terça-feira, maio 27, 2014

Como é que se faz reset a esta democracia?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 27 de Maio de 2014
Crónica 27/2014


António José Seguro continua a ser o melhor amigo de Pedro Passos Coelho.

1. A nota mais relevante para o nosso presente e para o nosso futuro, de Portugal e da Europa, para o futuro da democracia. Nas eleições europeias de domingo tivemos em Portugal a mais elevada abstenção de sempre: mais de 66%. E isto num momento histórico em que a importância da Europa no quotidiano de todos nós era evidente e gritante. Não é uma novidade e a maior parte dos países onde o voto não é obrigatório tem níveis de abstenção semelhantes, mas isso não torna o problema menos importante. Pelo contrário, torna-o mais importante.

Apesar dos ocasionais lamentos de circunstância, a maior parte dos políticos olha para este problema com indiferença: “As pessoas podiam ir votar se quisessem. Não foram porque não quiseram. Estão no seu direito. Não votar é uma forma tão aceitável de participar como votar.” É a mesma atitude que tem a direita quando olha para os bairros de lata: “As pessoas vivem neste bairros porque não se esforçam, porque não se preocuparam em estudar e em adquirir as competências que lhes garantam um emprego, porque não se esforçam em encontrar emprego ou em criar o seu próprio emprego, porque não têm ambição.” Trata-se, nos dois casos, do mesmo discurso de exclusão, de justificação da exclusão.

Só que a democracia é o governo do povo. Do povo todo, não apenas dos que votam. E os abstencionistas não abdicam da sua soberania. Escolhem não a exercer neste momento, ou não a exercer desta forma ou são impelidos de alguma forma a não a exercer. E esta soberania por usar é um golpe no flanco da democracia por onde a sua vida se esvai.

Os abstencionistas ou escolhem ficar de fora da democracia, ou escolhem ficar de fora desta democracia, ou são empurrados para ficar de fora desta democracia. Qualquer uma das hipóteses representa uma bomba-relógio no coração da democracia.

Uma das justificações benignas da abstenção é que ela representa “um voto de protesto” contra o sistema, contra os partidos, contra a União Europeia. É uma explicação benigna, porque pressupõe que os abstencionistas se estão a exprimir e que o seu protesto tem consequência. Simula que também eles participam. Só que um protesto que não tem voz não é um protesto, porque nem sequer conseguimos saber contra o que se manifesta.

Esta abstenção é apenas distanciamento, alheamento em relação a esta forma de fazer política e de se fazer ouvir – ainda que não seja indiferença. Este alheamento da democracia por parte da maioria esmagadora do povo não é um pormenor, porque não há democracia sem o povo. A democracia não é uma formalidade. A realização de eleições não chega para definir uma democracia. Uma democracia em que a maior parte do povo não participa nas escolhas não é uma democracia e não há peneira que consiga tapar esta evidência.

Muita desta abstenção vem de pessoas que já foram há muito excluídas do sistema e que não têm razões para confiar na democracia. Pessoas desempregadas, desmotivadas, desesperadas, pobres, abandonadas, sem voz. Ou de pessoas que, simplesmente, não acreditam que seja possível escolher outra coisa, que é outra forma de descrer da democracia.

Não há nenhum projecto mais urgente para a democracia do que recuperar para o exercício da sua soberania as pessoas que não fazem ouvir a sua voz.

2. O PSD-CDS perdeu as eleições, mas não perdeu como merecia. Nem como se esperaria de um governo empenhado no aumento da pobreza, na destruição do Estado social, na pilhagem do património do Estado, na submissão ao capital financeiro e na traição de todas as suas promessas e deveres. A sua suave derrota faz pensar. O que seria preciso para que os portugueses castigassem duramente um governo vende-pátrias?

3. A suave derrota do PSD-CDS é a grande derrota do PS. Se num contexto como o actual o PS não consegue melhor, é porque... não consegue melhor. Isto é o máximo que Seguro consegue, numa descida íngreme, com os apparatchiki a empurrar e com o prego a fundo. Não chega. Seguro continua a ser o melhor amigo de Passos Coelho.

