terça-feira, fevereiro 24, 2015

Dignidade, aquele conceito que o Governo não entende

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Fevereiro de 2015
Crónica 7/2015


A acção da troika foi tecnicamente errada, politicamente contraproducente e moralmente inaceitável.
1. “Pecámos contra a dignidade dos povos, nomeadamente na Grécia e em Portugal e muitas vezes na Irlanda”. As declarações do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, proferidas a propósito da actuação da troika, perante os representantes dos Estados-membros e transmitidas pelos órgãos de comunicação social, constituem um mea culpa formal e em termos raramente ouvidos da boca de um político.

Juncker considerou que a troika era um órgão sem legitimidade democrática e que a Comissão Europeia agiu de forma errada ao dar-lhe carta branca para impor políticas de austeridade aos Estados-membros e ao “confiar cegamente” nela. Juncker considerou que, no domínio da assistência financeira aos estados, “tudo deve ser revisto” e admitiu mesmo que parecia “estúpido” ao dizer isto agora, ele que foi presidente do Eurogrupo, mas que é necessário “aprender com as lições do passado e não repetir os mesmos erros”. Mas Juncker não disse apenas que a troika foi ineficaz. Ao usar a expressão que usou, o presidente da Comissão introduziu um julgamento moral que não pode deixar de ser pesado. Para Juncker, a acção da troika não foi apenas tecnicamente errada. Ela foi também politicamente contraproducente e moralmente inaceitável.

É impossível não concordar com o político luxemburguês quando diz que faz figura de parvo ao admitir agora isto, enquanto se calou antes, mas é evidente que Juncker, que de estúpido terá pouco, o diz hoje porque o pode dizer sem grandes custos e não o podia dizer antes sem arriscar a cabeça.

O que faz com que Juncker tenha ganho este espaço de manobra não é apenas o facto de ser hoje presidente da Comissão Europeia, mas o facto de a posição do novo Governo grego ter obrigado as instituições europeias, os governos europeus, as instituições financeiras, os analistas, os media e a opinião pública a uma reavaliação do papel e da legitimidade da troika que dificilmente poderia ter outro resultado.

Se não houvesse outra, esta seria já uma boa razão para nos congratularmos com a eleição do Syriza na Grécia.

2. As declarações de Juncker são raras num político, mas não são a história toda. E a história toda poderia fazer deste episódio um case study nos cursos de relações internacionais, se Passos Coelho e o seu Governo tivessem relevância política ou intelectual para ficarem na história.

A história completa-se com a reacção do Governo português às declarações de Juncker, pela boca de Marques Guedes, ministro da Presidência do Conselho de Ministros e dos Assuntos Parlamentares, que considerou as declarações do presidente da Comissão Europeia “infelizes” e garantiu que a dignidade de Portugal “nunca foi beliscada” pela troika.

Como se pode entender que, por um lado, a Comissão Europeia diga que ofendeu a dignidade dos portugueses, que se penitencie pelo facto e que afirme que isso não pode voltar a acontecer, e que, por outro lado, o Governo português responda que não senhor, que a dignidade dos portugueses não foi ofendida, que não há razão para penitências nem para falar de indignidade?

A explicação é chocante, mas simples: acontece que Jean-Claude Juncker é mais exigente na defesa da dignidade dos portugueses do que o Governo português.

Para Paulo Portas (que instituiu oficialmente o regime de “protectorado” de Portugal sob a tutela das potências europeias sem o mínimo sobressalto patriótico, como se se tratasse apenas de um contratempo menor) e para Pedro Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque, para quem servir os credores de Portugal é a mais alta das honrarias, é difícil imaginar o que seria ofender a dignidade dos portugueses, porque o conceito de dignidade do povo português é algo extremamente vago, que se encontra subalternizado em relação à vassalagem devida aos mais fortes e à admiração devida aos mais ricos.

Outra razão por que o Governo português e o seu ministro porta-voz receberam mal a afirmação de Juncker é porque ele fechou, de facto, a porta à troika e disse que esta indignidade não pode voltar a acontecer, mas, caso se apresentasse outra oportunidade, o Governo em bloco gostaria de obedecer de novo às ordens da troika, mesmo sendo ela arrogante, antidemocrática e ineficaz, porque sabe que isso agrada aos seus maiorais.

