terça-feira, fevereiro 22, 2005

A vergonha e a falta dela

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 22 de Fevereiro de 2005
Crónica 6/2005

O resultado do PSD prova que o populismo de Pedro Santana Lopes tem a sua eficácia. A reacção do líder mostra que a sua ambição e desplante não têm limites.

PS – É surpreendente que o melhor resultado de sempre do PS ocorra com um líder sem rasgo particular, depois de uma campanha defensiva, com um programa tímido e sem caras fortes a acompanhá-lo. É revelador da falta de credibilidade de Santana Lopes, mas também do esgotamento do PPD/PSD. A vantagem do resultado é que os portugueses vão pela primeira vez provar um governo PS com apoio parlamentar, o que não admite quaisquer desculpas e será clarificador da cena política.

PSD – Teve uma enorme derrota mas não a maior de sempre, nem sequer um resultado vergonhoso. Como Santana Lopes disse, o PSD já ganhou eleições com resultados semelhantes. Por outras palavras: os portugueses correram com o homem do Governo, mas não o correram do PSD nem da política. Se alguém como Santana Lopes tem a votação que tem depois de ter feito o que fez, o que será preciso para que o povo obrigue um líder político a fugir de vergonha?

O resultado prova que o populismo de Pedro Santana Lopes tem a sua eficácia, que há quem confunda descaramento com coragem e leviandade com decisão. O homem não tem vergonha e o povo não teve suficiente vergonha dele. A reacção de Santana Lopes mostra que a sua ambição pessoal e desplante não têm limites, que só sairá pela força. Para já, foi contar as espingardas e avisou os timoratos que não vai hesitar em disparar. Agora é o momento de verdade do PSD, que vai ter oportunidade de nos mostrar quem é.

CDU – A coligação beneficiou de uma conjuntura favorável, com o país cansado da direita, com a direita concentrando ataques no BE, com um novo líder, mais expressivo e dinâmico. A votação na CDU mostra que a hemorragia pôde ser estancada, mas isso não significa que o paciente vá recuperar a saúde de outros tempos. O organismo está envelhecido e é provável que isto seja o melhor que é possível. O crescimento do BE não augura nada de bom à CDU e ao PCP. O resultado da CDU parece fruto não da conquista de novos votantes mas de uma maior mobilização momentânea dos votantes clássicos.

PP – Perante um resultado que é uma derrota mas está longe de ser vergonhoso, Paulo Portas encontrou o tom certo para assumir responsabilidades. Mas é significativo que se mantenha à disposição da futura direcção para aquilo que ela entender pedir-lhe. Mesmo que não lhe apeteça dirigir o partido durante a próxima travessia do deserto, o líder não abdica da sua posição de figura tutelar, ainda que na sombra (como já fez no passado) e alinha-se para momentos mais propícios.

BE – A vitória do BE, com o maior crescimento de todos os partidos, muito mais votos, muito mais deputados, foi ensombrada pela falha em alcançar dois objectivos (irreflectidamente) anunciados: ser a terceira força política e evitar a maioria absoluta política do PS. Um partido que se pretende responsável e inovador não pode apresentar o objectivo formal de “ser o terceiro”; por outro lado, na conjuntura particular das eleições, apresentar o PS como inimigo principal deixa ver um sectarismo que não permite esperar o melhor. Que o BE ainda não digeriu o novo xadrez político revela-se, por outro lado, pelo anúncio da proposta de referendo sobre o aborto, em vez de propor a alteração da lei no quadro da nova Assembleia da República, como parece mais eficaz.

Abstenção - A descida da abstenção para 35 por cento é uma boa notícia, mas não se pode considerar positivo que um em cada três eleitores prefira não votar. Nem pode servir de consolação que a abstenção seja igual ou superior noutros países. Uma democracia não se pode contentar com um nível de abstenção desta ordem (51,8 por cento nos Açores!) e deve eleger o combate contra o abstencionismo como uma batalha permanente, com acções concretas de mobilização e de educação cívica junto da juventude.

terça-feira, fevereiro 15, 2005

Ligações perigosas

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 15 de Fevereiro de 2005
Crónica 5/2005

A Web quase apagou a distinção entre jornalistas e não-jornalistas na produção de informação.

