terça-feira, julho 20, 2004

S. Bento “light”

Por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 20 de Julho de 2004
Crónica 27/2004

Santana Lopes é um político instantâneo: basta juntar água e sai uma manchete. E é, por isso, a maravilha dos telejornais e da imprensa popular.


À primeira vista, o que transparece da estrutura do Governo de Santana Lopes (uma expressão a que temos de nos habituar, apesar de parecer uma contradição nos termos) pode fazer sentido e até parece conter uma ideia mobilizadora. Autonomizar o Ambiente e o Turismo e dar-lhes dignidade de ministérios poderia até corresponder a uma aposta estratégica no turismo e na qualidade de vida – o que é, em princípio, razoável e até atraente.

Só que, como que para demonstrar a vacuidade de pensamento de Santana Lopes e que este tanto pode dizer uma coisa como o seu contrário conforme o momento e o interlocutor, acontece que o novo primeiro-ministro tinha acabado de lançar a sua ideia da “descentralização” do Governo, provando que não há na sua mente nenhuma verdadeira reflexão (ou convicção) sobre a valorização do território, sobre aquilo que serão os novos eixos de acção governativa ou sequer sobre a forma como os seus ministérios se devem articular.

Significativamente, os ministros “de fora de Lisboa” também desapareceram até à tomada de posse, como irão desaparecer ao longo da semana muitos outros “sound bytes” lançados nos telejornais da noite, sempre inesperados para poderem ser confundidos com ideias inovadoras, mas capazes de convencer os mais distraídos de que está ali um homem inventivo, activo, optimista e voluntarista, desenvolto, sem preconceitos e sempre ansioso por dar um passo em frente.

É toda esta chuva de ideias surpreendentes e polémicas, de casinos e túneis, que poderá fazer com que os media se tornem “aliados objectivos” do consulado de Santana Lopes (sejam seus partidários ou não). É que é da natureza dos média estarem sempre famintos de novidades e gostam tanto delas quanto mais originais elas forem, quanto mais superficialmente puderem ser apresentadas e quanto mais rapidamente se sucederem umas as outras. Santana Lopes é um político instantâneo: basta juntar água e sai uma manchete. E é, por isso, a maravilha dos telejornais e da imprensa popular. A atracção entre os dois é como a da chama e a borboleta, ambos se consomem na paixão do efémero.

A “descentralização” foi um bom exemplo. Santana Lopes nem sequer prometeu instalar a secretaria de Estado do Turismo em Faro ou o Ministério da Economia no Porto – tratou-se de puro verbo. Bastou dizer que considerava essas medidas admissíveis, atirando a ideia para cima da mesa no meio de uma entrevista. Isso foi suficiente para ouvirmos autarcas entusiásticos, cheirando a proximidade de um poder mais permeável, outros reivindicando a implantação nas suas coutadas, tudo acompanhado dos inevitáveis inquéritos “Acha bem que o Ministério dos Negócios Estrangeiros vá para o estrangeiro?” com que todos nos pudemos entreter.

Alguém tentou discutir alguma coisa com seriedade? Pode dizer-se que não valia a pena, porque as pessoas sérias sabiam que era a brincar e as outras não estavam interessadas numa discussão séria, mas o espaço público foi ocupado por esse fogo-fátuo.

Que as notícias têm um valor de entretenimento já se sabe, como se sabe que essa face dos media se tem reforçado enormemente nos últimos tempos, com a consequente redução do espaço de intervenção cívica, de debate sério, de reflexão, de construção de opinião pública. O que é necessário ter presente é que o valor de Santana Lopes como “entertainer” é imenso e que esse valor é directamente proporcional à dificuldade que os media vão ter em fazer jornalismo ou análise política (digamos “análise das políticas”, para sermos mais claros) de forma eficaz.
O populismo (e Santana Lopes) não só garante representar os verdadeiros interesses do homem comum, como gosta de afirmar que os problemas são fáceis de equacionar e de resolver e que só é preciso vontade para o fazer (“8 meses para tratar do Parque Mayer!”). Se nada foi feito antes a culpa foi dos outros, da oposição, de Espanha, da Europa, dos intelectuais, dos políticos, dos grupos de estudo, dos emigrantes, da legislação que obriga a estudos de impacto ambiental e não deixa as coisas andar para a frente... O populismo substitui o bom senso pelo senso comum, a erudição e a análise pelo sentir do homem da rua – daí a necessidade de Santana Lopes se apresentar como um homem simples, que “fala com o coração ao pé da boca”, que “pensa como nós”.

Se é um dever do jornalismo mostrar como funciona o mundo, explicar os acontecimentos e dar voz a perspectivas diferentes para dar instrumentos ao público para que este forme a sua opinião, é evidente que a sua tarefa será particularmente pesada quando concorre na ocupação do espaço público com alguém cujos princípios não o obrigam a retratar a realidade com a mesma preocupação de fidelidade, independência ou profundidade e que tenta agir antes de mais não sobre o real mas sobre a sua representação – sobre o próprio espaço mediático, onde se ganham as eleições. Onde a imprensa tenta ser realista, o populista fornece uma narrativa simples e emotiva, desculpabilizadora e adormecente. O debate democrático é apresentado como confuso ou elitista, as consultas democráticas como perdas de tempo, a negociação como fraqueza, a reflexão como hesitação, a análise como estéril exercício intelectual. O populismo não tem um programa, uma ideologia, não tem sequer uma estratégia - é uma táctica de conquista e manutenção do poder.

O consulado de Santana Lopes coloca, por isso, um particular desafio aos jornalistas em particular. No fundo, vamos ter de concorrer com mais um tablóide sensacionalista e uma revista cor-de-rosa que faz sonhar. Só que, desta vez, eles estão em S. Bento.

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