terça-feira, março 27, 2012

Enguiço

A minha última crónica no Público, sobre as agressões no Chiado no dia 22, parece enguiçada. Algumas pessoas diriam que parece que Miguel Macedo tem um pacto com o mafarrico. A versão que publiquei aqui saiu truncada, sem o primeiro parágrafo. Acabei de a corrigir. Se durante a noite ela ficar truncada de novo aconselho-os a passar a ver o telejornal com um crucifixo na mão e a dormir com uma caneca de água benta na mesa de cabeceira. É melhor prevenir.

Miguel Macedo brinca com o fogo

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 27 de Março de 2012
Crónica 13/2012


A polícia deveria ser uma presença racionalizadora e apaziguadora nas manifestações. Não é.

Nos dias que se seguiram à greve geral de dia 22 e à manifestação que teve lugar no Chiado, em Lisboa, onde várias pessoas foram agredidas pela PSP, o Ministério da Administração Interna lamentou num comunicado “os incidentes que envolveram jornalistas”, o ministro Miguel Macedo lamentou a "situação dos jornalistas" que foram agredidos pela polícia na quinta-feira e a PSP “lamentou o sucedido com os profissionais de imprensa”.

Direcção Nacional da PSP, solícita, disse ainda mais e insistiu na “necessidade de os jornalistas se identificarem, colocando-se sempre do lado da barreira policial que os separa dos manifestantes em geral”. E a porta-voz da PSP, comissária Carla Duarte, lembrou que “qualquer manifestante pode dizer que é jornalista”, sugerindo, para melhor identificação dos profissionais de imprensa, o uso de coletes identificadores. E também Miguel Macedo pediu uma reunião com o Sindicato dos Jornalistas e com os directores dos órgãos de comunicação para definir regras de identificação dos jornalistas.

Das declarações percebe-se uma coisa: a PSP só queria dar porrada nos manifestantes e lamenta ter dado porrada também em jornalistas. Como, nas próximas manifestações, a PSP também só vai querer dar porrada nos manifestantes mas não em jornalistas, estes devem pôr-se atrás da linha da polícia, devidamente identificados, de preferência com coletes fluorescentes e sem tirarem fotografias de polícias de frente. Se não seguirem estas regras, a PSP não garante nada. Se os jornalistas estiverem ao pé dos manifestantes, habilitam-se.
Espanta a naturalidade com que tudo isto é dito pelo ministro e pela PSP. Espanta a naturalidade com que os jornalistas aceitam isto. E espanta a naturalidade com que toda a gente aceita tudo isto.

É que a razão da indignação pela intervenção brutal da polícia (PSP comum ou Equipas de Intervenção Rápida ou Corpo de Intervenção, porque a manifestação foi considerada uma ameaça de tão alto nível que estavam lá todos) não se deve ao facto de terem “agredido jornalistas” mas ao facto de terem agredido cidadãos que se manifestavam pacificamente - e alguns nem isso, pois houve pessoas tratadas brutalmente que eram apenas turistas a tomar café.

É tão inaceitável que um fotógrafo seja agredido pela polícia quanto é inaceitável que um manifestante comum seja agredido. Haveria uma agravante na agressão se ela tivesse tido lugar por se tratar de um jornalista - pois a polícia estaria a cometer o duplo crime de agressão e atentado à liberdade de imprensa. Neste caso porém, segundo a própria polícia, os jornalistas só foram agredidos porque pareciam cidadãos comuns.
A resposta corporativa dos jornalistas compreende-se. Mas esperaríamos da classe uma posição mais cidadã e uma exigência de tratamento cívico de todos os cidadãos - jornalistas ou não.

A PSP diz ter sido agredida por chávenas e pires - outras testemunhas garantem que o primeiro ataque foi da polícia - mas, mesmo que isso tenha acontecido, merecerá uma carga da polícia? Vídeos disponíveis mostram elementos da polícia distribuindo bastonadas e pontapés a pessoas que, claramente, não constituem uma ameaça. Poder-se-á dizer que os polícias - um deles dizia - estavam a reagir ao stress (parece que não há nada melhor para descontrair que dar um pontapé numa mulher que vá a passar). Mas os profissionais da PSP, homens treinados (espera-se) e a quem se entregam armas de fogo, ficam em stress com o arremesso de uns projécteis de ocasião? Imagina-se o que acontecerá nas discussões domésticas.

