domingo, novembro 24, 2013

Escrever para viver melhor - Prefácio do livro “Os leitores também escrevem”

Prefácio do livro “Os leitores também escrevem”, lançado no dia 24 de Novembro de 2013

Por José Vítor Malheiros

Autores: António Catita, Maria Clotilde Moreira, José Amaral, Fernando Cardoso Rodrigues, João Fraga de Oliveira, Francisco José Ramalho Nunes, Augusto Küttner de Magalhães, Joaquim Abílio Pinto de Moura, Vítor Colaço Santos, Ana Santos, Rogério Gonçalves e Céu Mota. Nota de Fábio Ribeiro


É um lugar-comum dizer que “os leitores são a razão de ser dos jornais”. A frase foi repetida milhões de vezes por jornalistas de ar grave e foi sempre ouvida com um sorriso de contentamento pelos leitores.

A expressão pretende ser um reconhecimento formal dos direitos dos leitores, mas acontece com ela o mesmo que com o tratamento cavalheiresco das mulheres pelos homens:  tem um perfume de lisonja sedutor, mas esconde um perigoso lastro de paternalismo.

Dizer que “os leitores são a razão de ser dos jornais” quis dizer simplesmente durante décadas que os leitores eram os utilizadores finais do jornal, os leitores dos seus artigos, os consumidores dos seus anúncios. Mas há uma unidireccionalidade escondida na frase que condena os leitores a uma situação de meros receptores da mensagem. Quando um jornal diz que “os leitores são a razão de ser dos jornais” está a dizer que faz tudo a pensar nos seus leitores e que são os interesses dos leitores (tal como o jornal os concebe) que determinam as suas escolhas. Mas não que os leitores devam ter maior influência no jornal ou mais espaço nas suas páginas. A relação de poder sempre foi assimétrica e o aforismo reflecte essa assimetria. Afinal, o jornal sabe coisas que os leitores não sabem e esse ascendente justifica a relação de poder - é aliás por causa disso que os leitores compram o jornal. É para ficarem a saber mais, para receber a informação que  o jornal recolheu, trabalhou e publicou em sua intenção.

Claro que os leitores nunca foram consumidores passivos e sempre fizeram conhecer as suas críticas, os seus comentários e sugestões, usando mecanismos mais ou menos tradicionais para influenciar os jornais, os directores, os jornalistas: fazendo chegar dicas e sugestões aos jornalistas, escrevendo Cartas ao Director, artigos de opinião, cartas ao Provedor,  fazendo queixas e reclamações ou, mais drasticamente, deixando de comprar o jornal.

Mas a questão é que, apesar de tudo isso, durante séculos, a imprensa escrita foi uma plataforma onde o jornal falava e os leitores ouviam.

A Internet veio agitar de forma radical este status quo, tornando evidentes verdades conhecidas mas que durante muitos anos estiveram escondidas. A primeira descoberta foi que havia afinal muitos mais leitores exigentes do que deixavam antever as escassas dezenas de pessoas que se davam ao trabalho de enviar cartas ao director. A segunda, e mais traumática para muitos jornalistas, foi a constatação de que os leitores sabiam afinal mais, muito mais, do que os jornais que liam e eram capazes de uma análise crítica do que lhes era oferecido. Esta constatação não devia ser uma surpresa. Afinal, esse “grande público” de que falamos reúne todos os especialistas de todas as áreas e não há domínio do conhecimento que lhe escape e sobre o qual não tenha algo a dizer. Mas a dificuldade em reagir - o facto de ter de usar outro meio de comunicação, como a carta, muito mais pesado e lento, para enviar ao jornal as suas reacções - e o escasso feedback dos leitores que ele causava alimentou durante décadas esta ideia de um público que, apesar das honrosas excepções, era largamente passivo e expectante, admirativo e ignorante.

