por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 10 de Dezembro de 2013
Crónica 46/2013
Não é a política que nos repugna. É apenas certa política e certos políticos.
1. Nos últimos dias, depois da morte de Nelson Mandela, vimos várias vezes o seu nome associado a dois outros grandes combatentes da liberdade e da igualdade, Mahatma Gandhi e Martin Luther King, numa espécie de quadro de honra do nosso panteão pessoal e talvez de toda a humanidade.
Lembro-me de que, quando eu era pequeno, quando se queria referir um exemplo de grande autoridade moral, os nomes que vinham à ideia e à boca de todos eram o de Gandhi e o de Albert Schweitzer, médico e missonário franco-alemão, que tinha dedicado a sua vida à assistência médica num canto perdido do Gabão e que tinha recebido o prémio Nobel da Paz em 1952.
A influência de King e o seu papel na conquista dos direitos cívicos dos negros americanos tornar-se-iam conhecidos fora dos Estados Unidos principalmente depois da sua morte, em 1968, e, apesar de todas as suas conhecidas imperfeições humanas, o seu nome tornar-se-ia um sinónimo de perseverança e coragem no combate pela dignidade humana e na recusa da violência como meio para a alcançar.
A popularidade de Schweitzer, inversamente, acabaria por se desvanecer depois da sua morte, em 1965, em resultado de uma crítica moderna que viu na sua vida um exemplo do paternalismo do homem branco em relação aos africanos e um obstáculo à sua auto-determinação.
Mandela, por seu lado, começa a tornar-se uma presença constante no panorama mediático em 1980, com a campanha internacional “Free Mandela”, como símbolo da luta contra o apartheid e, após a sua libertação, a negociação do fim do apartheid, da instauração da democracia e da transferência de poder para as mãos da maioria negra transformam-no sem hesitações no homem mais admirado do planeta. Poucos imaginavam que a África do Sul poderia desatar o nó górdio do apartheid sem um banho de sangue e num espaço de tempo tão curto. Mandela consegue-o, substituindo a vingança pela verdade e reconciliação e pondo em prática uma política literalmente desarmante.
O que é espantoso num trio como Gandhi, King e Mandela, que são talvez os três homens cuja vida é objecto de maior admiração no mundo moderno, é que se trata de três políticos.
Ninguém adivinharia, quando se vê o respeito, o fervor e a emoção com que estes três homens são olhados, que os políticos sejam considerados, em Portugal e em tantos outros países do mundo, um exemplo de corrupção, de falsidade, de falta de princípios, de deslealdade, de subserviência perante os fortes, de indiferença.
Poder-se-ia argumentar com a diferença entre os políticos de “antes” e os de “hoje”, mas Mandela, que abandonou a presidência em 1999 e continuou uma actividade pública depois disso, é claramente um homem do nosso tempo.
O que este trio nos mostra é a política no seu melhor. A política como ela deve ser e como ela pode ser. A política como instrumento de libertação, de progresso, de paz e de fraternidade. Não a política da subserviência ou do falso consenso. Mas a política do combate sem tréguas contra a iniquidade, da inflexibilidade na luta pela dignidade. É admirável que Mandela, que dirigiu a luta armada contra o apartheid, tenha recusado o ódio como móbil da sua acção política e tenha convencido todo um país a fazê-lo. Mas Mandela nunca abdicou do essencial: o fim do apartheid e a democracia. É por isso que o admiramos: pela sua firmeza no essencial e pela sua eficácia, por não aceitar a indignidade nem na forma como os negros eram tratados nem na forma como poderiam ter tratado os brancos.
O que a admiração das pessoas evidencia é que o melhor da política continua a ser a nossa maior aspiração e o mais nobre dos objectivos a que os homens se podem dedicar. Não é a política que nos repugna. É apenas certa política e certos políticos.
Em Portugal, particularmente, já tínhamos esquecido que a política pode ser exaltante. Isso é outra coisa que podemos agradecer a Mandela.
Não precisamos de menos política. Precisamos apenas de outros políticos.
Outra coisa curiosa no nosso trio é que dois destes homens (Gandhi e Mandela) eram advogados - uma profissão quase com tão má reputação como a dos políticos. Como era advogado Aristides de Sousa Mendes, que é hoje homenageado pela Ordem dos Advogados.
2. Há, no consenso que pareceu existir nos últimos dias sobre o legado de Mandela, uma esperança. Não falo do consenso hipócrita que pretende reescrever a história e colher louros indevidos aproveitando a morte de um grande homem. Mas falo daqueles para quem, com sinceridade, o legado de Mandela é admirável, desde a sua decisão de abraçar a luta armada ao seu abandono da violência. Há, em todos os gestos de Mandela, um núcleo de crenças que podem ser um ponto de entendimento entre um grande número de pessoas. Constituem o que podemos chamar a decência. A crença em direitos iguais para todos os homens e mulheres. Governar para servir todo o povo. O direito de todos a viver e a trabalhar com dignidade.
Também nós esperamos que um dia, em breve, de surpresa, como o fim do apartheid, a política possa deixar de nos repugnar e possa escolher a decência e começar a servir os cidadãos. (jvmalheiros@gmail.com)
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