Claramente, a PSP não sabe o que faz e as suas chefias sabem menos ainda. A PSP não percebe que a sua primeira função numa manifestação é proteger o direito à manifestação, além de proteger pessoas e bens no perímetro da manifestação. Não é sua função infiltrar manifestações para acirrar os ânimos dos manifestantes e incitá-los a agressões. Nem empurrar manifestantes para os provocar fisicamente. Nem rachar cabeças para reduzir o stress.

Aliás, o que fazem, neste contexto, os guardas a atacar manifestantes à bastonada e com armas de fogo à cinta? Quererá o ministro Miguel Macedo que algum polícia mais stressado se alivie a tiro, irritado pelo pires que lhe bateu no capacete? Pensará o Governo que essa seria talvez uma boa maneira de desincentivar contestações de rua? Não seria. O Governo está a brincar com o fogo.

A polícia deveria ser uma presença racionalizadora e apaziguadora nas manifestações. Não é. A sua actuação é provocadora e gratuitamente brutal.

Deveria ser dialogante, calma e firme. Não é. É arruaceira e parece tão nervosa como o ministro. Deveria ter como preocupação garantir que a manifestação corre pacificamente e que os direitos dos cidadãos são respeitados. Não tem.

A polícia parece ter ordens para considerar que as manifestações que contestam o Governo são para reprimir pela força. Não devia ter. (jvmalheiros@gmail.com)

segunda-feira, março 26, 2012

Errata

Acabei de publicar aqui, por lapso, a minha crónica de amanhã no Público. Apaguei-a em seguida, mas é possível que algum dos meus seguidores tenha recebido a notificação de publicação.
Se, por acaso, alguém teve acesso ao texto, agradeço que não o divulgue. Obrigado.
José Vítor Malheiros

terça-feira, março 20, 2012

A troika já proibiu a humanidade?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Março de 2012
Crónica 12/2012


Condenar à fome os refugiados que pedem ajuda ao Estado português é descer mais um degrau na escala da abjecção

Penso que foi logo a seguir ao 25 de Abril, mas é possível que seja uma memória reconstruída. Seja como for, é assim que me lembro. Naquele tempo de entusiasmo e sedução, de paixão e de riso, onde se deixou de ter esperança porque não era preciso, porque o futuro estava ali mesmo à nossa frente para nós o fazermos como o quiséssemos, à medida de todos os sonhos (como diz Steiner que aconteceu à seguir à Revolução Francesa, quando o futuro passou a ser “lundi matin”), sonhei, como todos sonhámos, outro país. Ao contrário do de antes, diferente do de então, muito diferente do de hoje. Eram ideias soltas mas ideias fortes, coisas importantes que queria para todos os países e que me parecia que podiam muito bem começar pelo meu país.


Uma dessas ideias era o conceito de que Portugal se devia dedicar à Paz. Tenho a certeza de que nunca avancei esta ideia em nenhuma discussão política, pois a época também se caracterizou por alguma tacanhez, principalmente nas discussões políticas, e “idealista” era então um insulto usado em muitos círculos, de que eu tinha ouvido mais do que a minha quota-parte.


Eu não queria apenas que Portugal fosse um país em paz - tínhamos acabado de sair de uma guerra injusta, desonrosa e estúpida - mas queria um país dedicado à paz, como outros se dedicam a fazer relógios. E esta ideia, de que o país devia explorar a “fileira” da paz, como poderia dizer um economista, nunca me abandonou. Portugal, país de fronteiras, de sol e mar e poliglotas, parecia-me ter todas as condições para se especializar na paz, na arte do encontro, da conversa, da descoberta, da negociação, na alegria da diferença. Era (e é) em verdadeira especialização que eu pensava, como se se tratasse de divisão internacional do trabalho. Esta especialização na paz, copiada em parte dos países nórdicos e da Noruega em particular (honra à Noruega) deveria traduzir-se num investimento em investigação e em cursos específicos (internacionais, transculturais), na produção de estudos e documentos sobre prevenção e resolução de conflitos, mas deveria traduzir-se também na disponibilidade de Portugal para lançar e participar em missões de paz em todo o mundo, contribuindo não apenas para desenvolver conhecimento no domínio da resolução de conflitos e das razões dos conflitos, mas para criar uma rede global de contactos capaz de ajudar a cerzir as difíceis relações de confiança entre antagonistas. Da mesma forma como há equipas militares preparadas para fazer a guerra e para serem enviadas para qualquer parte do mundo a todo o momento, Portugal deveria ter equipas de especialistas preparados para ser enviados para fazer a paz. Seria a sua contribuição, como outros países treinam equipas cinotécnicas para enviar em missões de socorro depois dos sismos.
Imaginava Portugal como o lugar por excelência de encontros discretos entre partes desavindas de todo o mundo, o lugar onde equipas de homens e mulheres determinados e conhecedores conseguiriam negociar armistícios, sugerir contrapartidas, forjar acordos, dar uma oportunidade à paz.