4. A CDU teve uma vitória retumbante que não a levará a lado nenhum. A CDU fez uma boa campanha, discutiu Portugal e a Europa, conseguiu o máximo a que podia aspirar, ajudou a esvaziar o Bloco de Esquerda e está no seu labirinto, sem ninguém com quem falar. Resta-lhe esperar continuar a crescer até chegar um dia aos 40%. A história está do seu lado, diz. Nos seus sonhos mais ousados, onde pensará Jerónimo de Sousa que o PCP poderá estar daqui a dez anos?

4. Marinho e Pinto fez um discurso centrado na ausência de ideologia, no combate à corrupção e ao compadrio dos partidos e ganhou. Se alguma bandeira pareceu mobilizar os leitores nestas eleições, foi esta. Note-se.

5. O Bloco de Esquerda terá percebido que regressar à pureza ideológica da UDP não é a melhor estratégia?

6. O Livre provou que há espaço vazio à esquerda à espera de ser ocupado. Com meia dúzia de semanas de vida, o seu resultado, mesmo sem ter eleito nenhum deputado, é notável.

jvmalheiros@gmail.com


Artigo no Público: http://www.publico.pt/politica/noticia/como-e-que-se-faz-reset-a-esta-democracia-1637568 

terça-feira, maio 20, 2014

A lei da rolha disfarçada de código de ética

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Maio de 2014
Crónica 26/2014


O objectivo não é defender o Estado, mas garantir a opacidade dos organismos do Ministério da Saúde.

1. Chamam-lhe o novo Código de Ética do Ministério da Saúde. Ainda não entrou em vigor, mas está em fase de consulta e o texto foi enviado a várias organizações, algumas das quais já fizeram os seus comentários.

Entre as disposições do documento de que a imprensa se fez eco consta o dever, para todos os funcionários que trabalhem no Serviço Nacional de Saúde, de “guardar absoluto sigilo e reserva” sobre qualquer informação que possa “afectar ou colocar em causa” o interesse da organização.

Para além desta disposição, determina-se que todos os “colaboradores e demais agentes” dos organismos sob a tutela do Ministério da Saúde “devem abster-se de emitir declarações públicas, por sua iniciativa ou mediante solicitação de terceiros, nomeadamente quando possam pôr em causa a imagem da (nome do serviço ou organismo), em especial fazendo uso dos meios de comunicação social”.

A primeira curiosidade do documento é o facto de se chamar “Código de Ética”, mas esse facto deve atribuir-se ao newspeak adoptado pelo Governo, que chama “libertação” a despedimentos, “ajustamento” ao empobrecimento, “oportunidade” ao desemprego, “privilégios” a pensões, etc. Um nome mais adequado para o documento seria "Procedimentos de intimidação e controlo”, mas como de cada vez que um membro do Governo usa uma designação honesta lhe cai uma orelha, Paulo Macedo não quis correr o risco.

Repare-se que esta proibição não se aplica apenas quando as eventuais declarações dos colaboradores e demais agentes “possam pôr em causa a imagem” do organismo, mas em todos os casos. O “nomeadamente” está lá para vincar que isso é proibido, mas o resto também.

É particularmente reveladora a expressão que considera uma agravante (“em especial”) a difusão não autorizada de informações aos meios de comunicação social.

À primeira vista parece estranho que os media apareçam singularizados como o inimigo principal (não faria mais sentido ser especialmente duro com a partilha de informações sensíveis com o crime organizado? Com organizações terroristas? Potências estrangeiras? Corretores de Bolsa? Fornecedores do Estado?), mas a intenção é clara: o objectivo não é defender o Estado ou os organismos do Ministério da Saúde de qualquer perigo particular, nem defender a lisura de procedimentos ou garantir uma leal concorrência nos contratos públicos ou outra qualquer razão admissível. O que se pretende é, simplesmente, garantir a opacidade dos organismos do Serviço Nacional de Saúde e intimidar os seus funcionários, de forma a impedir que o público seja informado do seu funcionamento interno, mesmo quando ele apresente problemas graves, e desresponsabilizar os dirigentes pelas suas decisões.

