Texto publicado no jornal Público a 5 de Março de 2013
Crónica 8/2013
A manifestação de 2 Março foi um gigantesco escarro na cara do Governo e um alerta aos partidos1. Gravidade. Antes de mais a gravidade, a seriedade, a tristeza. Depois a raiva surda e o desespero que espreita nos cartazes e nos olhares. Houve na manifestação de 2 Março - pelo menos na de Lisboa, onde estive - momentos de alegria e grupos animados, com slogans certeiros e divertidos (“Quando tu falas, Gaspar, és o orgulho de Salazar!”), mas o grande mar de gente não está para festas. Há centenas de cartazes artesanais, muitos com notas de humor, mas o humor é amargo (“Tenho cara de algarismo?” pergunta uma mulher numa folha A4).
A maré que se espalha pela avenida é formada maioritariamente por gente cujo presente é feito de sacrifícios e que não consegue imaginar um futuro nem para si, nem para os seus filhos, nem para o país. Uma maré de gente farta e cansada, triste e zangada, mas determinada. Há muitos velhos, muitos reformados, muitos desempregados, muitos estudantes, muitos intelectuais. Há gente de todas as classes. Há slogans e alguma música, mas a esmagadora maioria da manifestação é uma manifestação silenciosa, que não adere a gritos nem palmas. Muitos vieram sozinhos e é difícil gritar sozinho. Não vieram no grupo do sindicato, nem da empresa, nem sequer com os amigos. Vieram porque acharam que não podiam deixar de vir. Vieram gritar que os seus direitos estão a ser espezinhados, mas que não deixarão que lhes roubem a dignidade. Vieram dizer que não querem este governo, que nunca aprovaram esta política, que não acreditam nestes políticos, que não respeitam este Governo, que se sabem ludibriados, roubados e injustiçados, receiam que seja destruída a democracia que ajudaram a construir e vieram dizer “Basta!” e “Rua!” com a sua simples presença, sem conseguirem abrir a boca. Querem outra coisa e sabem que é possível outra coisa.
2. Desprezo. Um dos sinais da fronteira que a indignação já ultrapassou é o uso de palavrões, que já ninguém acha excessivos. "Se quizesse trabalhar para chulos tinha ido para puta”, diz um cartaz que uma mulher traz ao pescoço. “Coelho, quando abrir a caça vais para o c.” diz outro. Um grupo grita uma variação de uma palavra de ordem famosa: “O povo, unido, está farto de ser fodido!” Há na transgressão um sentido claro: os ocupantes do Governo não merecem uma gota de respeito, são aldrabões que foram eleitos mentindo e que governam mentindo, são ladrões que roubam o povo dos seus direitos e dos seus bens e que ameaçam a democracia. Gatunos é o mais doce dos epítetos que merecem e o desprezo e a repulsa os sentimentos unânimes.
3. Apelos. Não há apelos. Ou só há apelos ao próprio povo (“Acordai!”). Estes cidadãos não se dirigem a um interlocutor. São o povo soberano a exprimir a sua vontade. Exigem a demissão do Governo mas ninguém pede a intervenção do Presidente da República. Pelo contrário, o PR é outro alvo dos ataques. Todos sentem que S. Bento é sede vacante.
Ninguém exorta o Governo a arrepiar caminho. Mas também não há cartazes a exortar a oposição a fazer seja o que for. Estes milhares exigem respeito pelos seus direitos mas não nomeiam nem reconhecem campeões. De quem esperam algo? Aqui e ali pede-se um novo 25 de Abril, mas quem o fará?
4. Partidos. Não se trata apenas do facto de os partidos estarem prudente e correctamente ausentes da manifestação. A questão é que é a sua ausência que explica a multidão. Nenhum partido, nenhuma coligação de partidos conseguiria reunir esta maré e, se houvesse partidos, eles desmobilizariam as pessoas. Estas pessoas empenharam-se num gesto político que sentem como vital e urgente, mas a maior parte delas sente que só o pode fazer à margem dos partidos. Não é apenas o Governo que deve reflectir sobre as suas responsabilidades. Nenhum partido está a salvo do risco de extinção.
5. Esquerda. Perante uma grande manifestação unitária contra o Governo e a austeridade, haverá uma plataforma mínima de entendimento que possa emergir entre os partidos que se reclamam da esquerda, em nome da emergência nacional? Não, porque o PS é pró-troika. Bom, e só entre o PCP e o BE? Também não, porque...
6. Consequências. E agora o que vai mudar? O que mudou? Mudou o estado de espírito dos cidadãos. As pessoas vieram assumir a sua cidadania, vieram dizer que foram atingidos os limites e que não aceitam ser escravos. Vieram mostrar que estão mobilizados e que lutarão pelos seus direitos. Vieram dizer que o Governo será legal mas não tem legitimidade democrática nem moral. Vieram dizer que não aceitam a democracia diminuída em que vivem, que não aceitam ser governados por colaboracionistas em nome de interesses alheios ao povo. Vieram também dizer que estão descontentes com os partidos e com as instituições democráticas. Vieram dizer que o combate à austeridade exige a união de todos e vieram dar exemplo dessa união. Vieram dizer que não se sentem representados e que por isso vieram em tão grande número. Vieram dizer que muita coisa tem de mudar, com este Governo e com o próximo.
Será que o Governo e a troika podem fazer orelhas moucas, repetir que a indignação não significa nada e seguir em frente? Podem. Mas fariam bem em temer a fúria de um povo paciente. (jvmalheiros@gmail.com)
1 comentário:
os portugueses repetirão a indignação até serem ouvidos!
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