E, claro, imaginava Portugal como o país de acolhimento por excelência. O país do asilo político, como França ou a Suíça ou a Suécia o foram para tantos portugueses no tempo da ditadura e da guerra colonial. Não se tratava apenas de um dever humanitário mas, mais uma vez, de uma componente da aposta na paz. A paz nasce da confiança e a confiança do conhecimento e era preciso que Portugal fosse o ponto de cruzamento de todos os que fugiam da guerra, da violência e da tortura. Era preciso que se pudessem encontrar em paz, aqui, todos os que ali tinham feito a guerra e sentido os seus horrores. E quantos dos refugiados em Portugal não poderiam ter um papel fundamental na construção da paz e da democracia nos seus países?


E, para quem quisesse fazer contas e pôr um número na paz, haveria melhor investimento? A paz pode ser mais difícil, mas sai certamente mais barata que a guerra. Uns cursos? Uns estudos? Umas viagens? Umas casas de acolhimento? Um chá tomado ao pôr-do-sol? Um aperto de mão é mais barato que uma bala.


É por causa deste sonho que me parece particularmente triste a notícia de que o Conselho Português para os Refugiados não possui neste momento sequer dinheiro para dar de comer aos 130 refugiados que apoia, porque o Ministério da Administração Interna, o Ministério da Solidariedade e da Segurança Social e a Santa Casa da Misericórdia não parecem interessados em satisfazer as suas necessidades básicas.


Que um país como Portugal, com a sua história de pobreza e guerra e ditadura, não perceba as necessidades destas famílias, que fugiram a perseguições e a quem prometeu asilo, é inaceitável. Alguém poderá explicar a Pedro Mota Soares e Miguel Macedo que temos de alimentar estas pessoas? (jvmalheiros@gmail.com) 

terça-feira, março 13, 2012

Pessoas que não conhecemos

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 13 de Março de 2012
Crónica 11/2012

Deixar vir a mim os doentes é só para Cristo e para a Estátua da Liberdade. Nesta sociedade só há lugar para os melhores.


Num dos melhores episódios de sempre da série televisiva americana “The Twilight Zone”, emitido em 1986, Brad Davis e Mare Winningham representam um jovem casal a atravessar um período de enorme aperto financeiro. Uma noite, bate à sua porta um estranho, com uma caixa de madeira na mão, que lhes faz uma proposta inesperada. A pequena caixa tem lá dentro um botão. Se eles carregarem no botão, explica o homem, alguém morrerá, “alguém que eles não conhecem”, e eles receberão 200.000 dólares. A proposta é apenas isto e o enredo desenrola-se em torno do dilema moral do casal - um dilema moral mesclado com algum cepticismo. O episódio, intitulado “Button, button”, está no YouTube e merece ser visto - e não deve ser confundido com o filme “The Box”, de 2009, que, apesar de baseado no mesmo conto de Richard Matheson, está para o episódio da “Twilight Zone” como suor de cavalo para Chanel 5.

Pergunto-me muitas vezes qual seria a opção de um dos esforçados membros do nosso Governo se lhe batesse à porta, numa noite, um estranho de longo sobretudo negro e a mesma caixa na mão, e lhe fizesse a seguinte proposta: “Se carregar neste botão, 20 por cento da população portuguesa morrerá. Mas não serão mortes ao acaso. Os vinte por cento apenas incluirão doentes crónicos, desempregados de longa duração, beneficiários do rendimento social de inserção, idosos pobres, pensionistas, analfabetos, deficientes e indigentes. O que significa que serão apenas pessoas que você não conhece.”