Há meia dúzia de anos, quando a Web já tinha invadido o mundo e ainda nos fascinava com as suas capacidades, um dos debates que irrompeu no jornalismo foi o do risco do seu desaparecimento, perante esta tecnologia que permitia que todos se transformassem em “jornalistas”. A promessa da publicação ao alcance de todos estava presente desde os primeiros passos da Web, mas viria apenas a concretizar-se com os blogs.

Sempre pensei que o risco de extinção do jornalismo, a existir, não viria certamente da profusão de publicadores, já que o jornalismo não visa a reprodução mecânica da informação mas sim uma selecção e validação da informação julgada relevante para que os cidadãos possam fazer escolhas conscientes. Ora essa função de selecção e validação, segundo critérios de rigor e independência, que estão no cerne da profissão de jornalista e do contrato social que mantemos, não se tornam de forma alguma redundantes com a profusão de informação, antes pelo contrário. A tarefa do jornalista, antes e depois da Web, continua a ser a procura da verdade e a sua divulgação (por muitos sorrisos cínicos que a palavra “verdade” possa suscitar).

É evidente que a facilidade de publicação da Internet constitui uma vitória da liberdade de expressão e enriquece o debate democrático, mas a livre troca de informações e expressão de opiniões não substitui a instância independente e arbitral que se espera que o jornalismo constitua. O que o cidadão espera do jornalista é que procure a informação, que seleccione os factos relevantes, que valide os dados e que os reporte com a máxima independência possível, sem defender interesses particulares. Espera-se ainda que o treino profissional do jornalista lhe permita separar a sua opinião dos factos e que, se quiser exprimir a primeira, o faça com lealdade perante o leitor, assumindo-o de forma clara (e só quando tal lhe parecer relevante para que o leitor forme a sua própria opinião). Lealdade é, aqui, um conceito chave.

A Web tornou ainda menos clara a separação entre jornalismo e entretenimento (fenómeno que os tablóides e a TV iniciaram) e, entre muitas outras coisas, quase apagou a distinção entre jornalistas e não-jornalistas na produção de informação, o que desequilibrou a relação de poder entre os dois grupos, com consequências de sinais diferentes.

Os jornalistas viram-se de súbito imersos num universo mediático que não controlavam, que não tinha de obedecer a quaisquer regras de estilo, de validação, de separação de factos e opinião, de independência, de equidade, de garantia de contraditório, e que, para cúmulo, “et pour cause”, conquistava uma parte crescente da atenção da sociedade. A tentação era demasiado grande.

Ao contrário do que as regras fariam esperar, ocorreu uma contaminação do jornalismo por estes discursos, “libertados” mais que “libertários”, sedutores como um canto de sereia, onde tudo era possível, mesmo os ajustes de contas, sem o empecilho da deontologia.

Que os blogs tenham explodido não admira. Que tenham explodido entre os jornalistas também se percebe. Que a lógica displicente de produção de um blog (que na origem é um diário pessoal) tenha penetrado no próprio jornalismo e no relato dos factos é mais grave. Mais do que relatores, os jornalistas tornaram-se comentadores, fontes de apartes, piscadelas de olho e cotoveladas cúmplices no leitor. Como esta campanha eleitoral mostrou à saciedade (mas já vem de longe), os jornalistas têm uma dificuldade cada vez maior em guardar para si próprios os seus sentimentos e conjecturas, as suas opiniões ou os boatos de que têm conhecimento e acham que eles merecem a glória do blog quando não da radiodifusão ou da impressão. Seria bom que a sociedade se lembrasse de que tem o direito não só de criticar mas de exigir aos jornalistas rigor e responsabilidade.

terça-feira, fevereiro 01, 2005

Crianças e colos

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 1 de Fevereiro de 2005
Crónica 4/2005


Uma insinuação é um ataque que não exige coragem nem permite defesa e que se esconde na própria fuga.

