em locais afastados das metrópoles). É verdade que mesmo nesses encontros da vida real passa-se uma boa parte do tempo a ler e enviar mensagens electrónicas ou conversar com terceiros pelo telemóvel, quando não se está a olhar para ecrãs electrónicos ou para ecrãs de computadores, quase apagando a diferença entre seminários e webinars, entre conferências e tele-conferências. Muitos empresários e académicos passam a vida online e a viajar de avião, situação resumida na frase “net and jet”.
O Sistema Internet de hoje não foi desenhado, planeado ou instituído por ninguém em particular: constituiu-se gradualmente pelas interacções e ajustes mútuos de inúmeros agentes, inventores e organizações, como uma verdadeira “ordem espontânea” no sentido dado pelo teórico da economia Friedrich Hayek. Mesmo se este tenha pensado essencialmente em formações sócio-culturais como as linguagens naturais, o dinheiro como instituição, as tradições, os mercados e a “Common Law” da Inglaterra como emergentes não desenhados e planeados, a Internet hoje representa um excelente exemplo do que Hayek tinha em mente. Isto é especialmente verdade se nos lembrarmos que salientou que aquelas formações emergentes complexas não podem ser compreendidas de forma consciente na sua totalidade pelos participantes ou por terceiros, dependendo de conhecimento tácito, muito disperso, não codificável ou redutível a algoritmos (o que também é válido para os sistemas computacionais em geral). Hayek não se cansava de nos prevenir da vulnerabilidade de formações sociais e culturais não desenhadas, com os seus preciosos bens civilizacionais, pois podem ser corroídas ou mesmo rapidamente destruídas por factores políticos ou ideológicos, pela hybris cientificista ou tecnocrática, após terem sido obras de séculos.
A Internet de hoje constituiu-se espontaneamente, mas hoje representa o sistema tecnológico mais complexo do mundo, pelo menos à escala planetária, numa era de sistemas tecnológicos ou tecnocientíficos (como o Large Hadron Collider) muito complexos, e de todos os tempos. Estes sistemas tecnológicos são vulneráveis, especialmente os de tight coupling entre os seu subsistemas. Isto não só por impactos exteriores (desastres naturais, ataques bélicos, terrorismo), mas também por factores endógenos, inerentes, variados, que explicam que os acidentes ocorram “normalmente” (na acepção de Charles Perrow), quaisquer que sejam os cuidados contínuos e os mecanismos de segurança instalados. A Internet adquiriu uma grande resiliência, mas falhas e colapsos parciais e episódicos podem ocorrer, possivelmente devido a ciber-ataques intensos como ocorreu recentemente na Holanda. Apesar daquela capacidade de resposta, existe uma ciber-insegurança permanente dentro desse quadro. As investidas de piratas informáticos, vírus e outras formas de malware, a organizações económicas e todos os sistemas tecnológicos, tecno-económicos, industriais, militares, governamentais, controlados a algum nível por programas de software com alguma ligação à Internet, ocorrem constantemente. Esses ataques informáticos ou ciber-ataques podem partir de agências estatais, militares ou civis, criminosos, conjuntos de pessoas partilhando convicções ideológicas (o caso dos wikileaks ou offshore leaks), ou mesmo de pessoas isoladas sem qualquer objectivo definido, para além da satisfação pessoal de conseguir aceder ao proibido e vedado por códigos de segurança ultra-sofisticados, como os do Pentágono ou da Marinha dos EUA. Todos os sistemas conectados à Internet são vulneráveis a este tipo de agressões. O volume ou importância desses ataques, que têm lugar entre certos Estados de ciber-espionagem económica e militar em grande escala mas também de destruição ou de incapacitação de complexos tecnológicos via malware (como no caso do Stuxnet e o nuclear no Irão), é tal que se poderia dizer que de certo modo já vivemos na era de guerra fria cibernética. O ciberespaço adicionou-se à terra, o ar, os mares, e o espaço exterior dos satélites, como um quarto domínio de combate militar e de luta política envolvendo Estados e actores não-estatais.