Que dilema moral! Por um lado, a responsabilidade da morte de milhões de pessoas. Por outro lado, a possibilidade de oferecer à Pátria um renascimento, uma nova fundação. Que salto nas estatísticas! Que país poderia ser este, habitado por jovens saudáveis, por dinâmicos empreendedores e profissionais competentes, um país enfim sem gorduras e superavitário.

A proposta do homem da caixa seria tentadora. Que downsizing do Estado! Que produtividade! Que valor acrescentado! É verdade que haveria custos, mas não há sempre? As pessoas morrem de qualquer maneira. E não é certo que o botão fosse a causa directa das mortes. Seria sempre possível dizer que se tinha carregado no botão para ver se fazia algum barulho... Mas se resultasse... que país! Ficar só com os oitenta por cento que interessam! E, bem negociado talvez se pudesse passar isso para 70 por cento! (Não, não sejamos gananciosos. Oitenta é muito bom!) Melhor que uma guerra, porque na guerra fica-se com muitos velhos e estropiados e morrem os jovens. Ai, se houvesse uma caixinha destas!...

Exagero? Apenas um tudo-nada. Porque tudo no discurso e na prática do Governo (deste e de muitos outros) revela este sonho eugenista: Como o país poderia ser maravilhoso e próspero se não nos tivéssemos de ocupar dos mais fracos e desprotegidos! O discurso culpabilizador dos desempregados (que não trabalham porque não se adaptaram, que deviam emigrar em vez de ficar por cá) ou dos doentes e idosos (que vão mais aos centros de saúde e aos hospitais do que deviam e que nos obrigam a gastar nestes seus luxos o dinheiro que o país não tem) é um sinal dessa ideologia. Como o é a promoção da “avaliação individual”, ferramenta de exclusão por excelência, culpabilizadora dos mais fracos, transformados em bodes expiatórios dos problemas do país. Como o é toda a conversa das “gorduras” que, quando se olha de perto, se percebe que afinal são pessoas. Pessoas descartáveis, que culpamos da falta de eficiência da nossa máquina social. Sub-humanos. Uma vez culpabilizados os desempregados, os doentes, os inaptos, as gorduras, os subsídio-dependentes, os ciganos, os imigrantes, os idosos, os pobres, é possível excluí-los primeiro. Pô-los de lado. Despedi-los porque ficaram em último nas avaliações. Não os deixar estudar porque não têm dinheiro. Não os tratar porque não aparecem nos hospitais porque não têm dinheiro para a senha. Ninguém dará por falta deles!

Deixai vir a mim os doentes e os pobres e os sem-abrigo é só para Cristo e para a Estátua da Liberdade. Nesta sociedade só há lugar para os melhores. É isso a produtividade, a eficiência, o progresso.

Depois, quando estão fora de vista e esquecidos, podemos começar a reduzir as suas rações. As rações de medicamentos, de tratamentos, de alimentos, de espaço para viver, de espaço nos transportes, de espaço nas nossas preocupações, de pensões. Houve algum alarme com os 4.000 que morreram a mais em Fevereiro? Para quê se já estavam na antecâmara da morte? Para quê se são parasitas que consomem os recursos que poderíamos usar para desenvolver o país, se eles não os gastassem? E eles não são como nós. Nós nem os conhecemos. Morte aos fracos! São eles que têm de dar lugar aos fortes, em nome do futuro. É para o nosso bem. E um dia, se a caixa chegar, poderá parecer a solução mais humana. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, março 06, 2012

Os pequenos ópios do povo

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Março de 2012
Crónica 10/2012


A venda de cromos é uma espécie de rifa, onde o cliente não sabe o que compra e recebe um produto que resulta de um sorteio


1. A grande moda dos últimos tempos entre os miúdos das escolas primárias portuguesas (e espanholas e italianas) é um álbum de cromos de uns superheróis quiméricos mutantes com uma agressividade patológica chamados Invizimals. “Invizimals” começou por ser um jogo da consola PlayStation, mas depois deu origem ao inevitável merchandising, dos quais os cromos são as estrelas. Mas os Invizimals são também um triunfo estrondoso do marketing, que continua a transformar ar em dinheiro graças a uma barragem de publicidade despudorada dirigida às crianças de mais tenra idade - que inclui oferecer a caderneta de cromos à porta das escolas. As crianças, devidamente acossados pela pressão dos pares, azucrinam depois a cabeça dos pais até estes lhes comprarem os ditos cromos. A adesão é viral: basta que uma criança compre para que o efeito de contágio seja imparável, a epidemia assegurada. E, uma vez começada a epopeia, o cliente fica cativo durante meses: os miúdos querem “acabar a colecção”.