Um verdadeiro código de ética deveria estabelecer que a principal responsabilidade dos funcionários do SNS é para com os cidadãos e que é seu dever denunciar e divulgar qualquer situação que, em consciência, lhes pareça atentatória da qualidade técnica e humana que esses serviços devem garantir, de forma a garantir os altos padrões de funcionamento que o público exige. É lamentável que a lei da rolha e a intimidação a priori de qualquer eventual whistleblower seja a prioridade de Paulo Macedo.

Sobre este ponto merece menção a atitude da Ordem dos Médicos, cujo Conselho Regional do Sul decidiu apoiar os seus membros que falem publicamente sobre o que se passa nos seus locais de trabalho e prometeu estar “ao lado de cada médico que seja ameaçado por denunciar situações de grave prejuízo para os doentes no seu serviço ou instituição”.

2. O mesmo “Código de Ética” pretende obrigar os funcionários do SNS a entregar à Secretaria-Geral do Ministério da Saúde todas as ofertas que recebam para que elas sejam posteriormente doadas a instituições de solidariedade social. O objectivo é meritório, ainda que o procedimento pareça excessivamente pesado e ineficaz (se não promotor de maior clandestinidade). Gastar 50 euros em procedimentos administrativos, transporte, armazenamento e arquivo digital para que um funcionário não guarde para si um brinde de um euro é um disparate. Mas o que é mais surpreendente é que seja o Governo do PSD-CDS, partidos cujos militantes são conhecidos pelo seu apreço às prendas, a tentar impor esta disciplina aos funcionários do SNS.

O intento moralizador de Paulo Macedo seria mais credível se os partidos do Governo, antes de tentarem impor esta frugalidade aos funcionários públicos, anunciassem que todos os membros do Governo e deputados das suas fileiras passarão a recusar qualquer prenda que lhes queiram dar. Eduardo Catroga, ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva, ex-futuro ministro das Finanças de Passos Coelho e verdadeiro padrinho da troika, gabava-se de receber “pratas, vinhos raros e livros” quando era ministro e queixava-se de ter perdido prendas quando deixou de ser ministro, o que achava não só natural como muito agradável. Que tal começar a moralização por cima?

jvmalheiros@gmail.com


domingo, maio 18, 2014

Parque infantil

Post publicado no Facebook a 18 de Maio de 2014

Os balouços estão todos ocupados. Há cinco, mas um está estragado há meses e tem as correntes embrulhadas num nó e por isso só há quatro. 
Há uma criança que espera a sua vez, encostada a um dos postes dos balouços. Passado um bocadinho há duas. As crianças nos balouços balouçam-se alegremente, tentam tocar nos pés umas das outras e gritam excitadas, indiferentes ao desespero das que esperam. É evidente que tencionam ficar ali horas. Uma das crianças que espera impacienta-se, sem desamparar o poste. "Ó mãããe! Eu quero andar!..." A mãe responde de longe, sentada num banco, num tom de voz estudadamente civilizado, num volume um tudo-nada mais elevado do que seria necessário para a criança ouvir. "Tem de esperar a sua vez. Os outros meninos estão a andar..." A menina sabe perfeitamente que os outros meninos estão a andar. É mesmo esse o problema. Os outros meninos estão a andar e nunca mais param de andar. Ela quer que a mamã TIRE os outros meninos do balouço para ela poder andar e ficar ela ali a balouçar-se e a tentar tocar nos pés dos outros meninos, indiferente ao desespero das crianças que esperam.
Uma terceira criança junta-se às outras duas que esperam e encosta-se timidamente a um terceiro poste. A mãe da criança que falou levanta-se e vai lentamente juntar-se à filha, ao pé do poste.
É uma jogada táctica clássica, que David Attenborough já explicou num documentário sobre as alterações no comportamento das leoas com crias quando a savana aperta. O objectivo é garantir o lugar da filha na fila de espera tácita, que corre o risco de se desordenar com o aumento da procura, e aumentar a pressão sobre os ocupantes do balouço.
Mandam as regras não escritas das relações no interior de parques infantis que nenhum pai diga a uma criança que não é sua filha que já está há tempo suficiente a andar de balouço, porque isso a) poderia ser interpretado como um acto de agressão pelo pai da criança interpelada, levando a uma escalada armamentista e b) porque isso abriria a caixa de Pandora, permitindo que qualquer pai decidisse pôr fim arbitrariamente ao tempo do balouço dos filhos alheios. No entanto, é permitido pressionar os incumbentes através da presença silenciosa e aplicar um olhar persistente às crianças que continuam a balouçar. Passado um minuto, há um pai ou uma mãe ao pé de cada uma das três crianças que esperam o balouço, todos com uma careta de impaciência e braços cruzados sobre o peito, o sinal internacional de que estamos preparados para esperar, mas não muito.
É o momento em que a mãe de um dos balouçantes finalmente se levanta, se aproxima do balouço e sugere ao filho que podia ir agora brincar na outra coisa lá ao fundo. Ele vai e os outros todos também, numa debandada tão rápida que apanha todos os esperantes de surpresa. É por pouco que uma das crianças na fila não é ultrapassada por uma arrivista mais expedita, mas a mãe vigilante não permite o golpe.
Durante uns minutos, a calma rereina no sector dos balouços.
A razão por que não há mais balouços nos parques infantis é um dos grandes mistérios da natureza, que não espanta que perdure para além da descoberta do bosão de Higgs.
Nos parques infantis há balouços, escorregas, estruturas para escalar e outras coisas, mas só há bichas e guerra fria nos balouços. Ja experimentaram sugerir a um guarda do parque que diga aos seus chefes que ponham mais balouços? A resposta é, invariavelmente, "Só há bichas nos balouços porque todos os miúdos preferem os balouços". Se tentarmos um "Mas precisamente! É por isso mesmo que devia haver mais balouços" a resposta é um olhar de profunda piedade pela nossa estupidez. No entanto, a ideia não é completamente estúpida. É apenas radicalmente revolucionária. Mas um dia, quem sabe...

