quarta-feira, maio 27, 2009

A face escondida do Parlamento Europeu

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 27 de Maio de 2009
Crónica xx/2009

As pessoas preferem discutir aquilo que conhecem a discutir o que não conhecem. Haverá algo mais compreensível?

As eleições são para o Parlamento Europeu, mas os partidos e os media preferem discutir as questões nacionais. O Parlamento Europeu (PE) é mais importante do que os parlamentos nacionais, mas discutimos mais a actividade dos últimos que a do primeiro. E a taxa de abstenção nas eleições europeias é muito superior à das eleições nacionais.

As queixas são conhecidas, mas não há nada mais normal do que a actual situação. O que acontece é que as pessoas preferem discutir aquilo que conhecem a discutir o que não conhecem. Haverá algo mais sensato e mais compreensível?

É evidente que os partidos deviam fazer um esforço de informação e formação política sobre o papel do PE. Mas não o fazem e isso também é compreensível: dá trabalho, exige tempo e dinheiro, não dá votos e desvia energias que podem ser gastas a insultar os rivais políticos - além de que eles também preferem falar do que conhecem melhor (farinha Maizena, por exemplo) e sabem que um excesso de escrutínio público da actividade política lhes pode perturbar a digestão.

O que é menos compreensível é que essa actividade de informação não seja assumida de forma mais eficaz pelo próprio PE, nomeadamente através de uma utilização da Internet mais dinâmica.
Nos últimos anos, o site do PE melhorou de forma radical. Hoje o site é compreensível, bem organizado, possui a informação relevante de carácter institucional e até informação sobre a actividade parlamentar de cada deputado. O esforço de transparência é visível e o PE tem-se comprometido a aprofundá-lo.

Só que o esforço é insuficiente. A questão seria secundária se a Web fosse apenas mais um meio de difusão de informação, a par dos programas de televisão e dos folhetos, por exemplo. Mas a Web é "a" ferramenta da transparência política e "a" ferramenta de comunicação entre cidadãos e eleitos, por excelência.
E se os utilizadores profissionais conseguem encontrar o que procuram, esse não é o caso dos cidadãos em geral ou sequer dos jornalistas em geral.

O problema principal para um leigo quando acede a um site e procura informação sobre um dado assunto, não consiste em encontrar um documento (ou cem) sobre esse assunto, mas sim em encontrar as respostas às suas perguntas. É possível que no site do PE se possa encontrar informação sobre tudo - o problema é que, com frequência, o estatuto do documento que se encontra é, para um leigo, absolutamente misterioso. É um diploma aprovado? Está em vigor? Espera decisão do Conselho? É uma proposta antiga? Nova? Um documento já alterado por outro? Ou este é que é uma alteração a outro? Está em vigor nos estados-membros, em Portugal? O que tem a ver connosco? Qual é a legislação nacional que o traduziu para o direito interno? Que alterações foram introduzidas na sua regulamentação nacional? De onde vem? Qual foi a discussão que esteve na sua origem? Quem o propôs? Quem o redigiu? Quem o contesta? Porquê? Quem o apoia? Que alterações foram propostas? Por quem? Como foi votado?

A actividade central do Parlamento é a produção de legislação. Mas cada peça legislativa tem uma história, uma constelação de peças-satélites (propostas, debates, alterações, defensores, detractores) que lhe deve estar associada e ser facilmente recuperada. São essas peças que lhe dão sentido. E tudo isso deve ser disponibilizado desde o início do processo. O contraditório é parte essencial do debate democrático e do processo legislativo. O que queremos saber não é apenas o que sai do PE, mas sim o que está a acontecer, o que vai acontecer, quem defende o quê e porquê, como podemos intervir, pessoal ou institucionalmente, na União Europeia ou em Portugal.

Se o PE não se empenhar nesse exercício de transparência ex ante e se não se empenhar na promoção do debate e na estimulação do feedback continuará a alimentar a exclusão dos cidadãos da política europeia, por muito competentes que sejam os seus deputados. Jornalista (jvm@publico.pt)

sexta-feira, maio 22, 2009

Página de Rosto - Sunila Abeysekera: ao lado das mulheres do Sri Lanka

por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 22 Maio 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 13


Sunila Abeysekera, feminista (Sri Lanka)


Sunila Abeysekera não está optimista.

Nos últimos dias, o noticiário internacional tem estado cheio de notícias sobre aquilo que parece ser a derrota final da resistência armada tâmil, os famosos Tigres de Libertação da Pátria Tâmil (LTTE), às mãos das forças armadas governamentais do Sri Lanka. O Governo não parou de anunciar em tons vitoriosos que a zona norte e leste da ilha, predominantemente tâmil, terreno natural do LTTE, está neste momento totalmente nas suas mãos e não existe já qualquer foco de resistência. Para mais, parece certo que Velupillai Prabhakaran, o mítico líder dos Tigres, foi morto nas últimas horas do conflito, assim como o seu filho e todos os outros dirigentes da guerrilha, e não há ninguém com o carisma necessário para tomar o seu lugar. Parece que a guerra civil que tem oposto a maioria cingalesa (74 por cento da população do Sri Lanka) à minoria tamil (12,5 por cento), que durou 26 anos, que provocou 300.000 deslocados e pode ter causado até 20.000 mortos só no último ano, acabou ou está em vias disso. O que é uma boa notícia.

Mas Sunila Abeysekera não está optimista. Não só porque acha possível que se verifique um ressurgimento da resistência armada tâmil e o reacender da guerra civil, mas também porque receia a atitude do regime do presidente Mahinda Rajapakse mesmo que isso não aconteça.

“O Governo diz que a guerra acabou”, diz Abeysekera, “mas sabemos que as raízes do conflito só desaparecerão quando for dada ao povo tamil a possibilidade de uma verdadeira participação política, quando forem reconhecidos os direitos cívicos desta minoria, quando tiverem acesso à educação e ao emprego. E para isso acontecer é preciso que o Governo se volte para os dirigentes políticos moderados tâmiles e dialogue com eles. Sem isso, os problemas vão continuar a existir. Quanto à derrota militar… o LTTE já foi derrotado antes e a revolta regressou.”

Sunila Abeysekera está num bom posto de observação da realidade do Sri Lanka. Nascida em 1952, activista dos direitos humanos há quase trinta anos, corajosa e frontal militante feminista desde sempre, Abeysekera dirige a Inform, uma organização que se tem dedicado à denúncia das inúmeras violências e atropelos praticados pelos dois lados do conflito. O seu trabalho tem merecido o reconhecimento interno e internacional – Kofi Annan, o secretário-geral da ONU, entregou-lhe em 1998 o Prémio de Direitos Humanos da organização – mas Abeysekera tem tido de pagar um preço. Actualmente encontra-se fora do Sri Lanka e a conversa telefónica que mantemos tem como destino um país não identificado.

