terça-feira, janeiro 20, 2015

A liberdade é só uma

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Janeiro de 2015
Crónica 3/2015


"12 anos escravo" é um filme de 2013 que se baseia nas memórias de Solomon Northup, um negro americano nascido livre em Nova Iorque em 1808, que foi raptado aos 33 anos em Washington, vendido como escravo e obrigado a trabalhar em plantações da Louisiana. Ao fim de doze anos, Northup conseguiu finalmente enviar informações sobre o seu paradeiro à família, que conseguiu a sua libertação.

O happy ending do filme é a cena onde Northup é libertado por um xerife, perante a indignação do seu “proprietário” e o espanto dos outros escravos, e os espectadores sentem que no final foi feita justiça. Porém, a sensação é não apenas deprovida de razão mas profundamente perversa.

De facto, não há nada em Solomon Northup, a não ser a sua situação jurídica à luz de um ordenamento jurídico iníquo e desumano, que lhe confira mais direito à liberdade que aos outros escravos da plantação, nascidos escravos e legalmente vendidos e comprados. Foi aliás assim que o entendeu o próprio Northup, que se tornaria um activo abolicionista nos anos posteriores ao seu rapto.

Por que temos, apesar de tudo, uma tendência para empatizar mais com Northup que com os outros escravos? Porque a história o usa como figura central. Empatizamos mais com ele porque o conhecemos melhor que aos outros. É por esta razão que adoptamos sempre o ponto de vista dos protagonistas nos filmes, sejam polícias ou ladrões.

Esta empatia, que nasce do conhecimento e da familiaridade, é um sentimento universal. Na imprensa chama-se a isto “proximidade” e constitui um dos principais critérios de noticiabilidade usados pelos jornalistas. Segundo este critério, um acidente que mate um português terá a mesma cobertura que um acidente idêntico que mate dez italianos ou cem chineses. E é também pela mesma razão que, quando uma catástrofe mata mil pessoas do outro lado do mundo, a imprensa portuguesa se preocupa em saber se não haverá um português entre as vítimas.

Quando milhões de pessoas em todo o mundo declararam a sua solidariedade a "Charlie Hebdo", não faltou quem perguntasse por que não declaravam estes manifestantes, tão empenhados na luta pela liberdade e pelos direitos humanos, a sua solidariedade a tantas outras vitimas de terrorismo no mundo. A Amnesty International, por exemplo, para aproveitar a vaga "Charlie" mas não sem alguma mágoa, lançou a sua campanha "We are Raif", pela libertação do blogger saudita Raif Badawi, condenado a dez anos de cadeia, uma pesada multa e mil chicotadas por se ter atrevido a criticar os clérigos sunitas do seu país.

Também não faltou quem lembrasse os sanguinários ataques terroristas do Boko Haram, na Nigéria e nos países limítrofes, de uma violência raramente vista, para perguntar se estas crianças (uma grande parte dos muitos milhares de vítimas do Boko Haram são crianças) não mereceriam o mesmo cuidado, o mesmo carinho, a mesma memória, a mesma indignação, a mesma atenção mediática, as mesmas manifestações que as vítimas do ataque ao Charlie Hebdo.

Não tem grande sentido nem utilidade discriminar graus dentro do horror, ou fazer rankings de morticínios, mas não pode haver dúvidas de que não existe maior horror do que aquele a que são submetidas as crianças raptadas pelo Boko Haram, torturadas, violadas, obrigadas a matar e usadas como bombas humanas. Como se descreve o horror de uma menina de dez anos, raptada depois de ver a sua família chacinada à sua frente e a sua aldeia arrasada, que é embrulhada em explosivos e enviada para o meio de um mercado para ser despedaçada e despedaçar as pessoas à sua volta?

E como se descreve o sofrimento das crianças sem-abrigo, de que falou Glyzelle Palomar, a menina filipina que vivia na rua e que perguntou ao papa por que razão Deus permitia que as crianças fossem forçadas a usar drogas e à prostituição?

Não acredito que os manifestantes chocados pelo ataque ao Charlie se sintam menos indignados por estes outros crimes ou menos mobilizados para o seu combate. O que acontece é que todos nós combatemos as batalhas que podemos combater, as que nos aparecem pela frente.

Compreendo o abafado sentimento de injustiça dos que lutam pela libertação de Raif Badawi ou das meninas nigerianas ao ver tantos milhões mobilizados pelo ataque de Charlie. Compreendo que perguntem com desespero, como Glyzelle, “porque há tão pouca gente a lutar por nós, connosco?” mas a batalha é a mesma. Lutar pela liberdade de fazer caricaturas anti-religiosas é lutar pela liberdade de educação das raparigas que o Boko Haram ataca e é lutar pelo mundo civilizado onde um dia não haverá crianças sem-abrigo. Mas é preciso dizê-lo, sempre, de cada vez. Dizer que a batalha pela liberdade é por todos, os distantes e os próximos, os intelectuais e os analfabetos, os que estão na televisão e os que não têm voz. Só há uma liberdade. Só há uma humanidade. Quando se mata a liberdade na Nigéria é a nossa liberdade que é morta. Quando se chicoteia um homem por criticar o poder, são as nossas costas que são chicoteadas.


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