A infecção tem a originalidade de ser cara, porque os cromos vêm em envelopes que se compram segundo o método duplamente cego: quem vende não sabe o que vem lá dentro, quem compra não sabe o que compra. Como os miúdos se divertem depois a trocar os cromos repetidos, a brincadeira pode não chegar a custar tanto como a prestação da hipoteca. Cada caderneta fica mais cara do que o livro mais caro lá de casa, mas quase que não se dá por isso porque tudo acontece aos poucos e os miúdos gostam.

É uma exploração abusiva da ingenuidade e da inumeracia de muitos compradores que a caderneta não contenha claramente escarrapachado o custo mínimo do seu preenchimento. Claro que tudo depende do número de cromos repetidos que aparecem nos envelopes, mas esse é um factor que os clientes não têm nenhuma forma de controlar e que a editora (a famosa Panini, com uma facturação de centenas de milhões de euros por ano) pode manipular livremente. Mas, mesmo sem poder prever o custo exacto para cada comprador, há pelo menos um custo mínimo, que é o custo da aquisição da totalidade dos cromos se nunca aparecesse nenhum repetido - uma impossibilidade estatística. Mesmo este custo, porém, é avultadíssimo (50 euros, 80 euros), e constituiria uma surpresa para muitos compradores. A informação deveria ser de afixação obrigatória nas cadernetas e nos envelopes, para evitar a exploração dos incautos que o negócio dos cromos se tornou.

Por outro lado, sendo a editora livre de incluir nos seus envelopes os cromos que quiser, nada a impede de adiar estrategicamente a inclusão de certos cromos, de forma a forçar a compra de envelopes para além do que seria a simples consequência da lei das probabilidades.

A venda de envelopes de cromos é, de facto, uma espécie de rifa, onde o cliente paga sem saber o que compra e recebe um produto que resulta de um sorteio. Não existe nenhum diferença de fundo entre isto e um jogo de azar - a não ser o facto de estes serem regulados e fiscalizados e de a Panini poder agir sem quaisquer entraves.
2. Os Invizimals são uns monstros agressivos (como é que os brinquedos e os desenhos animados se tornaram quase todos monstros histéricos japoneses?) com poderes especiais “de ataque” e “de defesa” e com nomes entre o mitológico e o techno. É claro que os miúdos (sim, é uma coisa de rapazes) competem com os colegas para ver quem tem mais, quem tem quais, discutem com os amigos as qualidades de cada um, consultam os sites especializados (sim, há sites especializados) e acabam por saber tudo o que há para saber sobre a morfologia, as técnicas de combate e os costumes tribais de toda esta tropa fandanga. É aterrador que tantos milhões de crianças pelo mundo aprendam tanto sobre coisas tão absolutamente inúteis e tão cuidadosamente desligadas de qualquer tipo de realidade. Não se trata de ficção, nem de fantasia. Aqui não há história, não há narrativa, não há descrição e muito menos discurso ou reflexão. Não há sequer emoção. Não há sequer verdadeiramente personagens. Não há consciência que permita empatia. Há apenas ruído e efeitos de luz que se repetem num ciclo hipnótico. Nenhuma criatividade, apenas marketing. Confesso que coleccionei muitos cromos com gosto durante a minha infância. Não sendo apreciador de “bonecos da bola”, tive cadernetas de “raças de cães” (acho que fui aí que aprendi tudo o que sei sobre o tema), sobre “povos do mundo”, sobre as “maravilhas e mistérios do mundo animal”. Sei que existem no mundo real inúmeros temas fascinantes, capazes de captar a atenção e a imaginação das crianças, da vida animal às paisagens, da ciência ao espaço, das tradições às máquinas, da arte às profissões, a própria ficção, com a literatura e o cinema. E pergunto-me como é que deixámos que a alienação das crianças se transformasse numa indústria tão poderosa. (jvmalheiros@gmail.com)