3. Quando o Governo grego disse que não negociaria com a troika e acabou por aceitar negociar com — além do Eurogrupo — a Comissão Europeia, o FMI e o Banco Central Europeu, houve quem tivesse falado de uma mera “questão de semântica”, já que estas três instituições eram, de facto, a troika. Mas há uma diferença política fundamental. Há um mundo de diferença entre ter ministros a negociar com Christine Lagarde, Mario Draghi e Juncker ou ter os mesmos ministros a obedecer a três burocratas com imenso poder, imensa arrogância, nenhuma legitimidade e nenhuma flexibilidade. Para perceber como isto é diferente, basta ver as diferenças entre o discurso dos dirigentes do FMI e a posição do funcionário do FMI na troika durante o “programa” português. A Grécia conseguiu arredar a troika do panorama e, também por isso, a vitória do Syriza é importante para a Europa.

jvmalheiros@gmail.com

Crónica no Público: http://www.publico.pt/politica/noticia/dignidade-aquele-conceito-que-o-governo-nao-entende-1687055

terça-feira, fevereiro 17, 2015

António Costa, o Benfica, o descaramento e que Deus nos guarde

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Fevereiro de 2015
Crónica 6/2015

O que Costa diz é que é aceitável não pagar impostos se se for rico, porque o Estado será benevolente.

Nos últimos anos, devido à crise financeira, económica, social e política (que o país não atravessa mas onde estagnou) e devido aos sacrifícios impostos aos portugueses pela austeridade do governo PSD-CDS, temos discutido muito a captura do aparelho de Estado por interesses particulares.

Temos falado do sequestro dos maiores partidos políticos pelos interesses financeiros mediados pelos grandes gabinetes de advogados que representam o verdadeiro Eixo da Governação, assim como dos privilégios de tratamento dado a diferentes organizações conforme a sua generosidade e a sua proximidade do poder - com Ricardo Salgado e o BES num lugar de destaque debaixo do baldaquim dourado dos favores públicos, ao lado dos destacados militantes do PSD que levaram o BPN à sua glória.

Com maior ou menor repugnância, habituámo-nos a ver os banqueiros, os advogados de negócios, os consultores fiscais e os construtores civis aconchegados ao seio generoso do Estado ao mesmo tempo que pregam os benefícios do empreendedorismo e a conveniência de passar para o seu bolso e o dos seus patrões os bens que ainda sobrem no erário público.

No entanto, temo-nos esquecido de uma importante categoria de privilegiados pelos favores do Estado que uma recente decisão do executivo camarário de António Costa em Lisboa veio trazer de novo à luz: os clubes de futebol.

Na semana passada, a Câmara de Lisboa aprovou (com os votos favoráveis do PS e os votos contra do PSD, CDS, PCP e de uma vereadora do movimento Cidadãos por Lisboa) a isenção do pagamento de taxas urbanísticas no valor de cerca de 1,8 milhões de euros relativas a obras a legalizar ou a realizar junto ao Estádio da Luz. De acordo com o pedido de “ampliação/regularização” do Estádio da Luz submetido pela empresa Benfica Estádio-Construção e Gestão de Estádios, S.A, 27.500 metros quadrados já foram construídos sem licença e o clube pretende “regularizar” a situação. E 10.700 metros quadrados são construção nova que o clube também agradece que sejam isentos de taxas. Diga-se que, na parte que se refere à regularização de obras já feitas, o único partido que votou contra foi o PCP tendo os restantes indignados votado a favor neste particular.

A decisão é uma vergonha e um escândalo que atropela os mais elementares critérios de equidade e de justiça e que não pode deixar de indignar profundamente todos os cidadãos que, com sacrifícios, cumprem as suas obrigações fiscais e que não vêem a sua rectidão premiada com perdões de multas e isenções de taxas. E, no actual contexto de austeridade e empobrecimento generalizado da população, a decisão é mais vergonhosa ainda. Não existe qualquer razão aceitável para oferecer 1,8 milhões de euros a um grande clube de futebol como o Benfica e há ainda menos justificação para premiar as violações já cometidas pelo clube.

