por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 19 de Março de 2013
Crónica 10/2013
Vítor Gaspar não é incompetente. Acontece simplesmente que Vítor Gaspar não está a trabalhar para nós.
Espantam-me as críticas dirigidas a Vítor Gaspar por este ter falhado reiteradamente todas as suas previsões. E espantam-me porque penso que todos estes críticos não ficariam mais satisfeitos se Vítor Gaspar não se tivesse enganado e se tudo se tivesse passado como ele disse.
Naturalmente que seria melhor se o pico do desemprego se tivesse ficado pelos 12,4% previstos em 2011 para 2012 (“o pico”, note-se) em vez dos 19% previstos agora para o final de 2013. Naturalmente que seria melhor se o PIB se contraísse apenas 0,3 % entre 2011 e 2014 em vez dos 6,4% que o Governo anuncia agora. Mas, mesmo que tudo se tivesse passado exactamente como nas palavras de Vítor Gaspar, estaríamos de qualquer forma a viver uma situação de descalabro económico e em plena destruição do Estado social. O problema não é o facto de as previsões de Gaspar não se terem concretizado exactamente como ele disse. O problema é o facto de os objectivos de Gaspar serem absolutamente contrários aos interesses dos portugueses e da simples decência.
A questão é que Vítor Gaspar não está minimamente preocupado com as condições de vida dos portugueses, com o seu emprego ou com o seu nível de vida nem com o seu acesso aos serviços de saúde e educação ou com a sua segurança na velhice e na doença. Vítor Gaspar está antes de mais preocupado em garantir que os portugueses pagarão tudo o que devem aos seus credores estrangeiros, às taxas agiotas que nos forem cobradas, por muito que isso signifique em sofrimento pessoal, em destruição de empregos e falências de empresas, em destruição da economia, em esbulho do Estado, por muito que isso signifique de alienação de património de todos, ainda que isso signifique um recuo de gerações. Além disso, Gaspar também quer que os salários dos portugueses baixem drasticamente para aumentar as margens das empresas e para reduzir a capacidade reivindicativa dos trabalhadores (infelizmente para Gaspar e felizmente para nós, os neoliberais portugueses não contam com a ajuda de uma ditadurazinha militar como na América do Sul, para partir a espinha à contestação).
É por isso que Gaspar considera que estamos “no bom caminho” e se alegra por termos reforçado a nossa “credibilidade externa” e imagina que as manifestações de protesto são manifestações de apoio. A única preocupação de Gaspar é garantir que os portugueses se mantêm suficientemente activos para poder pagar aos credores e suficientemente passivos para permitir que o Governo os roube sem tugir nem mugir. Como isso tem acontecido, o seu principal objectivo tem sido alcançado. Tudo o resto - o desalento, o sofrimento, a doença, a miséria, os suicídios, a emigração forçada - é secundário. Gaspar é o capitalismo financeiro sem pátria em toda a sua brutal franqueza: a dívida é a mercadoria por excelência e o ministro e o governo fazem o que podem para que os seus patrões continuem a vender a sua mercadoria ao preço mais alto possível, tendo apenas o cuidado suficiente para que os clientes não morram ou declarem bancarrota, caso em que os vendedores deixariam de poder vender.
Gaspar está um pouquinho desapontado com o desemprego mas no cômputo geral está satisfeito com o que conseguiu e os seus patrões vão certamente fazer-lhe uma atençãozinha no bónus de fim de ano. Gaspar não é incompetente. Acontece simplesmente que Gaspar não está a trabalhar para nós. O desemprego, como se viu e se vê, não é uma preocupação da troika.
Do que ninguém com dois dedos de testa e um dedal de decência pode ter dúvidas hoje (para não dizer há um ano) é que este não é o caminho a seguir.
O espartilho do euro surge cada vez mais como uma camisa de forças viciada, onde não é possível qualquer solução para um país com as fragilidades estruturais de Portugal e com governantes como Vítor Gaspar.
O imposto que a União Europeia acaba de impor sobre os depósitos em Chipre é apenas mais um exemplo da absoluta ausência de limites que existe na acção dos credores e na ausência de protecção dos devedores por parte das instâncias comunitárias.
Por outro lado, na prática, a legislação comunitária proíbe ou dificulta políticas de esquerda e intervenções do Estado na economia e impõe ou incentiva políticas de direita e liberalizações diversas, das privatizações de empresas públicas à obrigação de “recorrer ao mercado” para fornecer os mais diversos serviços públicos. Subrepticiamente, a União Europeia foi ilegalizando as políticas de esquerda.
As limitações à soberania no âmbito da UE seriam compreensíveis e defensáveis num quadro de forte solidariedade europeia, que garantisse que um país nunca atravessaria grandes dificuldades. Mas são inaceitáveis quando isto não está garantido e quando a contrapartida é, não um ganho, mas uma perda de democracia com empobrecimento. Neste caso, a alienação de soberania é apenas uma submissão aos poderes dos mais fortes e uma indignidade com a qual não se pode viver. A UE parece empenhada em nos mostrar isso. (jvmalheiros@gmail.com)
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