Abeysekera foi obrigada a fugir do seu país em Abril do ano passado devido a ameaças de morte que se provaram credíveis: militantes de organizações de defesa dos direitos humanos que receberam ameaças começaram a ser assassinados e Abeysekera decidiu não esperar que isso que lhe acontecesse a si. Não foi a primeira vez que foi forçada ao exílio. Em 1988, grávida da sua última filha (tem seis filhos), também teve de fugir para a Holanda depois de receber ameaças de morte. O ambiente político é de molde a fazer levar estas ameaças a sério. “No Sri Lanka, se se levanta a voz contra a injustiça, o castigo não costuma ser nada menos do que a morte”, dizia em 1999, numa entrevista dada ao UNESCO Courrier. “Não costuma tratar-se de intimidação, de agressões ou de prisão mas sim de assassinatos, extremamente brutais. Neste mesmo momento há pessoas que estão a ser raptadas, detidas e torturadas pelas forças de segurança e por grupos paramilitares. A cultura do medo deu lugar a uma cultura do silêncio”.

Abeysekera nunca cedeu a esse silêncio, mas não há razão para pensar que essa cultura vá desvanecer-se depois do fim do conflito. “Mesmo que não haja um regresso ao conflito armado”, diz-nos Abeysekera, continuando a analisar a situação actual, “isso não significa que haja a garantia de uma melhoria em termos de direitos humanos. A confiança que esta vitória militar deu ao governo e aos seus apoiantes, o facto de constituírem a maioria, reforçou a sua arrogância e tem havido um crescente clima de intimidação em relação a pessoas que são suspeitas de simpatias pelo LTTE ou simplesmente pelo povo tâmil. Há pessoas que têm visto as suas casas cercadas por multidões a gritar ameaças. As celebrações de vitória nas ruas às vezes acabam por dar origem a isso. As pessoas que estão na oposição política, nas organizações de direitos humanos, nos sindicatos estão muito ansiosas, muitas estão aterrorizadas.”

É o problema de uma guerra civil: quando se critica o “nosso lado” (Abeysekera é cingalesa) ou se denunciam abusos contra “o outro lado” acaba-se por ser considerado um traidor. Um insulto que Abeysekera ouviu muitas vezes ao longo da vida.

Há razões históricas mais que suficientes para a ansiedade de hoje. Quando do último cessar-fogo entre o Governo e o LTTE, em 2006, o país foi atingido por uma vaga de “desaparecimentos” de pessoas suspeitas de simpatias pelos Tigres – aquilo que ficou conhecido em Colombo, a maior cidade do país, pelo nome de “síndrome da carrinha branca”. Uma carrinha branca parava na rua, uns homens saíam e empurravam para a carrinha alguém de quem nunca mais se ouvia falar. Nos anos noventa, a ONU dizia que o Sri Lanka era o segundo país do mundo em número de “desaparecidos”, que se estimam em várias dezenas de milhares. O receio é que o regime tenha a tentação de levar a “limpeza” da oposição até ao fim.

A oposição e muitas organizações de defesa dos direitos humanos estão reunidas numa Plataforma para a Liberdade – mas Abeysekera acha “pouco provável” que, no actual clima de euforia e de arrogância, o regime dê um passo na sua direcção sem uma enorme pressão nesse sentido a nível internacional. E a pressão internacional nunca se fez sentir muito fortemente no Sri Lanka – um fenómeno que Abeysekera considera que não é isento de racismo e de uma visão neocolonialista: “Se uma pessoa branca tivesse sido raptada ou morta no Sri Lanka, os países ocidentais iriam reagir de uma forma diferente”, dizia na mesma entrevista ao UNESCO Courrier. “Mas aqui o que temos são umas pessoas castanhas a matar outras pessoas castanhas num país distante. Porque é que o Ocidente se iria preocupar?”

Sunila herdou a sua preocupação social do pai, Charlie Abeysekera, falecido há dez anos, um alto funcionário da administração pública de fortes convicções liberais e que colaborou com vários movimentos de defesa dos direitos humanos – “incluindo alguns dos que eu criei”, diz a filha, com uma nota de orgulho na voz.

As biografias oficiais costumam apresentá-la como cantora e actriz e, de facto, Abeysekera cantou (em palco e para o cinema) e fez teatro e produção de cinema – e ainda canta esporadicamente em eventos - mas a sua verdadeira actividade foi sempre a de activista dos direitos humanos e feminista. Nunca se casou com os pais dos seus filhos – com quem viveu – “por razões políticas, para marcar uma posição”. Um gesto que mostra a determinação desta mulher que continua a dedicar uma parte fundamental das suas energias a defender em particular os direitos sexuais da mulher (e também dos homens e das minorias lésbica, gay, bissexual e transgénero). A tarefa é particularmente difícil neste país hipertradicionalista e fez juntar-se ao grito de “traidora” com que muitas aparições públicas suas são mimoseadas - quando não são brutalmente interrompidas por provocadores -, uma colecção de insultos de carácter sexista.

Há uns anos Abeysekera fez um estudo sobre a representação da sexualidade feminina no cinema do Sri Lanka e chegou à conclusão de que às mulheres que (no ecrã) transgridem os limites definidos pela comunidade no domínio do sexo – por inocente que essa transgressão possa ser – restam apenas quatro caminhos em termos narrativos: “Ela podem enlouquecer, podem suicidar-se, podem ser mortas ou podem entrar para uma ordem religiosa”, escreve Abeysekera num artigo de 1999 sobre feminismo e sexualidade.

A inscrição no seio do combate feminista do direito das mulheres à auto-determinação em termos de sexualidade e reprodução tem sido um dos cavalos de batalha de Abeysekera – e uma batalha que não tem sido fácil.

Abeysekera milita aliás também numa organização de defesa dos direitos da comunidade LGBT, a Women’s Support Group – que participou em 2000, pela primeira vez, num desfile do Dia Internacional da Mulher.

O ambiente no Sri Lanka em termos de direitos da mulher e da permissividade relativamente à violência contra as mulheres pode ser bem avaliado através de um episódio contado pela própria Abeysekera numa entrevista dada no ano passado à revista de direitos humanos Combat Law: “Quando o Women’s Support Group anunciou a sua intenção de organizar uma conferência nacional sobre sexualidade, um popular jornal de língua inglesa publicou uma carta ao director onde um leitor sugeria que, nesse dia, as prisões soltassem os violadores que estivessem presos, para que estes pudessem mostrar a essas ‘Jezebéis’ o que era bom”.