Segundo a regra da “neutralidade da rede”, a Internet seria acessível a todos, sem discriminação de conteúdos, com excepções que se teriam de justificar caso a caso. No entanto, os filtros sucedem-se, em regimes democráticos, mas sobretudo em autoritários. Caso paradigmático é a “Grande Muralha Digital da China”, que impede o acesso a diversos sítios Web e conteúdos aos seus nacionais. Há que considerar também que um pequeno número de mega-plataformas gozam da preferência de centenas de milhões de internautas, como Google, Facebook, Twitter, reproduzindo domínios tecnológicos anteriores como os da Microsoft e da Apple, apesar do contra-movimento do software livre. Como explicar esta concentração, além do poder económico e de lóbis políticos? Um factor crucial foram os “efeitos de rede”. Segundo a “lei de Metcalfe”, as vantagens de empresas das indústrias digitais crescem exponencialmente com o número de utilizadores, podendo resultar assim a longo prazo num pequeno número de empresas gigantescas.
Como sugere Tim Wu, a história das indústrias digitais recentes recapitula o padrão histórico da economia das telecomunicações desde o século XIX, mas com a especificidade do “poder de redes” associado a algumas inovações de Silicon Valley nas últimas décadas. Sem dúvida que essas empresas podem abusar do seu poder, que querem ampliar com meios por vezes ilegais. A Microsoft, em particular, tem sido objecto de processos nos tribunais de vários países e na União Europeia devido a leis anti-monopolísticas. O “poder de redes” favorece a concentração neste domínio, como outras leis de potência (das quais a lei de Metcalfe é um exemplo), segundo as quais a distribuição de rendimento, riqueza, fama, prestígio, citações, status das universidades, o tamanho demográfico das cidades, etc., tende a aproximar-se de um padrão de desigualdade nos moldes da clássica “lei de Pareto”, 20/80. De acordo com esta lei, existe uma tendência forte para que a longo prazo se efectue uma convergência para um estado de coisas em que, mais ou menos, 20 % de uma população nacional possua 80% da riqueza ou desfrute de 80% do rendimento nacional (as proporções exactas podem variar consideravelmente).
Desde a década de 1970 as economias ocidentais sofreram um processo de concentração de rendimento, contrariando a tendência histórica de quase cem anos para maior igualdade da sua distribuição, que alguns cientistas sociais caracterizaram como uma lei de evolução das sociedades industriais. As leis de potência da economia das redes, inclusive do sector das telecomunicações digitais, ou mesmo de todos os domínios sócio-económicos afectados pela Revolução Digital, seguem esta trajectória: a “economia do imaterial”, a “economia de redes”, em que programas de software contam decisivamente em todos os domínios da vida tecno-económica e da vida social, está sujeita a “efeitos de rede” sem fim. As novas tecnologias da informação e a gestão do conhecimento pelo mercado como uma matéria prima substancial das economias estão a ser os meios através dos quais se está a operar a transformação do capitalismo no século XXI num modelo de exploração do máximo de possibilidades produtivas digitais. O novo tipo de capitalismo tem na dimensão informativa, tecnocientífica e cognitiva o seu grande capital imaterial. Um novo mundo, de patentes, de propriedade intelectual, aplicações, recursos humanos, comunicação e publicidade, plasma a nova dimensão do capitalismo. Como observa um dos vários teóricos da economia digital, Ramón Zallo (2011), se o ambiente digital congrega oportunidades inegáveis, relativas à distribuição da cultura, os riscos e problemas não são menores. A concentração do capital traduz-se em perda substantiva do pluralismo quanto à criação e distribuição culturais. Agudizam-se as limitações à diversidade cultural, a que se articula a clivagem crescente entre uma cultura transnacional de matriz anglo-saxónica e as culturas locais, remetidas cada vez mais para circuitos de nicho. A desterritorialização dos serviços intelectuais suscita também problemas quanto ao reconhecimento e remuneração da produção informativa e cultural, de que são expressões a usurpação e a imitação. A sociedade de informação global tem representado fundamentalmente a integração da informação e do conhecimento na esfera e dinâmica do mercado mundial.
Que modelos de relações sociais, que formas de vida, que modos de sociabilidade e de associação serão particularmente favorecidos a longo prazo pela saturação das nossas economias e sociedades pelos media digitais, e pela Internet, como medium dos media digitais? Uma tese abrangente elaborada por sociólogos recentemente pode ser resumida como a do “individualismo de redes”, que floresce neste mundo de digitalização e reticularização, com a Revolução Tripla. No essencial, afirma que há uma certa perda de relação com os grupos sociais tradicionais, para participarmos, anonimamente ou com identidades múltiplas, em redes sociais de vários tipos, que se multiplicam em termos de diferentes interesses e preocupações (por exemplo, de pacientes, de doentes de uma ou outra doença específica, de aficionados de um desporto ou outro, de uma actividade de lazer ou outra, de adolescentes obcecados com o suicídio…). Mesmo os nossos contactos, irregulares, frequentes ou mesmo diários, com a família, a escola, os amigos, colegas, as comunidades locais, fazem-se em parte através de redes sociais digitais ou pelo menos on-line (ainda mais no caso de participarmos em escolas virtuais e associações virtuais). O mesmo ocorre com a concertação de acções no mundo físico, cívicas ou políticas, desde as flash mobs até aos movimentos da Primavera Árabe e outros análogos.