A explosão da blogosfera a partir do ano 2000 foi o primeiro sinal evidente de que as coisas estavam a mudar na relação entre leitores e jornais. De súbito, pessoas que eram simples leitores num dia, tornavam-se autores no dia seguinte (jornalistas, críticos, colunistas) e encontravam um público sequioso e uma influência inesperada. As discussões sobre a concorrência entre bloggers e jornalistas tornaram-se comuns e a pergunta “irão os blogs substituir os jornais?” tornou-se central nessas discussões. Os blogs não eram (não são), porém, apenas a transformação de leitores em autores com a correspondente multiplicação do número de palestras: eram principalmente um espaço onde o diálogo entre autores e leitores-comentadores encontrava um novo estatuto. A palestra começava a transformar-se numa conversa, para usar a expressão cunhada por Dan Gillmor no seu livro “We the media” (2004). As redes sociais como o Facebook e o Twitter viriam depois ampliar desmesuradamente este fenómeno, ao transformar os leitores nas principais fontes de recomendação dos sites de informação e ao dar ao “conteúdo gerado pelos utilizadores” o primeiro lugar no consumo de informação.

E, no entanto, as consequências deste empoderamento dos leitores estão ainda largamente por extrair, em Portugal e no resto do mundo, apesar de experiências pioneiras levadas a cabo por todo o lado.

Penso que uma das revoluções mais profundas que está a abalar o jornalismo tem a ver com esta nova relação com os leitores, ainda mal digerida e mal gerida, com este novo poder que os leitores possuem não só de criticar a informação dos jornais, mas de lançar as suas próprias discussões, de impor os seus temas e até de participar na produção de informação com um nível elevado de complexidade - através de projectos de crowdsourcing, por exemplo, onde milhares de cidadãos podem recolher informação, validá-la e difundi-la em parceria com órgãos de comunicação tradicionais.

Timidamente, os jornais abriram os seus sites a comentários de leitores, mais ou menos controlados, mas é evidente que isso é demasiado pouco, demasiado tarde. A conversa que os leitores querem é uma conversa entre adultos, sem tutelas, e os jornais, pura e simplesmente, não possuem ainda ferramentas (culturais, narrativas, organizacionais) para a levar plenamente a cabo.

É verdade que o espaço do comentário nos sites de jornais portugueses foi ocupado, na generalidade dos casos, por desabafos anónimos de baixo nível e não por exercícios de cidadania responsável, mas isso não se deve apenas à falta de qualidade dos leitores mas, também, à falta de qualidade do próprio espaço, cuja gestão exige um investimento que os jornais não possuem condições para fazer. Mas essa necessidade de diálogo existe e os jornais terão de encontrar meios para a satisfazer se não quiserem seguir o caminho da irrelevância.


“Os leitores também escrevem” é uma prova da vitalidade submersa que os leitores dos jornais possuem e que estes escassamente aproveitam - para não dizer que a desperdiçam.
Reunião de textos de doze leitores compulsivos de jornais, publicados como Cartas ao Director ou artigos de opinião, este livro é, antes de mais, uma declaração de amor aos jornais, exemplificando todos os matizes por que passa uma relação passional.

Para os autores de “Os leitores também escrevem”, os jornais (nas suas versões em papel ou online) são locais de encontro e de confronto. Encontro de ideias mas também de pessoas, confronto de leituras e de propostas. São locais de cidadania, de inscrição e de agência que têm de ser ocupados pelos cidadãos. São os locais onde as discussões racionais e emocionais acontecem, onde a história e o desejo têm lugar e que, por isso, são o lugar natural por onde passam as escolhas da cidade.

Há em todos estes textos uma urgência, uma exigência, uma generosidade e uma persistência que espantam. O que nos dizem estes textos e o gesto de os reunir em livro, para assim os expor a outro nível de discussão, é que podemos viver melhor, que queremos viver melhor e que sabemos viver melhor. E que a melhor maneira de o conseguir é incluir na conversa todos os cidadãos.


José Vítor Malheiros

Lisboa, Julho 2013

2 comentários:

Tripalium disse...

Muito obrigado, Dr. José Vítor Malheiros.
João Fraga

Céu M. disse...

Obrigada pelo prefacio e pela divulgação do nosso livro.
Céu Mota