terça-feira, maio 31, 2011

A nódoa

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Maio de 2011
Crónica 22/2011

Os socialistas do PS só vão aparecer quando tiverem a certeza de que Sócrates já não respira


1. Espero que Mário Soares tenha oportunidade de participar noutra campanha eleitoral, noutro ciclo de vida do seu partido. Isto porque deixar como testamento político um apelo ao voto em José Sócrates seria um final particularmente triste para um homem com a sua carreira e com a sua visão política. Seria a prova que na política a má moeda expulsa sempre a boa moeda, em Portugal ou na Europa, como os tempos parecem insistir em nos provar.


É verdade que aquilo que Soares encontrou para dizer de positivo a propósito de Sócrates foi prudentemente escasso (“ganhou uma experiência excepcional, tem amigos na Europa e conhece toda a gente”) e que a sustentação do seu apelo ao voto no PS foi “apenas” a sua fidelidade “ao Partido Socialista que ajudou a criar”, mas a intervenção do líder histórico do PS no Palácio de Cristal serviu para mostrar de que forma todo o partido – com raríssimas excepções - está refém de Sócrates.


Será porque acham que Sócrates é de facto o melhor líder possível para o Governo de Portugal? Porque acreditam de facto que Sócrates defenderá o Estado Social? Porque acreditam que Sócrates tem a visão (seja qual for) para o país capaz de o tirar do atoleiro? Porque acham que o prestígio internacional de Sócrates lhe permitirá renegociar os empréstimos em melhores condições? Porque acreditam na sua competência técnica? Na sua honestidade? Não. As razões são outras. Antes de mais, porque acham que Sócrates é o único líder socialista que pode ganhar estas eleições e o que o PS quer neste momento é ganhar as eleições, (aconteça o que acontecer ao país). Depois, porque receiam o conhecido carácter vingativo do chefe... que ainda tem os cordelinhos do partido na mão.

Só depois de Sócrates cair aparecerão os seus oposicionistas. Aparecerão em bando, quando tiverem a certeza de que já não respira. As razões do apoio dos socialistas do PS a Sócrates são, assim, as piores possíveis: ou o medo ou o sectarismo partidário. E a razão invocada no apelo ao voto é a única possível: o PSD é ainda pior do que nós.



2. Não percebo o que pode levar um dirigente socialista a defender o seu apoio a José Sócrates com base no argumento de que ele “é o líder do meu partido”. Não perceberão estas pessoas, de quem se esperaria alguma cultura política, que esse argumento, que os estalinistas utilizaram de forma extensiva durante décadas, se encontra na raiz dos maiores crimes políticos jamais perpetrados?



Não perceberão que esse argumento, sectário por excelência, não é um argumento? Não percebem que esse falso argumento justificaria todos os crimes? Que ele é amoral? Até que ponto irão continuar a apoiar Sócrates? Vão continuar a apoiá-lo faça o que fizer? Se um dia, em vez de disparar grosserias no Parlamento, como se acostumou a fazer, pegar numa caçadeira e começar a disparar umas cartuchadas a eito no meio da multidão dirão que quem o criticar está apenas a servir os interesses do PSD, a atacar o Estado Social?

Achará o PS que os benefícios da acção governativa do PS (também os houve) compensam e devem fazer esquecer as aldrabices, as manipulações, as negociatas? Quererá o PS adoptar oficialmente a atitude dos autarcas corruptos que “roubam mas fazem”? Serão os ajustes directos aos amigos, as PPP sem controlo e a sonegação de informação uma espécie de “imposto revolucionário” que o povo deve pagar directamente para o bolso de alguns beneficiários em contrapartida de ainda termos o Serviço Nacional de Saúde? Acha o PS que as benesses que concede ao país devem ter como paga a sua absoluta impunidade? Defenderá o PS a monarquia absoluta?

Não sei se o PS percebe a nódoa que o consulado socratista constitui para si, a desvergonha que representa e que transformou em bandeira, o descrédito que trouxe para a política e aos políticos, o autêntico escarro que significa na cara do eleitorado em geral e dos socialistas em particular. Parece que não. (jvmalheiros@gmail.com)

quarta-feira, maio 25, 2011

Uma família às esquerdas e uma gestão à esquerda

Nota publicada no Facebook on Wednesday, May 25, 2011 at 4:59pm (http://www.facebook.com/note.php?note_id=214473561906595&comments)

O Bloco de Esquerda de Coimbra organiza amanhã (dia 26 de Maio de 2011) uma reflexão sobre a família, vista pela esquerda (Uma família às esquerdas http://www.facebook.com/event.php?eid=116879458397871).

