por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 12 de Março de 2013
Crónica 9/2013
Um desempregado sem apoios sociais é um cidadão que vive sob ditadura
A coisa mais surpreeendente na abordagem da morte de Hugo Chávez é o sectarismo sem estados de alma de tantas notícias e comentários. É um facto que Chávez cometeu atropelos no domínio dos direitos cívicos e o seu estilo não me merece qualquer admiração, a começar pela concentração de poder na pessoa do presidente e terminando nas suas tentativas de controlo do poder judicial. Mas há algo que o regime de Chávez fez que não pode deixar de ser olhado com apreço: a sua determinação no combate à pobreza. Durante a presidência de Chávez, no espaço de quinze anos, houve mais de sete milhões de pessoas que foram resgatadas da pobreza e mais de três milhões que foram libertadas da pobreza extrema.
Há quem minimize o facto, reconhecido mesmo pelos seus inimigos, dizendo que tudo o que o regime fez foi atirar para cima dos pobres uma parte do dinheiro fácil ganho com a venda do petróleo. Isso em si já seria bom mas, na verdade, houve algo mais do que dinheiro: a rápida redução da pobreza foi acompanhada de um acesso alargado a serviços de saúde e educação, como os pobres (metade da população em 1998!) nunca tinham conhecido. Do que se tratou, foi de um gigantesco movimento de empoderamento de milhões de indivíduos, antes sem direitos e sem voz, que se descobriram de repente cidadãos. E isso é fundamental porque é disso que trata a democracia: de permitir que todos beneficiem dos frutos da prosperidade e participem na vida da cidade. Por isso, falar de Chávez sem falar da redistribuição da riqueza do país, da assunção de direitos por milhões que não tinham voz e da redução da pobreza na Venezuela é fazer um retrato profundamente distorcido da sua acção política.
Mas o que me espanta não é este discurso sobre Chávez e a Venezuela, que afinal a esmagadora maioria dos portugueses não conhece bem e de quem também eu apenas sei o que leio nos jornais. O que me espanta é que, entre as pessoas que se indignam com o chavismo pelos seus tiques antidemocráticos e pela forma como limita os direitos da oposição, não haja uma pessoa que se indigne com o governo de PPC pela forma como impede milhões de portugueses de exercer os seus direitos como cidadãos, lançando-os na miséria do desemprego e excluindo-os dos parcos apoios sociais.
O desemprego, a pobreza e a miséria extrema, nos seus diversos graus, não são exclusivamente uma questão de dinheiro. Um desempregado sem quaisquer apoios (e, segundo os números oficiais, certamente subestimados, há 530.000 nesta situação) não é apenas alguém que tem de recorrer à caridade para comer.
Será que estes 530.000 têm garantida a sua integridade moral e física, como afirma o artigo 25 da Constituição? Será que todos eles estão protegidos de tratos cruéis, degradantes ou desumanos? Será que a todos estes são reconhecidos os direitos ao desenvolvimento da personalidade, à cidadania, ao bom nome e reputação, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação, como diz o artigo 26?
De que liberdade goza um desempregado? Terá a liberdade de se deslocar livremente no território nacional (artigo 44), de aprender e de ensinar (artigo 43), de se dedicar à criação intelectual, artística e científica (artigo 42) e de gozar as criações dos outros? À segurança social já sabemos que não tem direito, apesar do artigo 63 garantir essa protecção a “todos”. Terá direito à protecção da sua saúde (artigo 64)? Terá direito “a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado” (artigo 66)? A resposta a estas perguntas é simples: não tem direito a nada. Um desempregado sem apoios é um cidadão roubado dos seus direitos. É um cidadão que vive em ditadura. Sob a ditadura da necessidade constante.
Mas nem é preciso perder todos os apoios: um desempregado fica, pela simples razão de não ter trabalho, reduzido nos seus direitos, na sua dignidade e na sua voz. E é para este estatuto que o Governo de Pedro Passos Coelho vai empurrando os portugueses, tão eficazmente como se os lançasse na cadeia, uns milhares de cada vez. Exilando-os da vida laboral, da vida cultural, da vida política, da vida do bairro, da vida familiar e, finalmente, da própria vida.
Porque é que há pessoas que ficam tão chocadas quando Chávez atropela direitos dos venezuelanos e tão indiferentes quando Pedro Passos Coelho rouba os direitos dos portugueses? Há uma explicação histórica: quando disseram a Franklin D. Roosevelt que o ditador Somoza da Nicarágua não seria um aliado recomendável para os EUA porque era um “bastard”, ele respondeu: “He may be a bastard, but he's our bastard.” A regra continua a ser essa: “our bastards” são sempre poupados aos ataques dos poderes, desde que desempenhem o seu papel de obedientes defensores dos privilégios de alguns e mesmo que para isso tenham de sacrificar os seus povos. (jvmalheiros@gmail.com)
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