Gustave Flaubert escreveu um “Dictionnaire des idées reçues”, publicado postumamente, onde apresenta uma miscelânea de lugares comuns que foi acumulando ao longo da vida. Se fosse publicado hoje poderia chamar-se “Dummies guide para conversação de sociedade”, ou algo do género. Aí apresenta, entre outras pérolas, uma lista dos adjectivos mais adequados para usar com diferentes substantivos sem correr o risco da originalidade, como por exemplo (não sei se cito se invento) “Imaginação - sempre prodigiosa”, “Vegetação - sempre luxuriante”, etc. Não me recordo se “Insinuação” é uma das entradas, mas se fosse certamente que o adjectivo que o acompanharia seria o comum “torpe”.

A insinuação é uma arma retórica de grande peso pois permite dizer sem dizer e, principalmente, dar a entender que se diz sem se ter dito e sem se ter provas do que se diz. Não é preciso saber nada para se insinuar algo, não é preciso ter uma ideia. Quando se insinua, não só não é necessário justificar o que se disse como se pode até jurar que não se disse. É um ataque que não exige coragem nem permite defesa, que se esconde na própria fuga, dissimulado e inimputável.
A insinuação é o grau zero da dignidade do discurso, uma espécie de fogo de vista ao contrário, que cria do nada uma girândola de imundície.

Os últimos dias viram esta arma ser usada de forma relevante por duas vezes no discurso de dois dirigentes políticos: primeiro por Francisco Louçã, depois por Santana Lopes.

Francisco Louçã deveria saber que, para além dos tradicionais apoiantes das principais formações políticas que deram origem ao Bloco de Esquerda (que continuarão a sonhar com a revolução proletária mundial e a ditadura do proletariado), este conseguiu captar uma nova camada de eleitores, urbana e moderna, que se reconhecem em particular nas medidas sociais apoiadas pela organização, da luta contra a discriminação dos homossexuais ao combate à fraude fiscal. É por isso não apenas torpe mas também politicamente insensato que Louçã se tenha atrevido a levar onde levou a sua argumentação contra Paulo Portas. As infelizes frases poderiam ter sido um deslize, mas a sua repetição “ad nauseam” no próprio debate, a sua defesa posterior (por Louçã e outros dirigentes do BE), a sua tentativa de esconder atrás das posições do Bloco sobre o aborto uma utilização da vida privada de um adversário para o neutralizar e uma ameaça à devassa da sua vida privada tornam o facto particularmente desqualificante. A pose moralista de Louçã pode ser ou não simpática, mas do que não há dúvidas é que não permite estes desvios sem pôr em causa o conteúdo do seu discurso.

A única atitude admissível teria sido um cabal pedido de desculpas a Paulo Portas e aos portugueses – o que não aconteceu, apesar do BE ter tentado dar a entender que teve lugar. A tirada de Louça não teria tido efeito noutro partido. No caso do Bloco fez-lhe perder votos.

O mesmo baixo truque, de efeito político duvidoso, foi tentado mais recentemente por Santana Lopes, pendurado ao colo das mulheres social-democratas. É verdade que Santana Lopes, apesar de primeiro-ministro, não está obrigado a respeitar qualquer fasquia de dignidade ou de coerência graças às conquistas do seu currículo, mas a sua insinuação apouca-nos a todos.

Alguém lhe poderá dizer isso? Alguém lhe poderá dizer que temos o direito (e ele o dever) de não baixar o discurso a este nível? Alguém lhe poderá dizer que deve falar de política e que tudo o que se espera dele é que diga o que pretende fazer com os votos que os portugueses lhe vão dar? Já não se lhe pede que seja brilhante, mas não será que alguém o poderá chamar à simples decência?