terça-feira, julho 13, 2004

Tempos interessantes

Por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 13 de Julho de 2004
Crónica 26/2004


O facto de Jorge Sampaio ser o Presidente de todos os portugueses não o obriga a tornar-se o lugar do vazio da política.

Nos últimos dias, os portugueses tiveram ocasião de ver amplamente justificada a sua desconfiança em relação aos políticos. Depois de terem escolhido Durão Barroso para primeiro-ministro, vêem-no abandonar inesperadamente o Governo a meio mandato e propor como substituto um Santana Lopes que ninguém elegeu para tal; depois de terem elegido Santana para presidente da Câmara de Lisboa, vêem-no abandonar o cargo a meio mandato para ser substituído por não se sabe quem; depois de terem elegido um presidente em nome de um passado político e dos seus valores de esquerda, vêem-no adoptar uma posição que apenas pode ser justificada em nome de uma leitura estreitamente jurídica e tecnocrática da política; e, finalmente, vêem o líder da oposição abandonar o seu cargo dias depois de ter garantido que iria manter-se à frente do seu partido e disputar a sua liderança aos rivais. É rara tal enxurrada de desprezo pelos compromissos pessoais e pelos eleitores. Para tornar a situação ainda mais deprimente, aconteceram as mortes de Sophia e de Maria de Lourdes Pintasilgo, dois exemplos luminosos de participação cívica, como se o céu nos quisesse confirmar que se avizinham tempos negros para a cidadania.

Perante a decisão de Sampaio houve quem tenha sido lesto a dizer que o presidente tinha traído a sua base eleitoral, o que não pode deixar de ser considerado como um disparate. A base eleitoral de um presidente dissolve-se no momento da sua eleição e este não deve nenhuma “lealdade qualificada” àqueles que o elegeram. Para o Presidente da República só há portugueses – todos iguais e dignos da mesma lealdade.

O que é verdade, porém, é que o facto de Jorge Sampaio ser “o Presidente de todos os portugueses” não o obriga a ser o seu mínimo denominador comum ou a apagar as suas convicções e valores até se tornar o lugar do vazio da política. Quando os portugueses escolheram Sampaio elegeram não um notário mas um líder político – e um líder vindo da esquerda, com valores bem definidos e claramente apresentados ao eleitorado. Não se espera de um tal líder que faça uma guerrilha institucional a um Governo de direita, longe disso, mas que, nos momentos em que é chamado a escolher, o faça de acordo com os seus valores.

Ao eleger uma pessoa de esquerda como Presidente esperamos que esse presidente privilegie (com maioria de razão nos casos de dúvida sobre o melhor caminho a seguir, quando as opiniões dos cidadãos estão divididas e quando de ponto de vista legal todas as opções são possíveis) princípios democráticos sobre princípios oligárquicos, escolhas eleitorais sobre escolhas dinásticas, a democracia sobre a tecnocracia, a soberania do povo sobre a soberania dos partidos, a opinião das eleições à opinião dos patrões. A escolha de Sampaio é legítima, mas é uma escolha distante dos valores pelos quais foi eleito. Se ela fornecesse uma garantia de estabilidade, poderia ser defendida – mas essa estabilidade não está garantida. Além de que um democrata de esquerda não pode hesitar se tiver de escolher entre a estabilidade e a democraticidade (ainda que haja questões de grau que têm de ser equacionadas). Essa é precisamente uma das linhas divisórias entre a esquerda e a direita.

A inopinada demissão de Ferro (compreensível mas inaceitável de um líder da oposição no momento em que toma posse o que ele considera o pior governo de sempre) é o único gesto que pode dar razão “a posteriori” ao gesto de Sampaio. Será que alguém que desiste como Ferro o fez poderia ser um bom chefe de Governo? Se acrescentarmos essa dúvida de Sampaio a todas as outras poderíamos encontrar um argumento em favor da sua decisão. Mas, nesse caso, Sampaio teria de fazer essas considerações “ad hominem” em relação também a Santana Lopes – e estas não seriam vantajosas ao homem do PPD-PSD. A não ser que o presidente quisesse com a sua decisão proteger o Partido Socialista do risco de formar um Governo fraco – mas claro que essa razão seria inaceitável para o Presidente de todos os portugueses.

Olhe-se de que lado se olhar, a decisão de Sampaio foi errada – mas, paradoxalmente, pode acabar por ser uma bênção para a oposição, se esta aproveitar o tempo para se organizar e souber responder taco a taco, didacticamente, às investidas demagógicas de Santana, que já começaram.

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