A história é simples: a Câmara fechou os olhos porque se trata do Benfica. E as isenções foram concedidas porque se trata do Benfica. Estou a dizer que António Costa ou Manuel Salgado são benfiquistas? Não sei se são, nem tal coisa me interessa, nem é isso que está em causa. Os perdões e as isenções foram concedidas porque o Benfica é uma organização poderosa, influente, e a lei não é igual para todos. Há uma lei para um pequeno proprietário que faz uma obra ilegal e é obrigado a pagar multas e a demolir o que construiu e outra para uma grande empresa como o Benfica.

É esta a mensagem que António Costa e o seu vereador Manuel Salgado deixam clara com esta decisão. Que o presidente da Câmara de Lisboa seja actualmente também o secretário-geral do PS e candidato a primeiro-ministro só torna o caso mais sério e mais sórdido.

Mais sério porque este acto revela uma atitude (de desrespeito pela equidade da lei) e um critério (de privilégio dos poderosos) que, a ser posto em prática num futuro Governo PS, não promete nada melhor do que o actual Governo.

Mais sórdido porque a única razão para um tal benefício do Benfica é a boa vontade que se pretende conquistar entre os adeptos do clube. Se não é uma tentativa de compra de eleitores, parece.

O problema não é o benefício do Benfica em relação aos outros clubes, que têm conquistado por seu lado isenções, perdões e benesses múltiplas -- de que o centro de treinos do Futebol Clube do Porto, por exemplo, construído com dinheiros públicos em Gaia, é um exemplo particularmente escandaloso. E não é um problema porque o Sporting e todos os outros se irão mexer para conseguir o que o Benfica agora conseguiu.

O problema é em relação a todos os outros, a todos os que pagamos impostos. O que Costa diz é que é aceitável não pagar impostos se se for rico, porque o Estado será benevolente com estes prevaricadores. Qual será a posição de um eventual primeiro-ministro António Costa em relação a paraísos fiscais? À evasão fiscal? E o que fará António Costa em relação aos milhares de penhoras feitas e a fazer pela Autoridade Tributária a todos os honestos trabalhadores que queriam pagar mas não conseguiram pagar os seus impostos? Irá perdoar também estas dívidas como fez ao Benfica? Ou só aos que deverem mais de um milhão como Ricardo Salgado? Qual será o critério?

jvmalheiros@gmail.com

quinta-feira, fevereiro 12, 2015

Câmara de Lisboa perdoa 1,8 milhões de euros ao Benfica

Escandaloso. Mais uma vez, os clubes de futebol acima da lei. Mais benesses para os ricos e os prevaricadores. O desrespeito da lei compensa se for feito pelos poderosos.
Trata-se de um puro acto de corrupção, com a diferença em relação aos outros actos de corrupção de que este é feito às claras. O prejuízo para o erário público é enorme, o prejuízo para a imagem do Estado é enorme, o prejuízo para a moral pública é enorme, a vantagem para os envolvidos evidente. Com uma isenção de pagamento compra-se a simpatia (e, se tudo correr bem, os votos) dos benfiquistas. E lá terá de vir outra benesse para o Sporting, em nome da equidade e, já agora, para todos os outros clubes do país.
Aparentemente António Costa só critica o sequestro do Estado e o seu uso abusivo para benefício próprio quando se trata do PSD-CDS. Vergonha.


http://desporto.sapo.pt/futebol/primeira_liga/artigo/2015/02/12/c-mara-de-lisboa-perdoa-1-8-milh-es-de-euros-ao-benfica
http://www.publico.pt/local/noticia/isencao-de-taxas-ao-benfica-e-politicamente-incorrecta-mas-sensata-1686068
http://www.publico.pt/local/noticia/museu-piscinas-e-espacos-comerciais-do-benfica-estao-ilegais-1685855?page=-1

Cavaco ao serviço do interesse nacional... da Alemanha

Post publicado no Facebook

Já estamos habituados. Quando Cavaco Silva fala, envergonha-nos. Envergonha a imagem do país que representa, envergonha-nos a cada um de nós, ultraja a dignidade do Estado, degrada o estatuto presidencial, avilta a política.