Os que conhecem Abeysekera falam das suas qualidades de contadora de histórias, do seu vivo sentido de humor e da sua energia inesgotável. E é evidente em todas as suas intervenções uma aguda inteligência, que vai sempre para além do imediato, para além do fácil, numa abordagem que é simultaneamente pragmática e exigente. Numa intervenção para a televisão, gravada na passagem de ano 2007/2008, onde lhe pedem uma previsão para o ano que chega, Abeysekera termina, rindo-se, pedindo desculpa por ser “tão pessimista”. Ontem também não estava optimista sobre o futuro do Sri Lanka. Esperemos que se engane redondamente.

terça-feira, maio 19, 2009

As conversas informais e os juízos que formamos

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 19 de Maio de 2009
Crónica xx/2009

Não temos de esperar um julgamento para sermos autorizados a formar uma opinião sobre uma dada pessoa

Apresunção de inocência é um princípio fundamental do Direito. Mas a presunção de inocência significa apenas que uma pessoa não pode ser considerada culpada de um crime sem ter sido julgada e provada a sua culpa em tribunal - onde deve ter acesso a todos os meios necessários para contestar as acusações de que seja alvo.

O que já não é verdade é que tenhamos de esperar que haja uma investigação judicial e um julgamento de um qualquer caso para sermos autorizados a formar uma opinião sobre uma dada pessoa e a enunciar essa opinião. Por enquanto, a razão de cada cidadão ainda é autorizada a funcionar livremente e os juízos de valor - nomeadamente em relação aos políticos e à política - podem ser produzidos e divulgados sem autorização prévia de qualquer tribunal.

É por isso que não preciso de uma decisão judicial para ter (e para enunciar aqui) a convicção de que Dias Loureiro não devia ter assento no Conselho de Estado.

Não sei se as acusações que recaem sobre ele poderão ser provadas em tribunal. Mas não preciso de uma decisão judicial para formar uma opinião acerca de um homem que já vi e ouvi muitas dezenas de vezes, falando sobre tudo e todos e, nomeadamente, que já vi rebater os argumentos que têm sido usados contra si.

Dias Loureiro não merece a minha confiança e acho que pessoas que não merecem confiança não devem estar no Conselho de Estado. E até acho que o Presidente da República, que o nomeou, também já não confia nele. E não preciso de uma decisão judicial para formar a minha opinião, para analisar as declarações de Cavaco e extrair delas as minhas conclusões, ou poder dizer o que penso. O que é útil, repare-se. Se fosse preciso uma decisão judicial para podermos confiar ou desconfiar desta ou daquela pessoa, teríamos de submeter a rigorosos processos judiciais todos os candidatos a eleições e governantes e isso seria pouco prático e confrangedor. A confiança - e, nomeadamente, a confiança política - não funciona assim.
Vem isto a propósito do procurador Lopes da Mota e do processo disciplinar que lhe foi levantado, na sequência do inquérito a que foi submetido, após a denúncia de que foi alvo por parte de dois outros procuradores, encarregados de investigar o caso Freeport.

Também aqui, não sabemos qual será o resultado do processo disciplinar. Mas o simples facto de Lopes da Mota ter tentado menorizar a acusação de pressões de que foi alvo dizendo que se tratou apenas de uma conversa "informal" entre "amigos" diz o essencial. E quando admite ter referido que Sócrates queria ver o caso resolvido rapidamente, diz mais do que o essencial para formarmos uma opinião. Lopes da Mota quer dizer que não deu aos procuradores uma ordem formal no sentido de "arquivar" o processo. É, talvez, razão para nos felicitarmos. Mas a informalidade da conversa não constitui prova da sua inocuidade - pelo contrário. O que teríamos gostado, de facto, é que a conversa tivesse sido mantida dentro das fronteiras da mais estrita formalidade. Mais: que nem sequer tivesse existido qualquer conversa se não houvesse justificação oficial para ela ter lugar. O simples facto de ela ter existido revela da parte de Lopes da Mota, no mínimo, pouco escrúpulo na defesa da independência do Ministério Público e dos seus colegas, os magistrados encarregues do caso Freeport, e pouca inteligência na defesa do seu próprio nome.

Pelo meu lado, não vejo razão para confiar em Lopes da Mota. E penso que muitos observadores, pela Europa fora, pensam o mesmo e pelas mesmas razões. O que significa que é imperativo afastá-lo do Eurojust. O processo disciplinar verá a extensão das suas falhas. Mas as que conhecemos pela sua boca são suficientes para formarmos desde já esta opinião. Jornalista (jvm@publico.pt)

sexta-feira, maio 15, 2009

Página de Rosto - Jean Johnson: Isto não é uma escola!

por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 15 Maio 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 13


Jean Johnson, professora (Reino Unido)


Jean Johnson não hesita quando lhe pergunto se gostava da escola quando era miúda. “Odiava”, atira no seu tom definitivo. “Odiava a escola. Porquê? Por tanta coisa... Por tudo. Eu era esperta mas não encaixava, não tinha um grupo, não andava com a malta... Os meus colegas chamavam-me nomes… A única maneira que encontrei de enfrentar a coisa foi baixar a cabeça e mergulhar no estudo. O que não foi a maneira mais agradável de atravessar aquele período.”

Hoje, Jean Johnson, 57 anos, com um longo currículo de professora atrás de si, dirige aquele que é, segundo muitos especialistas, um dos mais inovadores e bem sucedidos programas de educação para alunos inadaptados, o Notschool, no Reino Unido. E a sua experiência de aluna inadaptada – que não a impediu de se transformar numa profissional particularmente bem sucedida e com uma reputação planetária – ajuda-a a compreender os problemas que enfrentam os 800 alunos que o programa tem neste momento. O nome de Notschool diz tudo, mas vale a pena explicar. Notschool não é uma escola. E se alguém não gosta da escola… tem boas razões para gostar de Notschool.

Notschool não tem mesmo nada a ver com a escola. A escola tem um edifício? Notschool não tem. Ou melhor: tem instalações no Essex, uns 50 quilómetros ao norte de Londres, que é onde trabalha o escasso staff de uma dezena de pessoas, mas os alunos não têm de lá ir. Os alunos estão em sua casa e trabalham através do computador. A escola tem aulas? Notschool não tem. A escola tem horário? Notschool não tem. Há alunos que passam o dia a fazer o que lhes apetece e só se ligam à noite. E há muitos que se ligam de manhã e à noite e aos fins-de-semana, principalmente nos períodos de maior actividade. A escola tem de seguir um currículo nacional, igual para todos os alunos? Notschool não tem um currículo definido. Nem disciplinas. Nem assuntos obrigatórios. E cada aluno faz o que lhe apetece. Literalmente.

