por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Dezembro de 2009
Crónica x/2009
Texto publicado no jornal Público a 15 de Dezembro de 2009
Crónica x/2009
Os serviços que o advogado vende são os mesmos que a comunidade lhe compra quando o contrata como deputado
Há muitos anos que se discute entre os jornalistas se o seu regime de incompatibilidades não deveria alargar-se para incluir também a prática da advocacia. A última (e polémica) revisão do Estatuto do Jornalista, feita em 2007, não incluiu essa alteração e é verdade que ela está longe de ser consensual na classe.
Que as duas funções são incompatíveis é, para mim, claríssimo. O contrato social que vincula o jornalista obriga-o a ser independente de todos os interesses, por muito legítimos que eles sejam – ou, pelo menos, a fazer todos os esforços ao seu alcance para tentar sê-lo.
É esse o seu dever deontológico e essa a especificidade que distingue os jornalistas de outros produtores de informação.
O advogado tem por imposição deontológica não ser independente e, pelo contrário, defender sempre o ponto de vista e os interesses do seu cliente. Mais: ele tem não só o direito mas até o dever de não divulgar qualquer informação que possa de alguma forma prejudicar o seu constituinte. Trata-se de posições antagónicas.
É evidente que se pode navegar entre os escolhos e evitar abordar como jornalista os assuntos e as pessoas de que se trata como advogado, mas trata-se de um campo minado, porque os interesses não são ilhas bem delimitadas.
E o jornalista não é um funcionário cujo dever o obriga apenas durante as horas normais de expediente.
A sua deontologia é a sua cultura e obriga-o em todos os momentos da sua vida. É aliás este o entendimento da lei: um jornalista não pode fazer publicidade ao sábado e assessoria de imprensa ao domingo com o argumento de que está fora do seu horário de trabalho. Esconder segredos de manhã e divulgar segredos à tarde não é possível e gera conflitos deontológicos insanáveis.
Se a advocacia é incompatível com o jornalismo, é evidente que ela não pode ser compatível com o exercício da função de deputado. Se consideramos fundamental para a democracia que um jornalista seja independente dos interesses particulares, é claríssimo que essa exigência é particularmente importante para quem detém o poder de fazer as leis. Que dezenas dos nossos deputados sejam, paralelamente à sua função parlamentar, pagos para defender os interesses das mais diversas personalidades e instituições (frequentemente mais bem pagos do que são no Parlamento) é algo que não podemos deixar de considerar preocupante e contrário aos interesses da democracia. Esta posição tem sido defendida pelo bastonário da Ordem dos Advogados – que foi ele próprio, curiosamente, um destacado jornalista-advogado – e voltou recentemente à baila devido a uma inesperada proposta do deputado do PSD António Preto, actualmente a ser julgado por fraude no chamado “caso da mala”.
Marinho Pinto tem repetido que “quem faz as leis no Parlamento não pode ao mesmo tempo aplicá-las nos tribunais”. Há quem conteste esta visão dizendo que, se um deputado não tiver uma actividade extraparlamentar, será financeiramente dependente do seu partido e, por essa via, menos independente, mas o que acontece é que ser advogado não é a mesma coisa que ser arquitecto ou professor. Os serviços que o advogado vende a quem pagar são exactamente os mesmos que a comunidade (o Estado) lhe compra quando o contrata como deputado: a defesa jurídica e retórica de uma perspectiva, de uma posição, de um interesse (no caso do Parlamento, o bem comum; no caso do advogado, um interesse particular).
Um advogado é, para todos os efeitos, uma hired gun.
Não é estranho que se possa alugar os serviços de um deputado, ainda que seja em part-time?
Marinho Pinto receia que os advogados, para respeitar um dever deontológico para com os clientes (que coincide para mais com o seu interesse financeiro) fi ram o dever ético para com a comunidade. Esse receio é inevitável.
Mas, ainda que seja possível que um advogado defenda um interesse de manhã e outro à tarde, esquecendo o primeiro, será que é assim que queremos que ajam os nossos deputados? (jvmalheiros@gmail.com)
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