Estamos habituados. Mas o facto de estarmos habituados não significa que as suas sandices não nos afectem e não nos escandalizem. Quer dizer apenas que não nos surpreendem.
Cavaco Silva pode estar mentalmente debilitado, mas enquanto não se demitir é o Presidente da República e está obrigado a respeitar um mínimo de decência.
Que um chefe de Estado se ponha despudoradamente ao serviço de um governo sem legitimidade política, repetindo a sua propaganda para fazer uma operação de lavagem ao cérebro dos portugueses, é triste e ilegítimo. Perverte o que devem ser as regras de funcionamento do Estado democrático e viola o estatuto de independência e equidistância que um Presidente da República deve respeitar. O Presidente da República não deveria ser um moço de recados do Governo.
Mas que um presidente se disponha a fazer o trabalho sujo do governo PSD-CDS apenas para que este possa melhor servir os interesses do directório europeu a que obedece e se possa assim dessolidarizar do grupo dos países devedores onde nos encontramos e, em particular, enfraquecer a posição negocial da Grécia, é algo inadmissível e impensável, porque a única posição que defende o nosso país no concerto europeu seria a posição diametralmente oposta.
As declarações de Cavaco, por isso, traem o interesse nacional.
Traem, além disso, e o que não é menos grave, o princípio de solidariedade entre nações sobre o qual foi construída a União Europeia, mas é possível que o conceito seja hoje demasiado abstracto para que Cavaco o consiga apreender.
As "informações" que Cavaco deu sobre os "milhões" que saíram dos bolsos dos portugueses para o bolso dos gregos são uma manipulação dos dados, mas a isso estamos também habituados. O que o PR pretende é criar entre os portugueses exactamente o mesmo sentimento de antagonismo e menosprezo a respeito dos gregos que a Alemanha e outros países tentaram criar a propósito dos portugueses. Seria difícil descer mais baixo.
Que Passos Coelho assuma o papel de lacaio da Alemanha na União Europeia é intolerável. Que o Presidente da República Portuguesa escolha para si o papel de lacaio do lacaio está para além das palavras.


VER: http://www.publico.pt/economia/noticia/cavaco-lembra-saida-de-muitos-milhoes-dos-portugueses-para-a-grecia-1685766

terça-feira, fevereiro 10, 2015

Alemanha brinca com o fogo na Grécia

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 10 de Fevereiro de 2015
Crónica 5/2015

Sempre que existe uma oportunidade para mostrar um lampejo de sentido patriótico, Passos Coelho exibe a sua natureza.


1. Pedro Passos Coelho nunca surpreende. Sempre que existe uma oportunidade para mostrar uma réstea de dignidade pessoal, alguma ténue preocupação com os cidadãos do seu país ou um lampejo de sentido patriótico, Passos Coelho exibe a sua natureza e faz a única coisa que sabe: obedece ao que julga serem os desejos do seu suserano.

Foi assim com a notícia da vitória do Syriza na Grécia, com o anúncio das primeiras posições do Governo grego e foi assim com a proposta grega de uma conferência internacional sobre a dívida. Tudo acontecimentos que qualquer Governo português, independentemente da sua cor política, deveria receber com algum agrado, porque reforçam a nossa posição negocial como devedores no seio da União Europeia, mas que Passos Coelho preferiu criticar ecoando os ditames da voz do dono. O Governo grego quer defender a dignidade e a vida dos gregos e Passos Coelho não suporta esse atrevimento. Passos Coelho nem percebe como é que Tsipras não considera uma honra servir os poderosos deste mundo e lamber a sola cardada das suas botas, deleitando-se na volúpia da submissão. Passos Coelho não é mais papista que o Papa: é apenas mais alemão do que Angela Merkel e mais obsceno do que Miguel de Vasconcelos.

2. Tsipras vai ter de voltar atrás, o Syriza vai recuar, Varoufakis tem de engolir uns sapos, a Grécia vai renegar as suas promessas, aquilo era um conto de crianças, a Alemanha vai-lhes partir as costas, as pernas, os braços, os dentes e Portugal vai ajudar com todo o gosto, a Espanha também e a Itália e a França vão ter medo de se meter ao barulho. Uma parte da imprensa nacional e internacional rejubila com a mais pequena intervenção onde um dirigente do Syriza fale sensatamente porque isso significa que estão “a recuar”.

Na realidade, a negociação ainda nem começou de facto e, como é habitual, deverá envolver múltiplos ajustamentos nas posições dos negociadores.

