terça-feira, abril 17, 2012

Critérios de fachada legalista servindo objectivamente a corrupção

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Abril de 2012
Crónica 16/2012

Devemos alargar aos ricos ociosos e aos corruptos as obrigações que o fisco já
exige a todos os trabalhadores

O diploma que pretendia criminalizar o "enriquecimento ilícito", recentemente chumbado pelo Tribunal Constitucional, tinha algo que não batia certo.
É que o "enriquecimento ilícito", se é ilícito, já está criminalizado. Ou seja: estabelecer que o enriquecimento ilícito é um crime corresponde, afinal, a dizer que enriquecer em resultado de ter cometido um crime é... um crime. Mas como cometer um crime é um crime, passe a tautologia, a nova figura não viria acrescentar nada de novo. Quando muito, poder-se-ia considerar que o enriquecimento como consequência da prática de um crime constituiria uma agravante do crime - condenando com maior rigor os criminosos mais hábeis.

Só que o novo crime  não pretendia nada disto, mas sim encontrar forma de acusar pessoas que tivessem enriquecido de forma que se supunha ilícita sem que fosse necessário identificar e provar o crime que estaria na origem do enriquecimento, bastando provar o enriquecimento.

É claro que isto levanta o problema do ónus da prova que, num Estado de direito, tem de estar do lado da acusação. É evidente que seria moralmente (e constitucionalmente) inaceitável abordar uma pessoa, acusá-la de ter enriquecido de forma ilícita e obrigá-la a provar a falsidade da acusação e a demonstrar que não cometeu crime algum. Isto seria a famosa "inversão do ónus da prova", um princípio que, a ser aceite, abriria a porta a muitos abusos. Se eu for acusado de um crime, cabe ao Estado provar a minha culpa e não a mim provar a minha inocência. É o direito de todos os cidadãos serem considerados inocentes até prova em contrário, a também famosa presunção de inocência, outro princípio basilar do regulamento jurídico das democracias.

Posto isto, a verdade é que o que está em causa é, de facto, encontrar uma forma de identificar e responsabilizar as pessoas que enriqueceram de forma ilegal - mesmo quando não há esperança de que essas ilegalidades venham a ser provadas - já que existe o sentimento de que estas situações são frequentes. Como se resolve o dilema?
Existe actualmente na sociedade a forte convicção de que a corrupção - e, em particular, a grande corrupção, associada aos governantes, aos partidos, aos autarcas, às grandes empresas, ao capital financeiro e aos grandes contratos que unem uns e outros - goza de uma absoluta impunidade. Tal como existe o sentimento de uma descarada dualidade de critérios na administração da justiça, sempre forte com os fracos e os pobres e sempre tímida com os ricos e poderosos. Estes sentimentos geram não só uma animosidade particular contra os suspeitos, como destroem a confiança que deveria existir no sistema político e nos seus agentes, na Justiça e nos seus agentes, na actividade económica como fonte de riqueza e até na própria democracia.
Não podemos deixar de achar estranho que uma pessoa que amealha uma fortuna de dez milhões de euros em dois anos, apesar de ter apenas um ordenado de 1800 euros, não tenha quaisquer explicações a dar à sociedade, enquanto o dono de um restaurante pode ser multado por não ter registado nas suas receitas um almoço de sete euros. Não é estranho que os sete euros tenham de ser declarados porque são fruto do trabalho, mas os dez milhōes, eventualmente fruto de crimes, não tenham? Não há aqui uma estranha dualidade de critérios de fachada legalista servindo objectivamente a corrupção?
É também estranho que tenhamos de provar que um apartamento ou um carro nos pertence e que tenhamos de identificar a pessoa a quem o comprámos, que tenhamos não só de declarar todos os euros que ganhámos mas quem nos pagou esses euros e quando e porquê e que o senhor dos dez milhōes de euros não tenha de dar quaisquer explicações a ninguém.

Como se resolve o dilema? Alterando um pouco os objectivos. Se considerarmos que a ilicitude está no enriquecimento, vai ser sempre preciso prová-lo - o que, em particular nos casos de corrupção, parece difícil. Mas podemos mudar o crime, enquadrando-o no âmbito fiscal e decretar a obrigatoriedade de declarar a fonte de todo e qualquer rendimento (ou de o fazer acima de certo patamar) e de a provar documentalmente. Ou seja: alargar aos ricos e corruptos o que o fisco já me exige a mim e a todos os trabalhadores. No fundo, é isto que queremos. A obrigatoriedade de declaração criará a ilicitude da não declaração - ou da declaração incompleta ou errónea. Estes são crimes que será fácil ao Estado provar (ou, pelo menos, investigar), sem inversão do ónus da prova e sem abandonar a presunção de inocência. E as penas poderão ir até ao confisco do bem em questão. Claro que a nova lei não vai resolver todos os problemas - mas nenhuma resolve. Trata-se afinal de conseguir sancionar o “enriquecimento ilícito” não através da figura do “enriquecimento injustificado” mas através de uma simples “obrigatoriedade de declaração de todos os rendimentos e sua origem”. (jvmalheiros@gmail.com)

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