Com as tecnologias digitais, todos podem procurar informação actualizada navegando na Internet, desafiando os peritos (um exemplo da muito apregoada “desintermediação”), mas faltam ainda mecanismos relativamente adequados para assegurar a fiabilidade do que se encontra ou de corrigir erros e falsidades (de informações e de fotos). Estamos longe de nos aproximarmos de um espaço público em que a racionalidade comunicativa proposta por Habermas possa avançar com relativa facilidade. O “imperativo de partilha on-line”, especialmente potente com respeito a música, fotos e vídeo, parece ser um dos traços de maior importância na sociedade de redes. Todavia, a partilha on-line é também de rumores e notícias falsas, de parcialidades, e inclusivamente de ódios. Muitas vezes o homo connexus surge como homo credulus, intoxicando-se com teorias conspirativas ou negacionistas de toda a espécie, “virais”. Todos podem ser autores, editores, broadcasters, propagandistas ou agitadores através das redes sociais digitais ou blogues, mas as leis de potência funcionam aqui também. A “electrografia”, a escrita em processador de texto ou em dispositivos móveis (mensagens de texto em especial), tem evidentemente alterado ortografia, sintaxe e léxico entre muitos cibernautas jovens devido em parte aos imperativos de concisão em mensagens rápidas: degradação cognitiva segundo alguns, criatividade segundo outros (a epistolografia da intimidade on-line tem sido comentada dos mesmos modos). Seja como for, a electrografia representa hoje uma força na transformação da linguagem e das línguas nacionais.
Se existe um individualismo de redes, funcionam também colectivos em redes digitais por toda a parte: as organizações económicas, os partidos políticos, as organizações estatais, funcionam também cada vez mais em rede. É pois adequado falar de uma economia de redes, de sistemas políticos em rede, de Estados em vias de reticularização, enfim, de “colectivos de redes”, e até de “colectivismo de redes” (Jaron Lanier chegou a falar de “Maoismo digital”). A tendência para o individualismo de redes representa uma aposta em que as facilidades de florescimento da vida individual num mundo reticular irão prevalecer sobre as outras formas de sociação transindividual em redes que poderão redefinir a escolha livre, a criatividade, a mobilidade cultural. Esta redefinição terá sentidos menos conformes a um individualismo moral e político consentâneo com a autêntica continuação do individualismo ocidental, com o seu legado cristão e kantiano, que prezava a vida privada (a eliminação da privacidade decorre da vida digital), a responsabilidade moral, o sentido crítico, a independência perante a doxa, o distanciamento da mundanidade.
Além disso, não há e-mail, mensagem de texto, mensagem instantânea, que não deixe rasto: todos os cibernautas deixam a sua “pegada digital”, a sua “sombra digital”. A vida on-line é praticamente toda capturável por Estados, e muita dela a acessível a várias agências ou piratas informáticos. A nossa vida on-line é arquivada por multinacionais e outras empresas, que procuram satisfazer-nos pelo conhecimento das “preferências” registadas pelos nossos actos digitais (todos os cliques), desde a mais tenra idade até à morte, mas que tornam os internautas em clientes a cada segundo do nosso quotidiano. A “aldeia global” manifesta-se hoje como um “centro comercial global”, a mercantilização universaliza-se pari passu com a digitalização e reticularização das nossas vidas individuais, profissionais, colectivas, organizacionais. O “individualismo de redes” é acompanhado pela economia de redes, o sistema financeiro de redes, o sistema político de redes, o mercado mundial de redes. O individualismo de redes também se pode caracterizar como “individualismo de redes de mercado” (com os cibernautas observados e solicitados permanentemente por empresas) ou como um individualismo de redes monitorizadas por Estados. E ainda não se vê como o individualismo de redes poderá superar a força das identidades primordiais, do sentido de pertença, da necessidade de pertença, a grupos e comunidades como etnias, comunidades linguísticas, nações, comunidades religiosas transnacionais (que recorrem também às tecnologias digitais com uma certa eficácia).