terça-feira, maio 13, 2014

O mínimo que podemos exigir

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 13 de Maio de 2014
Crónica 25/2014


Falar simplesmente de “uma sociedade mais justa” ganhou foros de radicalismo.1. A campanha eleitoral para as europeias já começou e agora vamos ter de aturar doze dias de mentiras descaradas, de reescrita da história recente e de provocações do PSD e do CDS e doze dias de discursos absolutamente vazios de conteúdo do PS, dando uma no cravo e outra na austeridade, sempre empenhado em atacar o Governo com veemência ma non troppo, num daqueles exercícios de hipocrisia e de língua de trapos que são a razão do crescente desencanto dos cidadãos com a democracia.

Vamos ver Paulo Rangel com a irritação descabelada que se compreende em quem passou a ser mais magro que Nuno Melo (Nuno Melo é aquele candidato que aparece ao lado de Paulo Rangel), e Francisco Assis, sempre preocupado em dar de si mesmo uma imagem de grande sentido de responsabilidade, a tentar mostrar como qualquer política com o mínimo cheirinho a esquerda pode conduzir a um cenário dantesco e como não seria preciso muito para que o PS fizesse uma vaquinha com os partidos do Governo.

À esquerda vamos ver o Bloco a mostrar como a inclusão de independentes nas suas listas prova o seu empenho numa audaciosa política de amplas alianças à esquerda e a desencantar argumentos que explicam como a crescente contestação popular da austeridade e o reforço social da esquerda se deverão traduzir naturalmente numa perda de mandatos. E ao lado vamos ter a CDU, cujo esperado aumento de votos irá caucionar a sua pose isolacionista e reforçar a sua convicção de que é imprudente e precipitado sonhar com uma solução governativa à esquerda antes de 2060.

2. O espectáculo da campanha vai ser triste, mas o que será mais desolador será ver a quantidade de votos que os partidos do Governo vão, apesar de tudo, recolher, ilustrando as limitações da democracia. Assim como é desoladora a prevista vitória do PS, cujas promessas eleitorais e prática política se situam não no domínio da real alternativa e da construção de uma sociedade mais justa mas no domínio da nuance em relação ao PSD.