Aliás, em rigor Notschool nem tem “alunos” nem “professores” – mas isso é apenas um truque para sublinhar como a cultura desta não-escola é diferente da cultura das escolas comuns. E para evitar que os nomes habituais sugiram coisas tristes aos utilizadores. Os estudantes aqui têm entre 13 e dezasseis anos e são chamados “investigadores” (“researchers”) e aqueles que noutras escolas são professores aqui são “mentores”. E depois há “peritos” e “amigos” (“experts” e “buddies”), em geral estudantes universitários que dão apoio aos alunos no que for preciso. Além de especialistas que trabalham em instituições como o Science Museum de Londres ou o World Wildlife Fund ou a BBC, que ajudam nas suas áreas de especialidade.

Como funciona um “ano lectivo”? Quando entram no programa os alunos recebem um computador, acesso de banda larga à Internet, uma máquina fotográfica digital, um scanner e ouros equipamentos digitais e recebem a necessária formação técnica para trabalhar com tudo aquilo. Depois, escolhem assuntos que lhes interessam e são ajudados pelos mentores a desenvolver um percurso – pode ser um projecto que visa atingir um dado objectivo final, pode ser apenas a exploração de uma dada área. Que áreas aparecem nas preferências dos alunos? Pode ser desenho de animação, pode ser música, motas, maquilhagem ou chinês. Claro que, para aprofundar qualquer destas áreas é necessário adquirir competências de numeracia, literacia, relacionais, é preciso estudar e discutir, escrever e fazer projectos. Os mentores ajudam o “investigador” a fazer a sua investigação e tentam encontrar quem o possa ajudar nesse percurso. Ah! E os alunos podem entrar a qualquer momento do ano. Não há um ano lectivo.

“Os mentores têm de ser pessoas um pouco especiais”, explica-nos Jean Johnson, numa conversa telefónica. “Temos imensas candidaturas. Tenho sempre o mail cheio de candidatos de todo o mundo – e os nossos mentores são de facto de todo o mundo, do Reino Unido à Nova Zelândia e à China – mas há um processo de selecção bastante exigente. Em princípio preferimos pessoas com bastante experiência de ensino e em particular com experiência a lidar com miúdos difíceis, mas além disso é fundamental que sejam pessoas com experiência de vida, que tenham tido muitas e boas experiências. Isso é que é fundamental e isso é o mais difícil”.

Jean Johnson sabe por experiência como isso é importante para um professor. Nascida por acidente na Escócia (foi com uma semana para Inglaterra) devido às constantes deslocações do pai, profissional de aviação, passou a infância e a adolescência de cidade em cidade (“era difícil fazer amizades”) e quando acabou a faculdade (“Estudei sociologia porque o meu pai queria que eu fizesse medicina”) experimentou diversos empregos (uma empresa de camionagem, uma cervejeira, uma companhia de navegação) antes de se decidir pelo ensino. A razão da escolha? “Queria viajar e o ensino parecia-me uma boa escolha. Fiz uma pós-graduação em educação, estudei ensino do inglês como língua estrangeira e pensei que com isto ia poder viajar por todo o mundo, como eu queria”. Mas a sua experiência de vinte e cinco anos de ensino seguiu outro caminho.

Johnson começou a envolver-se na utilização das tecnologias de informação e comunicação (TIC) na escola, tendo participado em inúmeros projectos pioneiros na utilização da Web para a educação, tanto no Reino Unido como a nível internacional (Web for Schools, The Virtual Classroom, Learning in the New Millennium, Schools Online). “Tivemos resultados fantásticos em praticamente tudo o que fizemos e era muito fácil ensinar os alunos a passar exames – que é, no fundo, aquilo para que o sistema educativo está virado. Nas aulas fazíamos o que era preciso para que os alunos passassem os exames e depois disso dedicávamo-nos às coisas interessantes – e havia imensas coisas que interessavam os jovens”. Jean Johnson conta com paixão uma sessão de videoconferência que fez com os seus alunos e um grupo de alunos americanos, noa anos 90. “Nunca pensei que resultasse tão bem. Foi uma experiência fantástica, os alunos entusiasmaram-se imenso, Discutimos o ensino da religião, o Thanksgiving, um dos miúdos americanos cantou uma canção… foi fantástico”.

As experiências pioneiras de utilização de TIC na escola levaram-na para a colaboração com a universidade e a participação em projectos de investigação nessa área e, quando a Universidade Politécnica de Anglia decidiu lançar um novo projecto, particularmente ambicioso, convidou-a para o dirigir.

“De início ainda não era a Notschool”, conta, “ou não era a Notschool como ele é hoje. Chamava-se Online Curriculum for Disaffected Teenagers [algo como Currículo Online para Jovens Rebeldes] e era basicamente um programa de distribuição de conteúdo online”. Só que Johnson já sabia algo que muita gente demorou muito tempo a aprender sobre a Internet: a solução tinha de passar pela criação de uma rede, de uma relação, uma comunidade. Não bastava disponibilizar conteúdo online para que os miúdos com problemas aderissem. “Havia gente maravilhosa envolvida, pessoas da BBC, investigadores da universidade, cientistas com cérebros do tamanho de um planeta, mas não era isso que ia fazer com que os miúdos aderissem.” Jean Johnson tentou durante um mês levar à prática o modelo que tinha sido desenhado, mas era inútil. E foi falar com os miúdos para tentar descobrir o que faltava. O que faltava era a comunidade, os amigos, a envolvência.

“Os miúdos vão à escola basicamente para falar aos amigos”, diz Johnson. “E vão lá porque se sentem seguros. O que era preciso era recriar online essa rede de amigos e garantir essa segurança. Aí podemos ter a coesão que existe na escola e podemos começar a fazer alguma coisa”. Foi assim que nasceu o Notschool, em 2000, que Johnson descreve sempre como “uma comunidade de pessoas que aprendem”.

Mas não se cria uma comunidade de um dia para o outro e as coisas não funcionaram bem logo de início. “É preciso escala. É como quando vamos a uma festa e há cinco pessoas. Temos vontade de ir embora, não nos sentimos à vontade. Se estiverem mais e se conhecermos alguns já ficamos. Online é a mesma coisa, é preciso atingir uma certa escala, precisamos de uma atenção personalizada e de diversidade, de pessoas diferentes”. Passados oito meses a Notschool tinha 98 pessoas e estava lançada. Desde aí não parou de crescer. Em 2004 transformou-se numa fundação e hoje consegue manter as contas equilibradas graças aos pagamentos do Estado – o Estado paga a todas as escolas um tanto por aluno e nisso a Notschool é igual às outras – e a alguns apoios de empresas.