Muitas das vozes interessadas em enfraquecer a posição grega sublinham o facto de os gregos terem deixado de usar a expressão “perdão”, mas isso é irrelevante. A Grécia exige e precisa de renegociar a sua dívida, mas se isso é feito por corte do capital em dívida, por redução dos juros ou por alargamento dos prazos (que pode ser uma transformação de parte da dívida em dívida perpétua) é indiferente. Quanto a dívida perpétua, soubemos nos últimos tempos que a Inglaterra só agora vai pagar dívidas que contraiu no século XVIII e que a Alemanha só em 2010 pagou o que sobrava da sua dívida da I Guerra, havendo ainda hoje contas por acertar – nomeadamente com Portugal.

Em todos os casos, a renegociação da dívida grega, que terá de acontecer se não quisermos aceitar o pior, significará perdas para os credores. Mas a garantia de que irão receber é uma vantagem importante. E a manutenção de alguma concórdia na Europa também.

Como em todas as negociações, nesta é importante que nenhum dos negociadores perca a face e, por isso, é preciso dar algum desconto às declarações das várias partes. A Alemanha precisará de dizer que fez recuar a Grécia e que a obrigou a retirar a exigência de haircut. A Grécia precisa de dizer que conseguiu obrigar a UE a reescalonar pagamentos de acordo com as possibilidades da sua economia. Isto, se tudo correr bem. Mas o que é evidente para quem leia jornais é que há demasiada gente empenhada em que não corra bem e apostada em inquinar a discussão. Gente para quem é importante fazer da Grécia um exemplo para que mais nenhum governo de esquerda seja eleito na Europa, para que mais ninguém se atreva a contestar os credores ou a pôr em causa o poder da Alemanha. Por agora, Merkel tenta apagar um fogo na Ucrânia mas brinca com o fogo na Grécia.

3. Por agora, a posição da Alemanha é de total intransigência. Apesar de saber que a intransigência não permitirá que a Grécia pague a sua dívida mais cedo. Não faz sentido? Faz, se o objectivo for manter a Grécia numa eterna dependência. E, de caminho, todos os outros países devedores, como Portugal. Faz, se o objectivo for transformar a dívida numa renda eterna, de que os alemães irão beneficiar para sempre e que irá escravizar os gregos e os portugueses durante gerações. As invasões das novas guerras já não se fazem com soldados no terreno. Se se quer conquistar um país, é mais fácil escravizá-lo pela dívida.

A Alemanha, último país da Europa a usar mão-de-obra escrava em massa, conhece as vantagens do processo. Muitos dos grandes empórios alemães cresceram assim, sobre o trabalho gratuito de milhões de escravos que, durante a última guerra, chegaram a representar 20% da sua mão-de-obra e cujos sobreviventes só muito recentemente começaram a ser indemnizados com quantias pouco mais que simbólicas. Um empréstimo forçado, sem juros, com longa maturidade, ainda largamente por pagar, que não indigna os comentadores. Milhares de empresas como o Deutsche Bank, a Siemens, a Volkswagen, a Hoechst, a Allianz, a BASF, a Bayer, a BMW cresceram assim. A Alemanha sabe que não o pode voltar a fazer, mas a escravidão da dívida assegura a melhor alternativa.

jvmalheiros@gmail.com

Errata: No segundo parágrafo, emendei a palavra "credores" que aparece por lapso no texto original para "devedores".

Crónica no Público: http://www.publico.pt/mundo/noticia/alemanha-brinca-com-o-fogo-na-grecia-1685576

quinta-feira, fevereiro 05, 2015

Entrevista de Yanis Varoufakis à TV Tagesschau

Uma extraordinária, informativa e curta entrevista com Yanis Varoufakis. Como se pode ser diplomático, claro, frontal e digno.
Se um dia houvesse ministros assim no governo português...

http://www.tagesschau.de/multimedia/video/video-60403.html

terça-feira, fevereiro 03, 2015

Tempo de Avançar tenta o caminho difícil da convergência

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Fevereiro de 2015
Crónica 4/2015


O caminho da razoabilidade e da vontade de negociação é difícil de trilhar e muitas forças contribuem para o dificultar.


