terça-feira, maio 02, 2006

Um caso edificante

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 2 de Maio de 2006
Crónica 16/2006

Um cidadão pode ser condenado em tribunal sem ser informado de nada e sem ter possibilidade de se defender. É isto o Estado de Direito?

A voz da minha colega da secção de Pessoal que sai do telefone mostra algum constrangimento. Acaba de receber um ofício do tribunal, informa-me, ordenando uma penhora sobre o meu ordenado para cobrança de uma dívida não paga, pela qual acabo de ser condenado em julgamento.

Trata-se obviamente de um engano. Não fui condenado em nenhum tribunal e não tenho dívidas a não ser os meus empréstimos ao banco. A minha consciência está tranquilíssima quando subo para ver o ofício.

À cabeça do documento vem o nome do meu suposto credor: uma loja de electrodomésticos onde, de facto, fiz uma compra há doze anos atrás, que paguei com uma série de cheques pré-datados, a forma de prestações corrente na altura. É verdade que tinha havido algum problema porque, mais de um ano após a compra, recebi uma carta de um escritório de advogados intimando-me a pagar uma mensalidade, aparentemente em falta. Respondi aos advogados dizendo que pensava estar tudo pago mas dispondo-me a pagar caso existisse alguma dívida e pedi dados: a loja perdeu algum dos cheques? Houve algum cheque não pago pelo banco? Envio a carta, não recebo resposta e acabo por varrer o caso da memória.

Agora, doze anos depois, aparece esta penhora. Contacto o meu advogado a quem peço para deslindar a história e a quem transmito a minha vontade de processar a loja, o Estado e os tribunais para repor a justiça. Depois da surpresa inicial a minha reacção é de fúria: então um cidadão pode ser processado, levado a tribunal e condenado sem ser informado de nada? Sem ter possibilidade de se defender de uma acusação sem fundamento? É isto o Estado de Direito?
A averiguação é breve: eu terei sido "devidamente" notificado pelo tribunal do processo mas acontece que… mudei de casa. E foi tudo enviado para a morada antiga.

Mas não é proibido mudar de casa! Como é possível que não me tenham localizado se actualizei imediatamente todos os meus documentos? É que a polícia que faz estas intimações, quando não encontra o destinatário em casa, pergunta aos vizinhos se sabem onde ele está… e fica-se por aí. E o sujeito pode acabar por ser julgado sem saber. Falo com o tribunal e a PSP que confirmam o procedimento. E não perguntam a morada às Finanças que tudo sabem? À Segurança Social? À DGV? Ao Arquivo de Identificação? Não consultam a lista telefónica? "Não. Costumamos perguntar aos vizinhos."

"E como é que conseguiram notificar-me da penhora mas não me conseguiram notificar de que ia ser julgado? Porque é que não me contactaram para o meu emprego?" "As penhoras vão para a entidade patronal, mas as notificações não vão".

Posso fazer um processo ao Estado mas as probabilidades de êxito são remotas, pois é possível que a polícia e tribunais tenham "cumprido os procedimentos". E não se pode fazer um processo ao Estado e aos tribunais por estupidez? Acabo por decidir escrever esta crónica para ilustração alheia.

Morais da história (há várias):

- a primeira é que o leitor pode ter sido julgado e condenado por homicídio na semana passada sem que o brioso sistema judicial se tenha dado ao trabalho de o informar.
- a segunda é que todos os crimes prescrevem, incluindo casos de homicídio… menos os nossos.
- a terceira é que o Estado não olha a gastos (polícias, notificações, documentação, advogados, julgamento) mesmo que se trate de resolver um problema inexistente – no caso vertente, uma dívida que, a existir, o devedor se dispunha a pagar imediatamente.
- a quarta é que a reforma do Estado e dos Tribunais nem sempre exige grandes meios mas necessita de algo que pode não estar disponível nas estruturas a reformar: um mínimo de inteligência e de sentido cívico.

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