As poderosas máquinas de propaganda do poder (construídas para eternizar o que está), dos media à escola, as reais interdependências do mundo globalizado, o consumismo comodista produzido pelo mundo industrial e as esperanças políticas frustradas conjugaram-se para criar um espartilho de onde nos é difícil sair. Já não se deixou apenas de acreditar nas utopias libertárias que nos prometiam a paz e a felicidade e nas revoluções sociais transformadoras que nos prometiam a liberdade e a igualdade. A esmagadora maioria parece ter deixado de acreditar na possibilidade de um progresso radical da sociedade, de tal maneira que falar simplesmente de “uma sociedade mais justa” ganhou foros de radicalismo. Veja-se a timidez bem-comportada e a asséptica linguagem tecnocrática dos partidos que foram em tempos da social-democracia, do PS ao Labour e ao SPD alemão, apenas levemente distinguível do discurso da direita.

As vias de acção política trilhadas parecem estreitar-se cada vez mais e, mesmo dentro do espectro partidário disponível, os cidadãos concentram os seus votos num estreito caminho, numa tendência tão marcada para o conservadorismo e para o recuo civilizacional que em Portugal até se criou um leque partidário especial, um lequezinho de escolhazinhas mais pequenininho, um pequenino directório de partidos convenientes, bem-comportados, atentos, venerandos e obrigados, genuflectidos e súcubos, a que se chama “arco da governação”, para sublinhar bem que quem votar fora do penico desperdiça o seu voto e que tudo o que é possível escolher nesta pobre democracia é a cor das senhas dos centros de emprego e que para isso temos três opções diferentes: rosa, laranja e azul-bebé.

3. E, no entanto... No entanto, há razões para continuar a ter esperança e, mais do que esperança, não faltam razões e objectivos para lutar, porque aquilo que queremos para os nossos filhos e para os seus filhos não é diferente do que queriam os homens e as mulheres de há cem anos e ninguém pode ter como ambição ser um escravo com um telemóvel no bolso.

Apesar da lavagem ao cérebro a que somos submetidos dia a dia, minuto a minuto, apesar da atracção do “sucesso” e das maravilhas do “mercado” e dos sorteios de Audis, a liberdade não nos parece hoje menos valiosa do que ontem nem a justiça menos urgente. E a liberdade continua a ser possível e a justiça continua a ser possível, porque não nos esquecemos do que representam. Perante os que ridicularizam os sonhos de uma sociedade mais justa e falam em nome do império dos mercados e da finança internacional e da Realpolitik da submissão, temos de dizer coisas simples: uma criança não pode ser condenada à pobreza, à doença e à ignorância por ter nascido nesta família e não naquela. Todos temos o mesmo direito a participar na vida da cidade, ao trabalho, à saúde, à educação. A pobreza é inadmissível porque não é só uma escassez de recursos mas uma condenação à exclusão, à escravidão e ao sofrimento, um roubo da liberdade. Ninguém deve passar fome. A justiça tem de ser igual para todos. Sonhos? Sim. São os sonhos que temos o dever de exigir que os partidos realizem. Estes sonhos são a democracia. São o mínimo que podemos exigir.

jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, maio 06, 2014

Miséria social, miséria moral: mais pobres, mais frágeis

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Maio de 2014
Crónica 24/2014

A grande herança do Governo PSD-CDS no final do “programa de ajustamento” é a reinstituição do medo.


Voltaire dizia que “quase toda a História é uma sequência de atrocidades inúteis”. A frase adapta-se como uma luva ao “programa de ajustamento” a que Portugal foi submetido nos últimos anos pelo Governo de Passos Coelho, pelos seus “parceiros” europeus e pelo FMI. As atrocidades a que fomos submetidos não são os horrores da guerra que estavam na mente do filósofo francês, mas continuam a ser as velhas misérias sociais e um novo tipo de miséria moral de que Passos Coelho ou Paulo Portas são simultaneamente propagandistas e exemplos.

As misérias sociais estão à vista: desemprego, precariedade, subemprego, emigração forçada, salários mais baixos, pensões mais baixas, aumento da pobreza e da miséria extrema, mais pessoas sem qualquer rendimento e sem apoios sociais, mais crianças pobres, mais velhos pobres, mais crianças com fome, menos acesso à saúde, menos acesso à educação, mais abandono escolar, menos serviços públicos, mais depressão.