O movimento Tempo de Avançar, cuja convenção fundadora teve lugar este fim-de-semana em Lisboa (e do qual sou apoiante), merece alguma reflexão, não apenas por se tratar de um movimento de cidadãos que pretende constituir uma plataforma eleitoral que se irá apresentar às próximas eleições legislativas, nem por se apresentar como um movimento de esquerda que, sem abdicar da indignação e do protesto, coloca como questão identitária a sua vontade de contribuir para uma governação à esquerda, nem sequer por se tratar de um movimento que reúne de uma forma sui generis um partido político (Livre), uma associação política (Fórum Manifesto) e outras organizações de cidadãos sob uma mesma bandeira. O que penso que é especialmente particular no Tempo de Avançar é o seu posicionamento no espectro político português e as relações que pretende manter com os restantes partidos da esquerda.

Antes de mais, diga-se que o Tempo de Avançar foi constituído sob o signo e com o objectivo de alcançar uma convergência de esquerda, na senda de outras iniciativas como o Movimento 3D (que tentou, infrutiferamente, a convergência dos partidos e movimentos entre o PS e o PCP).

A ideia que está na base do Tempo de Avançar é de que Portugal precisa não apenas de um programa de esquerda mas de um governo de esquerda que consiga pô-lo em práctica, invertendo assim o caminho do empobrecimento, da crescente desigualdade e da degradação da democracia. Acontece porém que, no sector a que classicamente chamamos esquerda, encontramos um partido como o PS, onde se confundem ideologias e práticas de direita (política económica neoliberal) e de esquerda (defesa de algumas bandeiras do Estado social) numa amálgama difícil de classificar, e partidos como o Bloco de Esquerda e o PCP, que consideram que qualquer negociação com o PS é inútil e que qualquer cooperação com este no campo governativo poria em causa de forma fatal a sua pureza ideológica.

O Tempo de Avançar, por seu lado, entende que o diálogo com o PS é possível e necessário, como é possível e necessário com o BE e o PCP, e acredita que se deve tentar construir um compromisso em torno de uma base programática que possa ser aceite por estas organizações e ser a base de um futuro governo. Será um compromisso porque cada um dos partidos terá de ceder algo. Mas, como em todas as negociações, é possível ceder sem ceder no essencial, em nome de um bem maior: o fim de uma política colaboracionista que destrói o Estado e condena os cidadãos à pobreza e à dependência eterna.

A plataforma do Tempo de Avançar pode ser considerada optimista ou até ingénua, mas é clara. Só que, ao contrário de outros movimentos europeus que se situam também no campo antiausteritário, como o Syriza ou o Podemos, tem a característica de não ter definido como objectivo a sua eleição sobre as cinzas dos partidos existentes. Para o Tempo de Avançar, o tempo é ainda de colaboração e de discussão, de debate e construção. O Tempo de Avançar pensa que é possível construir uma solução de governo com as organizações de esquerda existentes e tenta construir com elas a plataforma comum da esquerda.

O Tempo de Avançar não possui um discurso antipartidos nem um discurso antipartidos de esquerda, apesar das razões que seria fácil encontrar, à direita e à esquerda, para o fazer. Pelo contrário.

Este caminho de razoabilidade e de vontade de negociação, porém, é difícil de trilhar e muitas forças contribuem para o dificultar. Uma delas é, desde já, a dificuldade de pugnar pela unidade com partidos com os quais se concorre no tabuleiro eleitoral e com quem se disputa, por vezes com violência, eleitores e influência. Por outro lado, a imensa insatisfação que todos vemos em tantos ex-apoiantes dos partidos (sim, é verdade, regista-se uma excepção para o PCP) e nos eleitores abstencionistas irá provavelmente aumentar se o Tempo de Avançar não conseguir dar um mínimo de consistência a esta ideia de um governo de esquerda e se não houver sinais por parte dos outros partidos de que ele é concretizável. O que acontece é que, numa circunstância de um descontentamento crescente e de um descrédito dos partidos de esquerda, não será possível ao Tempo de Avançar continuar a defender uma convergência impossível. Essa circunstância exigiria a esta plataforma a assunção de um protagonismo que o movimento se recusou até agora a assumir, com consequências de monta no espectro partidário. As consequências do êxito das iniciativas de convergência do Tempo de Avançar, caso ele se verifique, seriam também certamente, por outro lado, de enorme alcance.

O que chega para afirmar que o dia 31 de Janeiro de 2015 é uma data a assinalar na história política do nosso país.

jvmalheiros@gmail.com