sexta-feira, maio 15, 2009

Página de Rosto - Jean Johnson: Isto não é uma escola!

por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 15 Maio 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 13


Jean Johnson, professora (Reino Unido)


Jean Johnson não hesita quando lhe pergunto se gostava da escola quando era miúda. “Odiava”, atira no seu tom definitivo. “Odiava a escola. Porquê? Por tanta coisa... Por tudo. Eu era esperta mas não encaixava, não tinha um grupo, não andava com a malta... Os meus colegas chamavam-me nomes… A única maneira que encontrei de enfrentar a coisa foi baixar a cabeça e mergulhar no estudo. O que não foi a maneira mais agradável de atravessar aquele período.”

Hoje, Jean Johnson, 57 anos, com um longo currículo de professora atrás de si, dirige aquele que é, segundo muitos especialistas, um dos mais inovadores e bem sucedidos programas de educação para alunos inadaptados, o Notschool, no Reino Unido. E a sua experiência de aluna inadaptada – que não a impediu de se transformar numa profissional particularmente bem sucedida e com uma reputação planetária – ajuda-a a compreender os problemas que enfrentam os 800 alunos que o programa tem neste momento. O nome de Notschool diz tudo, mas vale a pena explicar. Notschool não é uma escola. E se alguém não gosta da escola… tem boas razões para gostar de Notschool.

Notschool não tem mesmo nada a ver com a escola. A escola tem um edifício? Notschool não tem. Ou melhor: tem instalações no Essex, uns 50 quilómetros ao norte de Londres, que é onde trabalha o escasso staff de uma dezena de pessoas, mas os alunos não têm de lá ir. Os alunos estão em sua casa e trabalham através do computador. A escola tem aulas? Notschool não tem. A escola tem horário? Notschool não tem. Há alunos que passam o dia a fazer o que lhes apetece e só se ligam à noite. E há muitos que se ligam de manhã e à noite e aos fins-de-semana, principalmente nos períodos de maior actividade. A escola tem de seguir um currículo nacional, igual para todos os alunos? Notschool não tem um currículo definido. Nem disciplinas. Nem assuntos obrigatórios. E cada aluno faz o que lhe apetece. Literalmente.

Aliás, em rigor Notschool nem tem “alunos” nem “professores” – mas isso é apenas um truque para sublinhar como a cultura desta não-escola é diferente da cultura das escolas comuns. E para evitar que os nomes habituais sugiram coisas tristes aos utilizadores. Os estudantes aqui têm entre 13 e dezasseis anos e são chamados “investigadores” (“researchers”) e aqueles que noutras escolas são professores aqui são “mentores”. E depois há “peritos” e “amigos” (“experts” e “buddies”), em geral estudantes universitários que dão apoio aos alunos no que for preciso. Além de especialistas que trabalham em instituições como o Science Museum de Londres ou o World Wildlife Fund ou a BBC, que ajudam nas suas áreas de especialidade.

Como funciona um “ano lectivo”? Quando entram no programa os alunos recebem um computador, acesso de banda larga à Internet, uma máquina fotográfica digital, um scanner e ouros equipamentos digitais e recebem a necessária formação técnica para trabalhar com tudo aquilo. Depois, escolhem assuntos que lhes interessam e são ajudados pelos mentores a desenvolver um percurso – pode ser um projecto que visa atingir um dado objectivo final, pode ser apenas a exploração de uma dada área. Que áreas aparecem nas preferências dos alunos? Pode ser desenho de animação, pode ser música, motas, maquilhagem ou chinês. Claro que, para aprofundar qualquer destas áreas é necessário adquirir competências de numeracia, literacia, relacionais, é preciso estudar e discutir, escrever e fazer projectos. Os mentores ajudam o “investigador” a fazer a sua investigação e tentam encontrar quem o possa ajudar nesse percurso. Ah! E os alunos podem entrar a qualquer momento do ano. Não há um ano lectivo.

