por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Março de 2012
Crónica 10/2012A venda de cromos é uma espécie de rifa, onde o cliente não sabe o que compra e recebe um produto que resulta de um sorteio
1. A grande moda dos últimos tempos entre os miúdos das escolas primárias portuguesas (e espanholas e italianas) é um álbum de cromos de uns superheróis quiméricos mutantes com uma agressividade patológica chamados Invizimals. “Invizimals” começou por ser um jogo da consola PlayStation, mas depois deu origem ao inevitável merchandising, dos quais os cromos são as estrelas. Mas os Invizimals são também um triunfo estrondoso do marketing, que continua a transformar ar em dinheiro graças a uma barragem de publicidade despudorada dirigida às crianças de mais tenra idade - que inclui oferecer a caderneta de cromos à porta das escolas. As crianças, devidamente acossados pela pressão dos pares, azucrinam depois a cabeça dos pais até estes lhes comprarem os ditos cromos. A adesão é viral: basta que uma criança compre para que o efeito de contágio seja imparável, a epidemia assegurada. E, uma vez começada a epopeia, o cliente fica cativo durante meses: os miúdos querem “acabar a colecção”.
A infecção tem a originalidade de ser cara, porque os cromos vêm em envelopes que se compram segundo o método duplamente cego: quem vende não sabe o que vem lá dentro, quem compra não sabe o que compra. Como os miúdos se divertem depois a trocar os cromos repetidos, a brincadeira pode não chegar a custar tanto como a prestação da hipoteca. Cada caderneta fica mais cara do que o livro mais caro lá de casa, mas quase que não se dá por isso porque tudo acontece aos poucos e os miúdos gostam.
É uma exploração abusiva da ingenuidade e da inumeracia de muitos compradores que a caderneta não contenha claramente escarrapachado o custo mínimo do seu preenchimento. Claro que tudo depende do número de cromos repetidos que aparecem nos envelopes, mas esse é um factor que os clientes não têm nenhuma forma de controlar e que a editora (a famosa Panini, com uma facturação de centenas de milhões de euros por ano) pode manipular livremente. Mas, mesmo sem poder prever o custo exacto para cada comprador, há pelo menos um custo mínimo, que é o custo da aquisição da totalidade dos cromos se nunca aparecesse nenhum repetido - uma impossibilidade estatística. Mesmo este custo, porém, é avultadíssimo (50 euros, 80 euros), e constituiria uma surpresa para muitos compradores. A informação deveria ser de afixação obrigatória nas cadernetas e nos envelopes, para evitar a exploração dos incautos que o negócio dos cromos se tornou.
Por outro lado, sendo a editora livre de incluir nos seus envelopes os cromos que quiser, nada a impede de adiar estrategicamente a inclusão de certos cromos, de forma a forçar a compra de envelopes para além do que seria a simples consequência da lei das probabilidades.
A venda de envelopes de cromos é, de facto, uma espécie de rifa, onde o cliente paga sem saber o que compra e recebe um produto que resulta de um sorteio. Não existe nenhum diferença de fundo entre isto e um jogo de azar - a não ser o facto de estes serem regulados e fiscalizados e de a Panini poder agir sem quaisquer entraves.
2. Os Invizimals são uns monstros agressivos (como é que os brinquedos e os desenhos animados se tornaram quase todos monstros histéricos japoneses?) com poderes especiais “de ataque” e “de defesa” e com nomes entre o mitológico e o techno. É claro que os miúdos (sim, é uma coisa de rapazes) competem com os colegas para ver quem tem mais, quem tem quais, discutem com os amigos as qualidades de cada um, consultam os sites especializados (sim, há sites especializados) e acabam por saber tudo o que há para saber sobre a morfologia, as técnicas de combate e os costumes tribais de toda esta tropa fandanga. É aterrador que tantos milhões de crianças pelo mundo aprendam tanto sobre coisas tão absolutamente inúteis e tão cuidadosamente desligadas de qualquer tipo de realidade. Não se trata de ficção, nem de fantasia. Aqui não há história, não há narrativa, não há descrição e muito menos discurso ou reflexão. Não há sequer emoção. Não há sequer verdadeiramente personagens. Não há consciência que permita empatia. Há apenas ruído e efeitos de luz que se repetem num ciclo hipnótico. Nenhuma criatividade, apenas marketing. Confesso que coleccionei muitos cromos com gosto durante a minha infância. Não sendo apreciador de “bonecos da bola”, tive cadernetas de “raças de cães” (acho que fui aí que aprendi tudo o que sei sobre o tema), sobre “povos do mundo”, sobre as “maravilhas e mistérios do mundo animal”. Sei que existem no mundo real inúmeros temas fascinantes, capazes de captar a atenção e a imaginação das crianças, da vida animal às paisagens, da ciência ao espaço, das tradições às máquinas, da arte às profissões, a própria ficção, com a literatura e o cinema. E pergunto-me como é que deixámos que a alienação das crianças se transformasse numa indústria tão poderosa. (jvmalheiros@gmail.com)
2 comentários:
A mim ensinaram-me tudo e mais alguma coisa,muitas de uma inutilidade escabrosa,menos como é que se educam os filhos.É curioso que a sociedade, que se eterniza,através da renovação sistemática de sucessivas gerações,isto é,dos filhos e filhas,se desleixe numa premissa tão básica como é a da educação dos mais novos,deixando alastrar os vírus da sua própria destruição.É como as democracias parlamentares modernas,que invocando a liberdade de expressão e de existência,permitem que grupos e elementos radicais de esquerda e/ou de direita se exerçam na violência à toa,reclamem livremente modelos políticos autoritários,e deste modo se encerre na ideia de liberdade a peste que a há-de destruir.
Educação com responsabilidade,disciplina,atenção,eis alguns dos ingredientes que nos fazem falta para controlar os danos que a ganância dos lucros causam nos putos.
Gostei do escreveu,obrigado!
Cumprimentos
ora um adepto do consumismo do equivalente aos romances de cordel
os cromos...
Não sendo apreciador de “bonecos da bola”,nem das colecções das pastilhas pirata...ou gorila
tive cadernetas de “raças de cães” (acho que fui aí que aprendi tudo o que sei sobre o tema),anos 60...
sobre “povos do mundo”, fim dos anos 60
sobre as “maravilhas e mistérios do mundo animal” anos 70 definitivamente
a história da terra é de 75....
e as maravilhas antecede em 3 anos
logo a $50 e a 1$50 a carteirinha de cromos
um balúrdio e sem ninguém pra trocar
ao menos com os cromos da bola...
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