A Internet, a Web e as tecnologias digitais de informação e comunicação afectam praticamente todos os domínios sociais, económicos, financeiros, políticos, culturais, artísticos, científicos, religiosos da nossa civilização, bem como os nossos cérebros e mentes. Evidentemente, nestas páginas só nos foi possível aflorar alguns tópicos de um vasto leque de assuntos que a Revolução Digital em curso pode sugerir.
BIBLIOGRAFIA
Castells, Manuel. (2007) A Sociedade em Rede. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, Lisboa, Gulbenkian
Doueihi, Milad (2008) La grande conversion numérique Paris, Seuil
Furtado, José Afonso (2012) Uma cultura da informação para o universo digital Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos
Rainie, Lee and Barry Wellman (2012) Networked: The new social operating system. Cambridge, MIT Press.
Turkle, Sherry (2011) Alone and together – why we expect more from technology and less from each other NY, Basic Books
Wu, Tom (2010) The master switch – the rise and fall of information empires NY, Random House
Lanier, Jaron (2006) "Digital Maoism: The hazards of the new online collectivism." The Edge 183.
Zallo, Ramón (2011) Estructuras de la comunicación y de la cultura. Políticas para la era digital. Barcelona. Editorial Gedisa.
A Web, sensivelmente como funciona hoje, data da década de 1990. Trata-se pois de um acontecimento recente, embora tão incorporado no quotidiano que se “naturalizou” tanto ou mais como qualquer outro fenómeno cultural, qualquer “tecno-facto” da vida pré-digital. Para além dos computadores pessoais habituais, hoje temos que ter em conta a difusão dos dispositivos de comunicação móveis, smartphones e tablets, especialmente os com acesso à Internet de banda larga. Os smartphones têm estado a adquirir variadíssimas funcionalidades, tornando-se um paradigma do dispositivo digital maxi-funcional. Acrescem ainda as dezenas de milhares de aplicações (apps) já desenvolvidas com outras a aparecer constantemente, para uso local ou trans-local, para sectores restritos da população ou para um grande universo de utilizadores, em rápida expansão. A velocidade de difusão dos telemóveis foi considerável, mas a difusão internacional dos smartphones tem sido avaliada por muitos comentadores como a mais rápida das tecnologias de consumidor em toda a história da civilização industrial, decerto da história das telecomunicações. De qualquer modo, o mundo, e a vida quotidiana, tornaram-se inimagináveis e mesmo impossíveis, sem esta aparelhagem, a sua presença e disponibilização contínua.
Em 2000 tinham acesso à Internet de banda larga cerca de 50 milhões de pessoas. Em 2012 contavam-se 2 mil milhões de pessoas (mais de um terço da população mundial). Em alguns anos, segundo extrapolações correntes, poderão contar-se 5 mil milhões de pessoas, o que tornaria a Internet a mais planetária e planetarizante das tecnologias de informação e comunicação na história. Mesmo assim, as preocupações com a “fractura” ou “fosso digital”, ou melhor os fossos digitais, têm sido permanentes nas últimas décadas. O exemplo mais óbvio desta assimetria, inicialmente, foi a disparidade entre os países avançados e os outros, em especial no caso dos países africanos, onde a infraestrutura de telecomunicações estava bem menos articulada, embora os telemóveis se tenham difundido extremamente nalguns países, ainda que sem acesso à Internet. De qualquer modo, esta distância está a diminuir constantemente. Alguns países saltaram para além da época dos telefones fixos para a era dos telemóveis (na Índia o número de assinantes de telemóveis é quase o mesmo que o dos habitantes do país), e agora para a era dos smartphones e dos tablets sem fios, embora com acesso limitado à Internet de banda larga, sem passar pela fase de expansão de telemóveis que nos países ocidentais precedeu a erupção dos smartphones.