“Os mentores têm de ser pessoas um pouco especiais”, explica-nos Jean Johnson, numa conversa telefónica. “Temos imensas candidaturas. Tenho sempre o mail cheio de candidatos de todo o mundo – e os nossos mentores são de facto de todo o mundo, do Reino Unido à Nova Zelândia e à China – mas há um processo de selecção bastante exigente. Em princípio preferimos pessoas com bastante experiência de ensino e em particular com experiência a lidar com miúdos difíceis, mas além disso é fundamental que sejam pessoas com experiência de vida, que tenham tido muitas e boas experiências. Isso é que é fundamental e isso é o mais difícil”.

Jean Johnson sabe por experiência como isso é importante para um professor. Nascida por acidente na Escócia (foi com uma semana para Inglaterra) devido às constantes deslocações do pai, profissional de aviação, passou a infância e a adolescência de cidade em cidade (“era difícil fazer amizades”) e quando acabou a faculdade (“Estudei sociologia porque o meu pai queria que eu fizesse medicina”) experimentou diversos empregos (uma empresa de camionagem, uma cervejeira, uma companhia de navegação) antes de se decidir pelo ensino. A razão da escolha? “Queria viajar e o ensino parecia-me uma boa escolha. Fiz uma pós-graduação em educação, estudei ensino do inglês como língua estrangeira e pensei que com isto ia poder viajar por todo o mundo, como eu queria”. Mas a sua experiência de vinte e cinco anos de ensino seguiu outro caminho.

Johnson começou a envolver-se na utilização das tecnologias de informação e comunicação (TIC) na escola, tendo participado em inúmeros projectos pioneiros na utilização da Web para a educação, tanto no Reino Unido como a nível internacional (Web for Schools, The Virtual Classroom, Learning in the New Millennium, Schools Online). “Tivemos resultados fantásticos em praticamente tudo o que fizemos e era muito fácil ensinar os alunos a passar exames – que é, no fundo, aquilo para que o sistema educativo está virado. Nas aulas fazíamos o que era preciso para que os alunos passassem os exames e depois disso dedicávamo-nos às coisas interessantes – e havia imensas coisas que interessavam os jovens”. Jean Johnson conta com paixão uma sessão de videoconferência que fez com os seus alunos e um grupo de alunos americanos, noa anos 90. “Nunca pensei que resultasse tão bem. Foi uma experiência fantástica, os alunos entusiasmaram-se imenso, Discutimos o ensino da religião, o Thanksgiving, um dos miúdos americanos cantou uma canção… foi fantástico”.

As experiências pioneiras de utilização de TIC na escola levaram-na para a colaboração com a universidade e a participação em projectos de investigação nessa área e, quando a Universidade Politécnica de Anglia decidiu lançar um novo projecto, particularmente ambicioso, convidou-a para o dirigir.

“De início ainda não era a Notschool”, conta, “ou não era a Notschool como ele é hoje. Chamava-se Online Curriculum for Disaffected Teenagers [algo como Currículo Online para Jovens Rebeldes] e era basicamente um programa de distribuição de conteúdo online”. Só que Johnson já sabia algo que muita gente demorou muito tempo a aprender sobre a Internet: a solução tinha de passar pela criação de uma rede, de uma relação, uma comunidade. Não bastava disponibilizar conteúdo online para que os miúdos com problemas aderissem. “Havia gente maravilhosa envolvida, pessoas da BBC, investigadores da universidade, cientistas com cérebros do tamanho de um planeta, mas não era isso que ia fazer com que os miúdos aderissem.” Jean Johnson tentou durante um mês levar à prática o modelo que tinha sido desenhado, mas era inútil. E foi falar com os miúdos para tentar descobrir o que faltava. O que faltava era a comunidade, os amigos, a envolvência.

