por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Maio de 2012
Crónica 20/2012Temos mais de um milhão de Microsofts em potência a chocar nos ventres vazios de outros tantos desempregados
Pedro Passos Coelho disse no fim de semana aos jornalistas que estava “cansado de crises artificiais”, quando estes o confrontaram com as reacções suscitadas pelas suas declarações de sexta-feira passada sobre os desempregados. Pedro Passos Coelho tem razão. Esta crisinha é apenas uma tempestade num copo de água e os media apenas se preocupam com isto porque é um fait-divers fácil de reportar sem horas de investigação e que diverte as massas.
O que os media deviam estar a fazer era confrontar o primeiro-ministro com o número crescente de desempregados, com o número crescente de desempregados sem subsídio de nenhum tipo, com a falta de crédito para empresas que acabam por falir, com a redução dramática da oferta de formação profissional, com o encerramento das Novas Oportunidades (Passos Coelho disse que aquilo só servia para certificar a ignorância e não quer voltar atrás), com a limitação no acesso à saúde, com o escândalo dos bancos que retomam as casas cuja compra financiaram mas que querem que os credores fiquem seus escravos durante cinquenta anos, etc. Pedro Passos Coelho tem toda a razão. Os media, em vez de se preocuparem com estas crises artificiais, deviam começar por se preocupar com as verdadeiras crises. Só que os jornalistas fazem o que podem e, entre os três serviços por dia e a falta de tempo para passar dias a investigar, atiram-se aos comentários mentecaptos que os políticos enfiam pelos microfones abaixo.
Só que os media (e a oposição) não estão completamente errados. É que estes comentários dão-nos a medida de uma pessoa.
Quando Passos Coelho diz que "estar desempregado não pode ser um sinal negativo”, que “despedir-se ou ser despedido não tem de ser um estigma” e que “tem de representar também uma oportunidade para mudar de vida” está de facto a dizer-nos várias coisas sobre os seus valores e os do seu Governo e a transmitir-nos imensa informação de forma condensada, nomeadamente quanto àquilo que o seu Governo não vai fazer pelos desempregados.
Antes de mais, este tipo de discurso não é novo. Desde Thatcher que o ouvimos, em diversos tons. “Foi despedido? Parabéns! Aproveite para criar a sua empresa e ficar rico!”. Até há livros disto e há autores que vivem disto. E há, é claro, os casos exemplares de sucesso, de jovens empreendedores que se viram sem trabalho e, com uma formação em universidades de élite, uma ideia genial, muito trabalho, acesso a recursos humanos altamente qualificados, um ambiente empresarial propício e financiamento disponível saltaram para a capa da Fortune. Estes casos conferem um véu de verosimilhança às narrativas do american dream e permitem desculpabilizar e desresponsabilizar os governos (de Thatcher ou de Passos Coelho)pelo desemprego e pelo futuro dos desempregados. Lutar contra o desemprego? Porquê, se é uma coisa tão boa? Porquê, se permite que os desempregados se transformem em Steve Jobs? É por isso que o Governo mantém 800.000 desempregados sem subsídio: a necessidade aguça o engenho.
Uma das coisas que ficámos a saber preto no branco foi que, para o Governo, o desemprego é bom. Uma coisa simpática, que cheira a aventura, que abre horizontes. Portanto não se queixem, desempregados. Não reivindiquem, sindicatos. Parem com o estigma, media. Temos mais de um milhão de Microsofts em potência a chocar nos ventres vazios de outros tantos desempregados. Como pode isto ser mau?
Também ficámos a saber que, para Passos Coelho, um desempregado é apenas um agente económico, passível de reconversão. Para Passos Coelho não há tragédia pessoal porque aquilo que ele lê nas colunas do INE não são pessoas.
De facto, a tragédia do desemprego não é apenas económica: é social e pessoal. Um desempregado não é apenas uma pessoa sem trabalho. É uma pessoa cuja rede social se desmoronou, cujo sentimento de utilidade social desapareceu, cujo saber e cuja competência deixou de ter valor, cuja auto-estima se esfumou, cuja identidade se desagrega, cuja vida parece de repente não só não ter valor mas ter-se até transformado num fardo para todos. E tudo isso, em grande medida, devido aos Passos Coelhos deste mundo, que fazem a sua carreira política a estigmatizar os “parasitas subsidio-dependentes” que vivem à conta do Estado.
Se Passos Coelho tivesse a mínima ideia do que é um desempregado diria: “Sabemos que o desemprego é uma tragédia pessoal e social que afecta mais de um milhão de pessoas e gera um sofrimento imenso nas suas famílias. Queremos minimizar esta tragégia e criar novas oportunidades para estas pessoas. Acreditamos na sua capacidade para melhorar as suas vidas e para proporcionar um impulso à economia. Vamos por isso abrir uma linha de crédito para a criação de micro e mini-empresas por estas pessoas, dando-lhes toda a formação e apoio técnico possível.” Mas não lhe chegou a língua. Nem a vontade. Os desempregados são apenas baixas na guerra pelo enriquecimento dos ricos. (jvmalheiros@gmail.com)
1 comentário:
claro
(tudo, em especial o remate)
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