Os jovens que estão na Notschool são aqueles para quem esta é a última oportunidade. “São miúdos que estão fora do sistema há muito tempo e que são incapazes de voltar, para quem a escola não é uma alternativa. São miúdos excluídos, fóbicos, violentos, vítimas de abusos, de violências sexuais, que estão no programa de protecção de testemunhas, doentes com fibrose cística ou com cancro”. Mais de 70 por cento foram vítimas de bullying, devido a problemas relacionais, dislexia, epilepsia, outras razões. Mas o Notschool não recebe todos os miúdos que têm problemas na escola. “Há pais que nos ligam porque o filho quer mudar de escola. As coisas não funcionam assim”, diz Johnson.

Um relatório britânico recente estimava em 100.000 o número de crianças e jovens que deviam estar inseridos no sistema de ensino – que, em teoria, estão a estudar – mas que de facto já o abandonaram.

Num documentário de promoção do projecto Jean Johnson explica que o objectivo da Notschool não é uma certificação. “O que nos guia são os estudantes, as suas necessidades. O que nós fazemos é pegar na aprendizagem que a criança fez e ver o que ela pode fazer com isso, onde é que pode chegar e a que é que corresponde no quadro actual de qualificações. E quando fazemos isso e elas seguem para o ensino superior constatamos que eles se transformaram em estudantes independentes e competentes nos campos que escolheram, que possuem competências em termos de numeracia e literacia e, frequentemente, são muito talentosos e criativos”.

O objectivo poderá não ser a certificação, mas mais de 50 por cento dos miúdos que saem da NotSchool obtêm algum tipo de acreditação e 70 por cento prosseguem para o ensino superior ou ensino tecnológico. O que prova algo que Jean Johnson gosta de dizer: "Penso que toda a gente quer aprender alguma coisa. O que precisamos de fazer é descobrir o quê”.

sexta-feira, maio 08, 2009

Página de Rosto - Pete Seeger, um banjo contra o ódio

por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 8 Maio 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 8



Pete Seeger, músico (Estados Unidos)

Pode parecer estúpido, mas penso que o mundo tem uma grande dívida para com Pete Seeger. A mesma dívida que tem para com tantos outros dos seus artistas, é verdade, mas uma dívida, mesmo assim. E que é do mundo em geral – ou pelo menos daquele onde chegou a sua música e o impacto do movimento pelos direitos cívicos nos Estados Unidos dos anos 60, o que quer dizer uma grande parte dele.

Falo da música de Pete Seeger e da luta pelos direitos cívicos na mesma frase porque não é possível separar uma da outra. É impossível imaginar as suas canções sem essa razão e esse sentimento, é impossível imaginar aquelas vagas de mobilização, de reivindicação, de solidariedade, de coragem, de emoção, de juventude, de amor da liberdade e de sonho de um mundo melhor sem os hinos de Pete Seeger. Porque muitas das suas canções são os hinos da liberdade que uma geração inteira aprendeu a cantar – na América e no mundo. E se a América ainda merece um lugar especial no coração de tanta gente, é antes de mais por causa de momentos como esses, onde a liberdade parecia estar a ser inventada de novo do outro lado do Atlântico e onde os males do mundo pareciam estar à beira de ser resolvidos.

Pete Seeger comemorou 90 anos no domingo passado, a 3 de Maio, e participou num concerto-festa no Madison Square Garden de Nova Iorque, onde cantou e tocou todos os seus velhos êxitos com um entusiasmo e um vigor que surpreenderam os que lhe tinham perdido o rasto nos últimos anos. A sua voz já não é aquele tranquilo tenor serpenteante e sedutor dos anos 60 e 70, mas o simples facto de ainda conseguir cantar, tocar o banjo e aguentar a pressão de um grande espectáculo não pode deixar de se considerar notável. No concerto participaram muitas dezenas de amigos, entre os quais os velhos Joan Baez e Arlo Guthrie e o apenas ligeiramente mais novo Bruce Springsteen – responsável, com o seu disco We Shall Overcome: The Seeger Sessions, de Abril 2006, por uma vaga de redescoberta da música de Seeger.

Entre os menos-de-50-anos é raro quem saiba quem seja Pete Seeger. O nome soa familiar, mas a maioria não se lembra porquê. Mas as canções, essas, toda a gente continua a reconhecê-las, ainda que, nalguns casos, a versão que vem à memória seja a de outros intérpretes (“Ah, não era a Marlene Dietrich que cantava esta?”. Também era. Marlene gravou We Shall Overcome em inglês, francês e alemão). E muitos outros cantaram Where have all the flowers gone, Amazing Grace, If I Had a Hammer, This Little Light of Mine…

We Shall Overcome, que Seeger celebrizou mas não compôs (a letra é de um gospel com cem anos, baseada numa velha canção de escravos, a música é de um hino religioso com raízes no século XVIII), tornou-se o verdadeiro hino dos direitos cívicos e foi cantado em milhares de protestos e desfiles, às vezes com alterações na letra, para a adaptar às circunstâncias. Os seguidores de Martin Luther King, durante as jornadas de luta contra a segregação – onde Seeger esteve sempre activamente, desde antes do primeiro momento – juntaram-lhe os versos “we will walk together, someday, black and white together, someday".

Muitas das canções de Seeger, como esta, possuem letras de uma simplicidade desarmante, que lhes dão uma força insuspeita. Imaginam o que deve ter sido estar nos degraus do Lincoln Memorial em Agosto de 1963, durante a Marcha de Washington, e ouvir We Shall Overcome cantado por duzentos mil manifestantes? Ou ouvir a canção, com o acrescento de um verso improvisado (“We are not afraid… We are not afraid, today”) cantado por um grupo de jovens manifestantes negros arrebanhados pela polícia e obrigados a deitar-se no chão? Hoje parece simples e inócuo mas houve pessoas que morreram, no nosso tempo, para que uma pessoa negra pudesse andar de mão dada com uma branca.

O significado do gospel é um pouco diferente quando é cantado numa manifestação contra o apartheid e os cenários das canções de Pete Seeger eram quase sempre dessa índole: protestos contra a segregação racial nas escolas e no trabalho, manifestações contra a brutalidade da polícia, reivindicação de igualdade perante a lei, salário mínimo, segurança no trabalho, direito à greve… De outras vezes concertos para recolha de fundos para apoiar greves, concertos de solidariedade por esta ou aquela causa.

A mensagem política adquiria uma força inimaginável à boleia destas letras espirituais (Seeger é crente), destas frases simples e incontestáveis, de uma verdade evidente, sempre sublinhando a força da razão, a não-violência, a liberdade e a igualdade. E imaginam um protesto de estudantes, brancos e negros, cantando em conjunto o clássico folk de Woody Guthrie (amigo e mestre de Pete Seeger) “This land is your land, this land is my land/This land was made for you and me”? Haverá melhor símbolo de empowerment?