“Os miúdos vão à escola basicamente para falar aos amigos”, diz Johnson. “E vão lá porque se sentem seguros. O que era preciso era recriar online essa rede de amigos e garantir essa segurança. Aí podemos ter a coesão que existe na escola e podemos começar a fazer alguma coisa”. Foi assim que nasceu o Notschool, em 2000, que Johnson descreve sempre como “uma comunidade de pessoas que aprendem”.

Mas não se cria uma comunidade de um dia para o outro e as coisas não funcionaram bem logo de início. “É preciso escala. É como quando vamos a uma festa e há cinco pessoas. Temos vontade de ir embora, não nos sentimos à vontade. Se estiverem mais e se conhecermos alguns já ficamos. Online é a mesma coisa, é preciso atingir uma certa escala, precisamos de uma atenção personalizada e de diversidade, de pessoas diferentes”. Passados oito meses a Notschool tinha 98 pessoas e estava lançada. Desde aí não parou de crescer. Em 2004 transformou-se numa fundação e hoje consegue manter as contas equilibradas graças aos pagamentos do Estado – o Estado paga a todas as escolas um tanto por aluno e nisso a Notschool é igual às outras – e a alguns apoios de empresas.

Os jovens que estão na Notschool são aqueles para quem esta é a última oportunidade. “São miúdos que estão fora do sistema há muito tempo e que são incapazes de voltar, para quem a escola não é uma alternativa. São miúdos excluídos, fóbicos, violentos, vítimas de abusos, de violências sexuais, que estão no programa de protecção de testemunhas, doentes com fibrose cística ou com cancro”. Mais de 70 por cento foram vítimas de bullying, devido a problemas relacionais, dislexia, epilepsia, outras razões. Mas o Notschool não recebe todos os miúdos que têm problemas na escola. “Há pais que nos ligam porque o filho quer mudar de escola. As coisas não funcionam assim”, diz Johnson.

Um relatório britânico recente estimava em 100.000 o número de crianças e jovens que deviam estar inseridos no sistema de ensino – que, em teoria, estão a estudar – mas que de facto já o abandonaram.

Num documentário de promoção do projecto Jean Johnson explica que o objectivo da Notschool não é uma certificação. “O que nos guia são os estudantes, as suas necessidades. O que nós fazemos é pegar na aprendizagem que a criança fez e ver o que ela pode fazer com isso, onde é que pode chegar e a que é que corresponde no quadro actual de qualificações. E quando fazemos isso e elas seguem para o ensino superior constatamos que eles se transformaram em estudantes independentes e competentes nos campos que escolheram, que possuem competências em termos de numeracia e literacia e, frequentemente, são muito talentosos e criativos”.

O objectivo poderá não ser a certificação, mas mais de 50 por cento dos miúdos que saem da NotSchool obtêm algum tipo de acreditação e 70 por cento prosseguem para o ensino superior ou ensino tecnológico. O que prova algo que Jean Johnson gosta de dizer: "Penso que toda a gente quer aprender alguma coisa. O que precisamos de fazer é descobrir o quê”.

1 comentário:

José Vítor Malheiros disse...

“Um relatório britânico recente estimava em 100.000 o número de crianças e jovens que deviam estar inseridos no sistema de ensino – que, em teoria, estão a estudar – mas que de facto já o abandonaram.” Do artigo.
Um manancial de criatividade, de inteligência e de trabalho perdido e frequentemente uma condenação à marginalidade.
Todos os anos, no Reino Unido, em Portugal, em todos os países do mundo, há milhares e milhares de crianças e adolescentes, inseridos no sistema formal de educação, que o abandonam. Alguns abandonam-no de forma visível, alimentando estatísticas de abandono. Outras fazem-no de forma silenciosa, porque se sentem eles abandonados pela escola, pelas mais diversas razões, e vão aparecendo esporadicamente na escola, mantendo-se oficialmente no sistema, repetindo anos lectivos ou passando administrativamente até que atingem a idade limite e podem enfim sair de um mundo que não lhe deu nada.