A miséria moral é aquela que foi sendo insidiosamente instilada na sociedade pela atitude do poder e pelo seu discurso, pelo seu recurso despudorado à mentira sistemática tornada banal, pelo seu uso da desconfiança como instrumentos de manipulação do público.

Não é surpreendente que, depois de Passos Coelho, de Paulo Portas, de Miguel Relvas, de Maria Luís Albuquerque, de Poiares Maduro tenhamos passado a considerar comum a falta de honorabilidade dos governantes, fazendo crescer o descrédito na democracia. Hoje vê-se como inevitável a promiscuidade entre políticos e negócios e aceitamos que a verdade, como antes acontecia na guerra, seja a primeira baixa da política.

O Governo conseguiu difundir uma cultura de desprezo pelos velhos e pelos doentes, apresentando-os como gastadores de recursos sem préstimo e como abusadores dos direitos sociais. Conseguiu impor um clima de confronto entre desempregados e trabalhadores, apresentando a estabilidade de emprego como pecaminosa e um obstáculo à competitividade. Conseguiu lançar uma guerra de gerações entre velhos “privilegiados” por terem pensões e jovens a quem foi dito que estavam em risco de nunca receber reformas devido aos “privilégios” dos seus pais e avós. O Governo conseguiu minar consensos sociais laboriosamente construídos ao longo de 40 anos de democracia, como o acordo sobre a necessidade de investir na escola inclusiva, na formação de alto nível e na investigação – que passou a ser referida na narrativa oficial como uma actividade “pouco produtiva” e longe da “economia real”. O Governo conseguiu apresentar sistematicamente a máquina do Estado como uma “gordura” improdutiva, um aparelho inútil e despesista, formado por burocratas preguiçosos e incompetentes, pondo trabalhadores do sector privado contra funcionários públicos e destruindo uma filosofia de serviço público e uma ética de trabalho com séculos de consolidação, para melhor desmantelar o Estado social. E impôs por todos os meios possíveis a agenda neoliberal segundo a qual o trabalho é uma mera mercadoria sem dignidade particular, cujo valor deve ser tão reduzido quanto possível.

A miséria moral que este panorama evidencia pode ser menos visível do que os dramas da pobreza, mas é infinitamente mais grave, porque abre fracturas de hostilidade e desconfiança na sociedade que levam muitos anos a reparar.

O sucesso ímpar do Estado social após a Segunda Guerra Mundial não se deveu apenas aos serviços que o Estado fornecia, mas ao clima de estabilidade e de cooperação, de confiança nos outros e no futuro que esses serviços possibilitaram. O grande sucesso do Estado social foi a derrota da insegurança e do medo – do medo da doença, do desemprego, do futuro.

A grande herança do governo PSD-CDS no final do “programa de ajustamento” é a reinstituição do medo e da insegurança como elemento central da vida social e como instrumento estatal de “regulação social”. E, com ele, a desconfiança e a desesperança. Dividir para reinar é uma receita eficaz, como todos sabemos.

E a grande herança do Governo PSD-CDS na prática política é a crescente banalização da mentira e a glorificação do despudor. O sofrimento não nos deixou melhor do que antes. As atrocidades só serviram os saqueadores.

A “saída limpa” que o Governo anunciou este fim-de-semana não é nem uma saída nem limpa, como qualquer pessoa com um mínimo de honestidade admite – porque a fragilidade da nossa situação financeira é igual ou pior do que era, porque permanecemos submetidos a uma tutela externa com direito de veto de facto das políticas nacionais. Mudámos apenas de suserano: antes eram os nossos “parceiros” europeus, amanhã serão os “mercados”. A diferença entre um “programa cautelar” e uma “saída limpa” é a que existe entre o lume e a frigideira. A chantagem é a mesma, apenas muda o agente. E a instabilidade é maior.

Quando a UE refere os “progressos impressionantes” que Portugal realizou, faz um exercício de hipocrisia. Estamos economicamente mais pobres e socialmente mais frágeis. Mais temerosos e mais divididos. Só pode achar que isto é um sucesso quem tivesse este objectivo.