O fosso digital dentro dos países, entre classes, grupos etárias ou gerações, por exemplo, deve ser registado: mesmo nos EUA, vinte milhões de pessoas não estão conectadas à Internet, por razões económicas. A disparidade mais comentada dentro dos países “avançados” tem sido entre as gerações, e especialmente entre os chamados “nativos digitais” e os que tiveram de se adaptar às novas tecnologias com um certo atraso ou capacidades limitadas. No entanto, em vários países tem-se verificado uma disposição cada vez maior para aceder à Internet da parte da população mais idosa, não só para informações de todo o tipo, para contactos pessoais e para entretenimento. A população mais jovem, dezenas ou mesmo centenas de milhões de adolescentes em todo o mundo, consome parte das suas energias psíquicas envolvidos em jogos online. Fora dos grupos mais jovens, o nível de instrução marca significativamente as disparidades na utilização regular da Internet. Em Portugal encontramos uma diferença de 58% entre os níveis de maior e menor instrução, por comparação à média da União Europeia a 27, onde existe uma distância de 46 pontos percentuais (dados Eurostat referentes a 2012).
O homo connexus, a pessoa que vive online, que se liga aos outros instantaneamente por dispositivos digitais, qualquer que seja a distância, paradoxalmente, é também cada vez mais um homo urbanus, concentrado em gigantescos centros urbanos. Parece que, mesmo com a grande “densidade dinâmica” de ligações virtuais muito extensas e de todos os tipos, cognitivas, afectivas, lúdicas, profissionais, e a alegada “morte da distância” precisamos ainda de viver em grandes cidades, ou numa série delas. Sujeitamo-nos à condição de estarmos “sós juntos” (o “alone together” de Sherry Turkle), vivendo “solidões interactivas” (no conceito de Dominique Wolton), assim como não-interactivas. Em Portugal, a concentração na costa marítima urbanizada parece uma tendência irresistível. Os tele-modos em rede de comunicação (emails, IMs, Web, redes sociais informáticas variadas, gerais ou especializadas), de cooperação, trabalho, negociação, coordenação, discussão, colaboração intelectual, comunicação e pesquisa científica, convívio, sexualidade, evangelização, comércio, mobilização humanitária ou política, etc., virtuais, são de vasta e crescente utilização. No nosso país, 45% da população publicava mensagens em redes sociais online ou enviava mensagens instantâneas, e 33% carregava conteúdo criado pelos próprios (dados Eurostat referentes a 2012).
Foi já proclamado o advento da “ciência-em-rede” (Michael Nielsen), da “economia em rede”, da “sociedade-em-rede” (Manuel Castells), da “sociedade de indivíduos-em-rede” (Barry Wellman), da “inteligência colectiva” dos internautas (Pierre Lévy), da “sabedoria das multidões” (James Surowiecki). No limite, surge a visão da Internet, com os seus milhares de milhões de internautas, como uma “mente-colmeia” (hive mind) planetária emergente, uma espécie de super-mente gerada pelas sinergias dos internautas: uma imagem inspirada no conceito de “noosfera” de Teilhard de Chardin. No entanto, os contactos pessoais, presenciais, em lugares físicos, como em reuniões, debates, colóquios, congressos (muitos deles com milhares de pessoas vindo de vários países e continentes), conferências, cimeiras, nacionais, internacionais, globais, multiplicam-se como nunca, especialmente em grandes centros urbanos (há excepções como Davos, e outras desse tipo, em que se encontram as super-elites económicas, financeiras, políticas, globais em locais afastados das metrópoles). É verdade que mesmo nesses encontros da vida real passa-se uma boa parte do tempo a ler e enviar mensagens electrónicas ou conversar com terceiros pelo telemóvel, quando não se está a olhar para ecrãs electrónicos ou para ecrãs de computadores, quase apagando a diferença entre seminários e webinars, entre conferências e tele-conferências. Muitos empresários e académicos passam a vida online e a viajar de avião, situação resumida na frase “net and jet”.
O Sistema Internet de hoje não foi desenhado, planeado ou instituído por ninguém em particular: constituiu-se gradualmente pelas interacções e ajustes mútuos de inúmeros agentes, inventores e organizações, como uma verdadeira “ordem espontânea” no sentido dado pelo teórico da economia Friedrich Hayek. Mesmo se este tenha pensado essencialmente em formações sócio-culturais como as linguagens naturais, o dinheiro como instituição, as tradições, os mercados e a “Common Law” da Inglaterra como emergentes não desenhados e planeados, a Internet hoje representa um excelente exemplo do que Hayek tinha em mente. Isto é especialmente verdade se nos lembrarmos que salientou que aquelas formações emergentes complexas não podem ser compreendidas de forma consciente na sua totalidade pelos participantes ou por terceiros, dependendo de conhecimento tácito, muito disperso, não codificável ou redutível a algoritmos (o que também é válido para os sistemas computacionais em geral). Hayek não se cansava de nos prevenir da vulnerabilidade de formações sociais e culturais não desenhadas, com os seus preciosos bens civilizacionais, pois podem ser corroídas ou mesmo rapidamente destruídas por factores políticos ou ideológicos, pela hybris cientificista ou tecnocrática, após terem sido obras de séculos.