A mensagem gravada no banjo de cinco cordas e braço extralongo, que se transformou na marca registada de Seeger, diz tudo: “This machine surrounds hate and forces it to surrender” (Esta máquina cerca o ódio e força-o a render-se). A frase é uma marca da influência de Guthrie, que tinha escrito na sua viola "This machine kills fascists” (Esta máquina mata fascistas). Seeger adoçou-o ao sabor da sua música e da sua vida.

Pete Seeger nasceu em Manhattan, numa família da classe média, filho de pais músicos (ele, musicólogo; ela, violinista), ambos professores na famosa Juilliard School de Nova Iorque. Os pais proporcionaram-lhe uma formação musical sólida mas relativamente livre e tentaram que Pete se dedicasse à música clássica, mas o género não o atraía especialmente. Aos dezasseis anos, num festival de música, ouviu o banjo de cinco cordas e ficou apaixonado pelo instrumento, que nunca mais deixou – apesar do seu gosto pela guitarra de doze cordas, outra preferida, e dos muitos outros instrumentos que toca episodicamente. O seu livro How to Play the Five-String Banjo, publicado em 1948, continua a ser considerado uma referência.

Seeger conseguiu uma bolsa para Harvard (onde foi colega de John Kennedy), decidido a estudar sociologia e a tornar-se jornalista, mas os estudos não o entusiasmaram e deixou a universidade para viajar pelos Estados Unidos, desenhando pelo caminho (uma paixão de sempre) e fazendo música. Foi nessa viagem pelo país que conheceu Woody Guthrie, com quem criou em 1940 os Almanac Singers, grupo de cantores-activistas itinerantes que apoiava com a sua música os movimentos sindicalistas. Durante a Segunda Guerra Mundial cantou para entretenimento das tropas e depois de sair do exército criou o People's Songs, Inc., uma associação de músicos dedicada a apoiar movimentos sindicais e preocupada com a recolha e reabilitação da música folk. Em 1948 fundaria outro grupo, os Weavers, que conheceria uma fama comercial considerável.

Em parte por influência do pai, comunista convicto, um entusiasta que acreditava que a música devia ser posta ao serviço do povo e da transformação social, Pete Seeger aderiu com 17 anos à Liga Comunista da Juventude e seis anos depois ao Partido Comunista dos EUA. Muito mais tarde, já nos anos 90, diria que começou a afastar-se do partido nos anos 50 (o pai saiu em 1938), ao tomar conhecimento das atrocidades cometidas por Estaline, mas a fama de “estalinista” manter-se-ia colada ao seu nome por muitos anos, alimentada frequentemente por conservadores que o criticavam por defender a liberdade nos EUA e a ditadura na URSS.

Forçado a testemunhar durante o McCarthyismo perante a Comissão de Actividades Anti-Americanas, em 1955, Pete Seeger recusou-se a responder às perguntas, a acusar fosse quem fosse e a invocar a Quinta Emenda – o que daria origem a uma condenação a um ano de prisão, que seria revogada e que nunca cumpriu.

“Gosto de dizer que sou mais conservador que Goldwater”, disse numa entrevista dada ao New York Times em 1995. “Ele só quer voltar ao tempo em que não havia imposto sobre o rendimento. Eu gostava de voltar ao tempo em que as pessoas viviam em aldeias e tomavam conta umas das outras”. Sobre Estaline, na mesma entrevista, lamenta “ter seguido a linha do partido como um carneiro” e “não ter percebido que Estaline era um dirigente supremamente cruel”. Em 2007, escreveria uma canção condenando explicitamente o líder soviético, Big Joe Blues ("I'm singing about old Joe, cruel Joe”). Demasiado tarde, disseram alguns.

Se há um fio condutor na mensagem das músicas de Seeger, esse fio é a paz, a não-violência, o respeito pelos outros e pela natureza, a solidariedade entre todos os seres humanos, a recusa de todas as segregações e a defesa da justiça social, da dignidade humana. Além, claro, da fé no poder da música como forma de unir as pessoas. Não há concerto de Seeger em que não diga às pessoas para cantarem consigo. Seeger não gosta de cantar sozinho.

Hoje, Pete Seeger é uma lenda viva e um repositório de algumas das mais nobres lutas políticas do último século nos Estados Unidos: os direitos dos trabalhadores e em particular o direito à greve, os direitos cívicos e em particular o fim da segregação racial – Seeger cantou This Land Is Your Land depois da tomada de posse de Obama –, a luta contra o McCarthyismo e pela liberdade de associação, a oposição à guerra do Vietname e a todas as formas de agressão internacional e a defesa do ambiente – que nos últimos anos se tornou a sua causa de eleição. Não é mau para 90 anos.

terça-feira, maio 05, 2009

Da utilidade de chamar nomes feios

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Maio de 2009
Crónica 14/2009


A tradição manda que se baptize uma doença com o nome da região onde foi descoberta ou com o nome do descobridor

Sempre houve pessoas a indignar-se com os nomes que se dão às coisas novas. E entre nós, em particular, a indignar-se quando esses nomes que se dão são estrangeiros. Lembro-me de quando se começou a falar de marketing em Portugal e de como havia pessoas que ficavam apoplécticas perante o barbarismo. Então não havia palavras portuguesíssimas que podiam ser utilizadas em substituição? Palavras como "comercialização" ou "publicidade" ou "vendas" ou lá o que era que aquilo era? E quando alguém referia que o problema era que se tratava de um conceito novo, que nenhuma palavra existente em português traduzia em toda a sua riqueza, havia sempre alguém a sugerir que então inventássemos também uma expressão nova portuguesa para essa coisa nova, como "comercializarização" ou "técnicas de vendas Mendes".

Aí era preciso explicar (com tacto) que aquela coisa que eles chamavam "marketing" não tinha sido inventada em Portugal nem tinha sido inventada pelo Mendes, mas sim por uns senhores na América que lhe tinham chamado como muito bem tinham querido e que... eles estavam no seu direito.

A contestação lusitana continuou nos anos seguintes a ser alimentada por vagas de palavras inglesas na música, na cultura popular, na tecnologia e na gestão e conheceu vários clímaxes, tendo um dos mais vivos sido causado pelo software e ao hardware, só recentemente digeridos através de naturalização.