A Internet de hoje constituiu-se espontaneamente, mas hoje representa o sistema tecnológico mais complexo do mundo, pelo menos à escala planetária, numa era de sistemas tecnológicos ou tecnocientíficos (como o Large Hadron Collider) muito complexos, e de todos os tempos. Estes sistemas tecnológicos são vulneráveis, especialmente os de tight coupling entre os seu subsistemas. Isto não só por impactos exteriores (desastres naturais, ataques bélicos, terrorismo), mas também por factores endógenos, inerentes, variados, que explicam que os acidentes ocorram “normalmente” (na acepção de Charles Perrow), quaisquer que sejam os cuidados contínuos e os mecanismos de segurança instalados. A Internet adquiriu uma grande resiliência, mas falhas e colapsos parciais e episódicos podem ocorrer, possivelmente devido a ciber-ataques intensos como ocorreu recentemente na Holanda. Apesar daquela capacidade de resposta, existe uma ciber-insegurança permanente dentro desse quadro. As investidas de piratas informáticos, vírus e outras formas de malware, a organizações económicas e todos os sistemas tecnológicos, tecno-económicos, industriais, militares, governamentais, controlados a algum nível por programas de software com alguma ligação à Internet, ocorrem constantemente. Esses ataques informáticos ou ciber-ataques podem partir de agências estatais, militares ou civis, criminosos, conjuntos de pessoas partilhando convicções ideológicas (o caso dos wikileaks ou offshore leaks), ou mesmo de pessoas isoladas sem qualquer objectivo definido, para além da satisfação pessoal de conseguir aceder ao proibido e vedado por códigos de segurança ultra-sofisticados, como os do Pentágono ou da Marinha dos EUA. Todos os sistemas conectados à Internet são vulneráveis a este tipo de agressões. O volume ou importância desses ataques, que têm lugar entre certos Estados de ciber-espionagem económica e militar em grande escala mas também de destruição ou de incapacitação de complexos tecnológicos via malware (como no caso do Stuxnet e o nuclear no Irão), é tal que se poderia dizer que de certo modo já vivemos na era de guerra fria cibernética. O ciberespaço adicionou-se à terra, o ar, os mares, e o espaço exterior dos satélites, como um quarto domínio de combate militar e de luta política envolvendo Estados e actores não-estatais.
Segundo a regra da “neutralidade da rede”, a Internet seria acessível a todos, sem discriminação de conteúdos, com excepções que se teriam de justificar caso a caso. No entanto, os filtros sucedem-se, em regimes democráticos, mas sobretudo em autoritários. Caso paradigmático é a “Grande Muralha Digital da China”, que impede o acesso a diversos sítios Web e conteúdos aos seus nacionais. Há que considerar também que um pequeno número de mega-plataformas gozam da preferência de centenas de milhões de internautas, como Google, Facebook, Twitter, reproduzindo domínios tecnológicos anteriores como os da Microsoft e da Apple, apesar do contra-movimento do software livre. Como explicar esta concentração, além do poder económico e de lóbis políticos? Um factor crucial foram os “efeitos de rede”. Segundo a “lei de Metcalfe”, as vantagens de empresas das indústrias digitais crescem exponencialmente com o número de utilizadores, podendo resultar assim a longo prazo num pequeno número de empresas gigantescas.
Como sugere Tim Wu, a história das indústrias digitais recentes recapitula o padrão histórico da economia das telecomunicações desde o século XIX, mas com a especificidade do “poder de redes” associado a algumas inovações de Silicon Valley nas últimas décadas. Sem dúvida que essas empresas podem abusar do seu poder, que querem ampliar com meios por vezes ilegais. A Microsoft, em particular, tem sido objecto de processos nos tribunais de vários países e na União Europeia devido a leis anti-monopolísticas. O “poder de redes” favorece a concentração neste domínio, como outras leis de potência (das quais a lei de Metcalfe é um exemplo), segundo as quais a distribuição de rendimento, riqueza, fama, prestígio, citações, status das universidades, o tamanho demográfico das cidades, etc., tende a aproximar-se de um padrão de desigualdade nos moldes da clássica “lei de Pareto”, 20/80. De acordo com esta lei, existe uma tendência forte para que a longo prazo se efectue uma convergência para um estado de coisas em que, mais ou menos, 20 % de uma população nacional possua 80% da riqueza ou desfrute de 80% do rendimento nacional (as proporções exactas podem variar consideravelmente).
Desde a década de 1970 as economias ocidentais sofreram um processo de concentração de rendimento, contrariando a tendência histórica de quase cem anos para maior igualdade da sua distribuição, que alguns cientistas sociais caracterizaram como uma lei de evolução das sociedades industriais. As leis de potência da economia das redes, inclusive do sector das telecomunicações digitais, ou mesmo de todos os domínios sócio-económicos afectados pela Revolução Digital, seguem esta trajectória: a “economia do imaterial”, a “economia de redes”, em que programas de software contam decisivamente em todos os domínios da vida tecno-económica e da vida social, está sujeita a “efeitos de rede” sem fim. As novas tecnologias da informação e a gestão do conhecimento pelo mercado como uma matéria prima substancial das economias estão a ser os meios através dos quais se está a operar a transformação do capitalismo no século XXI num modelo de exploração do máximo de possibilidades produtivas digitais. O novo tipo de capitalismo tem na dimensão informativa, tecnocientífica e cognitiva o seu grande capital imaterial. Um novo mundo, de patentes, de propriedade intelectual, aplicações, recursos humanos, comunicação e publicidade, plasma a nova dimensão do capitalismo. Como observa um dos vários teóricos da economia digital, Ramón Zallo (2011), se o ambiente digital congrega oportunidades inegáveis, relativas à distribuição da cultura, os riscos e problemas não são menores. A concentração do capital traduz-se em perda substantiva do pluralismo quanto à criação e distribuição culturais. Agudizam-se as limitações à diversidade cultural, a que se articula a clivagem crescente entre uma cultura transnacional de matriz anglo-saxónica e as culturas locais, remetidas cada vez mais para circuitos de nicho. A desterritorialização dos serviços intelectuais suscita também problemas quanto ao reconhecimento e remuneração da produção informativa e cultural, de que são expressões a usurpação e a imitação. A sociedade de informação global tem representado fundamentalmente a integração da informação e do conhecimento na esfera e dinâmica do mercado mundial.
Que modelos de relações sociais, que formas de vida, que modos de sociabilidade e de associação serão particularmente favorecidos a longo prazo pela saturação das nossas economias e sociedades pelos media digitais, e pela Internet, como medium dos media digitais? Uma tese abrangente elaborada por sociólogos recentemente pode ser resumida como a do “individualismo de redes”, que floresce neste mundo de digitalização e reticularização, com a Revolução Tripla. No essencial, afirma que há uma certa perda de relação com os grupos sociais tradicionais, para participarmos, anonimamente ou com identidades múltiplas, em redes sociais de vários tipos, que se multiplicam em termos de diferentes interesses e preocupações (por exemplo, de pacientes, de doentes de uma ou outra doença específica, de aficionados de um desporto ou outro, de uma actividade de lazer ou outra, de adolescentes obcecados com o suicídio…). Mesmo os nossos contactos, irregulares, frequentes ou mesmo diários, com a família, a escola, os amigos, colegas, as comunidades locais, fazem-se em parte através de redes sociais digitais ou pelo menos on-line (ainda mais no caso de participarmos em escolas virtuais e associações virtuais). O mesmo ocorre com a concertação de acções no mundo físico, cívicas ou políticas, desde as flash mobs até aos movimentos da Primavera Árabe e outros análogos.
Com as tecnologias digitais, todos podem procurar informação actualizada navegando na Internet, desafiando os peritos (um exemplo da muito apregoada “desintermediação”), mas faltam ainda mecanismos relativamente adequados para assegurar a fiabilidade do que se encontra ou de corrigir erros e falsidades (de informações e de fotos). Estamos longe de nos aproximarmos de um espaço público em que a racionalidade comunicativa proposta por Habermas possa avançar com relativa facilidade. O “imperativo de partilha on-line”, especialmente potente com respeito a música, fotos e vídeo, parece ser um dos traços de maior importância na sociedade de redes. Todavia, a partilha on-line é também de rumores e notícias falsas, de parcialidades, e inclusivamente de ódios. Muitas vezes o homo connexus surge como homo credulus, intoxicando-se com teorias conspirativas ou negacionistas de toda a espécie, “virais”. Todos podem ser autores, editores, broadcasters, propagandistas ou agitadores através das redes sociais digitais ou blogues, mas as leis de potência funcionam aqui também. A “electrografia”, a escrita em processador de texto ou em dispositivos móveis (mensagens de texto em especial), tem evidentemente alterado ortografia, sintaxe e léxico entre muitos cibernautas jovens devido em parte aos imperativos de concisão em mensagens rápidas: degradação cognitiva segundo alguns, criatividade segundo outros (a epistolografia da intimidade on-line tem sido comentada dos mesmos modos). Seja como for, a electrografia representa hoje uma força na transformação da linguagem e das línguas nacionais.