De cada vez que isso acontecia era preciso explicar que, se os portugueses queriam dar nomes portugueses às coisas, o melhor era começar a inventá-las ou pelo menos a disseminá-las no mundo, pois essa era a regra do jogo. E a melhor prova era o facto de os italianos terem espalhado pelo planeta os seus adagios e staccati além dos seus tutti-frutti, os franceses as suas cartes blanches, os seus pliés relevés e os seus soufflés, os alemães o seu Gestalt e a sua Angst, os suecos o seu (inglesado) ombudsman e os portugueses terem deixado na língua inglesa o cuspidor em 1735 (o inglesíssimo spittoon só aparece em 1823, certamente num arroubo de nacionalismo, inverso ao que, em Portugal, faria Rafael Bordalo Pinheiro colocar John Bull no fundo dos mesmos escarradores e penicos por alturas do Ultimato).

Mas a questão é que o baptismo de uma coisa nova é um direito do seu criador ou descobridor - e um direito que serve de assunção da responsabilidade, para o bem e para o mal, o que significa que também podemos falar aqui de um dever.

A gripe que assusta o mundo começou por se chamar "suína" mas a designação - imprópria a partir do momento em que ela se torna humana - seria sempre abandonada por pressão dos criadores de porcos, preocupados (com toneladas de razão) com a sua imagem. A tradição manda que se baptize a gripe (ou outras novas doenças) com o nome da região onde primeiro foram descobertas ou com o nome do seu descobridor ou investigador. No segundo caso (Alzheimer) trata-se de uma honra, ainda que algo dúbia. No segundo, de uma distinção odiada (alguém quer dar um mergulho no rio Ebola?). Não tendo grande sentido falar de descoberta de um novo subtipo de um vírus da gripe, seguiu-se a regra geográfica e chamou-se-lhe "gripe mexicana". Mas os mexicanos não gostaram, conseguiram reunir suficientes vozes politicamente correctas e finalmente a OMS propôs a designação A H1N1 - depois de se ter brevemente considerado a "gripe norte-americana". A questão é que a designação geográfica, com o seu labéu, serve uma finalidade: como ninguém quer ter uma doença horrível baptizada com o nome do seu país, pode ser que isso constitua um incentivo para a prevenção. É que existem medidas de prevenção, nomeadamente no que diz respeito às explorações pecuárias (porcos e aves) - ainda que não sejam cem por cento eficazes para prevenir uma epidemia. Ou será que a responsabilidade dos países e das instituições só é importante quando se trata de colher louros? Jornalista (jvm@publico.pt)

sexta-feira, maio 01, 2009

Página de Rosto - Thich Quang Do, 80 anos pela paz


por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 1 Maio 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 14


Thich Quang Do, monge budista (Vietname)

O rosto, emoldurado por uma rala barba branca, não permite quaisquer dúvidas: é um monge budista. Um rosto tão característico que não pode deixar de evocar as composições que o cinema nos costuma oferecer. Lembram-se do mestre de Caine, no mosteiro Shaolin, na série de televisão Kung Fu dos anos 70? Thich Quang Do podia ter feito o papel na perfeição, apesar de ser vietnamita e não chinês.

Só que, por trás da tranquilidade deste olhar que exala uma calma confiança, da dignidade da pose, da determinação que ela denuncia, os olhos pequenos brincam e fecham-se frequentemente, ao mesmo tempo que a boca se rasga num sorriso. Às vezes quando fala de coisas terríveis, das suas inúmeras prisões, da falta de democracia no seu país. Um sorriso que vem da sua inabalável certeza de que tudo isso passará e que, um dia, os vietnamitas poderão viver em liberdade e em segurança, poderão escolher os seus líderes políticos e dizer o que pensam sem receio de represálias.

Thich Quang Do tem hoje 80 anos e viveu mais de trinta sob prisão – nas piores enxovias ou em prisão domiciliária – e conheceu a repressão durante toda a vida. Repressão oriunda de diferentes regimes, de direita e de esquerda, primeiro no Vietname do Norte, onde nasceu; depois no Vietname do Sul, para onde fugiu em 1954; e depois de 1975 no Vietname unificado, sob regime comunista. A razão? A exigência de democracia, de pluralismo político, de liberdade religiosa, de liberdade de expressão, de respeito pelos direitos humanos, uma constante actividade em prol dos mais pobres, uma infatigável denúncia pública – em reuniões, artigos, manifestos, petições – dos atropelos aos direitos humanos, dos abusos da polícia, da tortura, das prisões arbitrárias, da miséria. Sempre no respeito dos mandamentos budistas, respondendo à violência com protestos pacíficos, tentando mostrar aos seus carrascos os seus erros, com a desarmante convicção e a infinita paciência dos homens abençoados pela verdadeira fé.

Do nasceu em 27 de Novembro de 1928 e tornou-se monge aos 14 anos mas, segundo o próprio conta num relato autobiográfico, a sua vida só começou às 10 da manhã do dia 19 de Agosto de 1945, quando o poder colonial francês foi derrubado pelas forças revolucionárias comunistas no Vietname do Norte. Foi nesse dia que aprendeu como a violência mais brutal se pode abater sem sentido sobre os mais inocentes e como os homens são capazes dos mais terríveis requintes de crueldade.

“Eu tinha só 17 anos”, conta Do. “Nesse dia, vi o meu mestre, o muito venerável Thich Duc Hai, superior do pagode Linh Quang, ser executado pelas forças comunistas. Amarraram-lhe as mãos atrás das costas com arame farpado e penduraram-lhe ao pescoço dois cartazes: num deles, sobre o peito, estava escrito ’Traidor vende-pátrias’. No outro, sobre as costas, ‘Colaboracionista’. Ele estava no meio de uma multidão armada com paus e lanças, foices e ancinhos. Outro grupo de homens, que se intitulavam ‘juízes’ do tribunal popular, estava numa plataforma e conduzia o julgamento. Ordenaram ao meu mestre que se ajoelhasse e que baixasse a cabeça enquanto eram lidas as acusações contra ele. Ele recusou-se a obedecer. Um dos ‘juízes’ desceu da plataforma, postou-se à sua frente e disse-lhe ‘Tu és um traidor e não tens o direito de ser teimoso’. Começou a bater-lhe na cara até que a sua boca ficou cheia de sangue. O sangue pingava no cartaz que lhe cobria o peito. Condenaram o meu mestre à morte. Levaram-no para o campo frente à casa da aldeia. O sangue pingava sobre a sua roupa e no chão. Obrigaram-no a deitar-se e um dos homens deu-lhe três tiros na cabeça. Saiu um jorro de sangue e o meu mestre morreu. O sangue cobria a sua cara, a sua roupa, as suas pernas, a terra onde ele estava deitado, os cartazes que lhe penduraram ao pescoço. A imagem do meu mestre caído numa poça de sangue, imóvel, com as mãos atadas atrás das costas, ficou gravada para sempre na minha memória. Ainda a recordo como se fosse ontem”.