Se existe um individualismo de redes, funcionam também colectivos em redes digitais por toda a parte: as organizações económicas, os partidos políticos, as organizações estatais, funcionam também cada vez mais em rede. É pois adequado falar de uma economia de redes, de sistemas políticos em rede, de Estados em vias de reticularização, enfim, de “colectivos de redes”, e até de “colectivismo de redes” (Jaron Lanier chegou a falar de “Maoismo digital”). A tendência para o individualismo de redes representa uma aposta em que as facilidades de florescimento da vida individual num mundo reticular irão prevalecer sobre as outras formas de sociação transindividual em redes que poderão redefinir a escolha livre, a criatividade, a mobilidade cultural. Esta redefinição terá sentidos menos conformes a um individualismo moral e político consentâneo com a autêntica continuação do individualismo ocidental, com o seu legado cristão e kantiano, que prezava a vida privada (a eliminação da privacidade decorre da vida digital), a responsabilidade moral, o sentido crítico, a independência perante a doxa, o distanciamento da mundanidade.
Além disso, não há e-mail, mensagem de texto, mensagem instantânea, que não deixe rasto: todos os cibernautas deixam a sua “pegada digital”, a sua “sombra digital”. A vida on-line é praticamente toda capturável por Estados, e muita dela a acessível a várias agências ou piratas informáticos. A nossa vida on-line é arquivada por multinacionais e outras empresas, que procuram satisfazer-nos pelo conhecimento das “preferências” registadas pelos nossos actos digitais (todos os cliques), desde a mais tenra idade até à morte, mas que tornam os internautas em clientes a cada segundo do nosso quotidiano. A “aldeia global” manifesta-se hoje como um “centro comercial global”, a mercantilização universaliza-se pari passu com a digitalização e reticularização das nossas vidas individuais, profissionais, colectivas, organizacionais. O “individualismo de redes” é acompanhado pela economia de redes, o sistema financeiro de redes, o sistema político de redes, o mercado mundial de redes. O individualismo de redes também se pode caracterizar como “individualismo de redes de mercado” (com os cibernautas observados e solicitados permanentemente por empresas) ou como um individualismo de redes monitorizadas por Estados. E ainda não se vê como o individualismo de redes poderá superar a força das identidades primordiais, do sentido de pertença, da necessidade de pertença, a grupos e comunidades como etnias, comunidades linguísticas, nações, comunidades religiosas transnacionais (que recorrem também às tecnologias digitais com uma certa eficácia).
A Internet, a Web e as tecnologias digitais de informação e comunicação afectam praticamente todos os domínios sociais, económicos, financeiros, políticos, culturais, artísticos, científicos, religiosos da nossa civilização, bem como os nossos cérebros e mentes. Evidentemente, nestas páginas só nos foi possível aflorar alguns tópicos de um vasto leque de assuntos que a Revolução Digital em curso pode sugerir.
BIBLIOGRAFIA
Castells, Manuel. (2007) A Sociedade em Rede. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, Lisboa, Gulbenkian
Doueihi, Milad (2008) La grande conversion numérique Paris, Seuil
Furtado, José Afonso (2012) Uma cultura da informação para o universo digital Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos
Rainie, Lee and Barry Wellman (2012) Networked: The new social operating system. Cambridge, MIT Press.
Turkle, Sherry (2011) Alone and together – why we expect more from technology and less from each other NY, Basic Books
Wu, Tom (2010) The master switch – the rise and fall of information empires NY, Random House
Lanier, Jaron (2006) "Digital Maoism: The hazards of the new online collectivism." The Edge 183.
Zallo, Ramón (2011) Estructuras de la comunicación y de la cultura. Políticas para la era digital. Barcelona. Editorial Gedisa.
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