O crime de Thich Duc, oficialmente causado de ser um agente japonês, foi ter montado uma operação de auxílio para distribuir alimentos aos camponeses que estavam a ser vitimados por uma terrível fome.

“Quantos mais inocentes não terão sido mortos em nome da revolução durante estas sanguinárias campanhas de luta?” pergunta Do.

“Foi nesse dia que tomei a decisão que iria determinar o curso da minha vida. Nunca iria aceitar a violência, a crueldade, o ódio, a discriminação, por muito nobres que parecessem ser as causas que defendessem tudo isso. Naquele dia e naquele sítio, jurei que iria fazer tudo o que pudesse para combater o fanatismo e a intolerância e que iria dedicar a minha vida ao combate pela justiça, seguindo os ensinamentos budistas da não-violência, da tolerância, da compaixão. Nunca lamentei esta decisão. Mas não fazia ideia que este simples voto me iria levar ao longo de um caminho marcado pela prisão, pela tortura e pelo exílio durante tantos anos. Estive preso por vários regimes políticos e depressa aprendi que todos os tiranos receiam a verdade e que temos de estar dispostos a pagar o preço – por vezes um preço elevado – para defender as ideias e os valores nos quais acreditamos”.

As memórias de Do estão recheadas de histórias de horror como a execução do seu mestre. Um ano depois, em 1946 um irmão religioso do seu mestre foi também preso e morreu na prisão. Um mentor do seu mestre suicidou-se para não ser preso e torturado.

Em 1963, ainda durante o brutal regime do presidente Ngo Dinh Diem, no Vietname do Sul, Thich Quang Do foi preso na sequência de protestos organizados contra a morte de manifestantes budistas que agitavam bandeiras comemorativas para celebrar o nascimento de Buda, em Maio desse ano. O exército de Diem – que era um católico fanático, cujos antepassados tinham sido educados por missionários portuigueses, e que seria assassinado num golpe nesse mesmo ano – disparou sobre a multidão, causando muitos mortos e feridos.

Foi poucos dias depois, em 11 de Junho de 1963, que o monge Thich Quang Duc se imolou pelo fogo, numa rua de Saigão, em protesto contra a perseguição de que os budistas eram alvo. As fotografias do sacrifício, do jornalista americano Malcolm Browne – que ganharam o prémio World Press desse ano –, chamaram a atenção do mundo, mas a perseguição continuou.

Thich Quang Do foi preso e barbaramente torturado. “Lembro-me de ter de gatinhar quando saía da cela para ser interrogado, porque não me conseguia pôr de pé”. Mesmo assim, entre sessões de tortura, traduzia para vietnamita artigos de jornais estrangeiros em inglês que lhe eram trazidos clandestinamente, para manter informados os dissidentes da atenção que a sua luta merecia a nível internacional. O inglês tinha-o aprendido durante a sua formação universitária, feita em parte na Índia e no Sri Lanka.

Durante a guerra do Vietname, a Igreja Budista Unificada do Vietname (UBCV, na sigla inglesa), de que Do era um dos dirigentes, manifestou-se activamente contra as hostilidades.

Depois do fim da guerra e da unificação, o seu ciclo de prisões recomeçou, deste vez sob o regime comunista. Em 1977 foi preso em conjunto com outros dirigentes budistas, na sequência de um manifesto em defesa da liberdade religiosa e da sua igreja. ”Mantiveram-me fechado durante vinte meses numa cela de isolamento, com 90 centímetros de largura e 1,9 metros de comprimento. Havia um postigo com o tamanho da minha mão, que abriam só para me passar a comida. Para além disso, estava sempre fechada e era difícil suportar o ar abafado”.

Foi torturado de novo e tentaram obrigá-lo a confessar que trabalhava para a CIA. Quando foi levado a tribunal tudo o que puderam fazer foi acusá-lo de perturbar a ordem pública. Foi libertado, mas os trinta anos seguintes foram de prisão quase permanente, até à actualidade. Mesmo quando as autoridades lhe garantiam que estava livre, polícias colocados em torno do mosteiro Thanh Minh Zen, em Saigão, onde ainda vive, impediam-lhe a saída. Ou a entrada de visitantes que o queriam ver, como aconteceu com o deputado europeu Olivier Dupuis, que o tentou visitar em 2001, na sequência de uma das suas muitas prisões arbitrárias, sem julgamento, e que foi impedido de o fazer. De 1982 a 1992 foi condenado ao exílio interno, numa região particularmente fria e húmida, em condições horríveis, e a sua mãe, de 84 anos, foi condenada a acompanhá-lo. A mãe morreria em 1985, de frio e de fome. Pouco depois de regressar do exílio publicou um manifesto pela liberdade religiosa e condenando a perseguição da UBCV, que o levou de novo à cadeia.

Muitas dessas prisões têm como argumento a simples existência da sua igreja – que Hanói não reconhece, pois criou uma igreja budista oficial, a Igreja Budista do Vietname (VBC), dirigida por uma estrutura controlada pelo Estado, à qual tenta obrigar todos os monges a aderir. Outras devem-se a protestos em prol da democracia.

Thich Quang Do já foi nomeado várias vezes para o Nobel da Paz. Este ano havia quem jurasse que o Nobel iria para um dos dissidentes chineses (Hu Jia e a sua mulher Zeng Jinyan, ou Wei Jingsheng) ou para Do – mas todas estas hipóteses provocariam o desagrado da China, amiga do regime de Hanói.

Num vídeo gravado clandestinamente em 2007, disponível no YouTube, Do aparece a falar, no seu mosteiro. “No Vietname de hoje não somos livres”, diz. “Somos prisioneiros no nosso próprio país. Prisioneiros de um regime que decide quem tem o direito de falar e quem é obrigado a calar-se. No momento em vos falo, encontro-me em prisão domiciliária no mosteiro Thanh Minh Zen, em Saigão. A polícia secreta vigia-me dia e noite e estou proibido de viajar. Tenho sido vítima da repressão do regime comunista desde 1975. Não tenho receio de nada por mim, porque sei que estou a lutar pela causa justa, pela verdade. Não temos partidos de oposição, não temos liberdade de imprensa, não temos sindicatos livres, não temos sociedade civil. Todas as religiões independentes foram proibidas. Todos os cidadãos que reclamam reformas políticas, democracia e o respeito dos direitos humanos são imediatamente presos. Devemos ter pluralismo, o direito de realizar eleições livres, de escolher o sistema político que queremos, de gozar as liberdades democráticas, em suma, o direito a moldar o nosso próprio futuro, de moldar o destino da nossa nação. Há 32 anos que nos dirigimos aos outros países. O que esperamos é que vocês, estrangeiros, ouçam o nosso apelo.”