O tema é fundamental, pois "a família" tem sido uma temática de que a direita se apropriou com naturalidade, perante a indiferença ou mesmo um certo mal-estar da esquerda (pouco à-vontade perante aquilo que foi durante os últimos cem anos uma bandeira da direita e mesmo dos fascismos). No entanto, é evidente que tem de haver uma política de esquerda de apoio à família e que esta tem de ser clara e assumida. Uma política de apoio à natalidade, de conciliação família-trabalho, de apoio à vida familiar, etc.

Da mesma forma, seria interessante que a esquerda se lançasse ao desafio de debater o que poderá ser uma gestão de esquerda. Aqui, o mal-estar da esquerda é ainda maior. Não existe, fora do modelo do confronto laboral clássico, da dicotomia trabalhadores-patronato herdada do modelo da luta de classes, um modelo de empresa. A empresa (entenda-se "empresa privada"), para a esquerda, é, antes de mais, o lugar da luta de classes.

A direita afirma que existe apenas uma forma de gerir (a tecnocrática), com os olhos no mercado e no aumento da produtividade e denuncia todas as intervenções da esquerda neste domínio como pondo em causa a sobrevivência da empresa ou, pelo menos, o seu progresso.

Há um problema importante: na prática, as técnicas que se escondem por trás dos slogans da direita em nome da produtividade são quase sempre tácticas de repressão e de redução das liberdades cívicas (em nome da busca de eficiência), de destruição do espírito de grupo (em nome da competitividade interna), de redução dos direitos e da qualidade de vida dos trabalhadores e de destruição do sindicalismo (de forma a reduzir custos do trabalho e a eventual contestação).

De facto o fascismo não só não morreu mas está vivo nas empresas, perante a indiferença envergonhada de quase todos. Ao mesmo tempo que se refinaram as técnicas de manipulação e controlo dos trabalhadores (sob designações orwellianas como “gestão de recursos humanos”) estes são considerados como meros “meios de produção” – quando não como “custos”.

Apesar disto, as empresas precisam realmente de aumentar a sua produtividade, de garantir financiamentos, promover a inovação, crescer e conquistar mercados.

O que será gerir de forma democrática? O que será gerir de forma igualitária? O que será gerir em liberdade? O que será gerir de forma solidária?

A questão vale bem uma missa.

terça-feira, maio 24, 2011

“Me gustas democracia, pero estás como ausente”

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 24 de Maio de 2011
Crónica 21/2011
Estes jovens não se sentem tratados com justiça pelo sistema económico nem representados pelo sistema político

A frase que dá título a esta crónica, com um cheirinho a Neruda, está escrita num cartão encostado à estátua de D. Pedro IV, no Rossio, em Lisboa. É um dos muitos cartões com dizeres que se acumulam na acampada a que um grupo de jovens espanhóis deu início na semana passada em Lisboa e aos quais se juntaram, entretanto, dezenas de jovens portugueses. O grupo chega a algumas centenas nas “assembleias populares”, momentos de maior concentração. Mas este mesmo cartaz não está só em Lisboa. Ele está a aparecer em dezenas de cidades europeias.
Estes jovens do Rossio são uma extensão do grupo de espanhóis que tem estado nos últimos dias a ocupar a praça da Puerta del Sol em Madrid e outras cidades espanholas e que se tem alargado entretanto, via redes sociais, a outras cidades europeias (Amsterdão, Bruxelas, Paris, Dublin, Berlim…) . A Internet está cheia de vídeos, blogs e tweets destas concentrações, ocupações, acampamentos, organizados de forma espontânea ou convocados de forma descentralizada por jovens reunidos no Movimento 15-M (de 15 de Maio, data da primeira concentração espanhola) e unidos sob o slogan “Democracia real já!”.
Os jovens espanhóis disseram-se desde o início inspirados pelo movimento português Geração à Rasca, mas as manifestações do Norte de África também são referências no discurso dos oradores que se sucedem atrás dos megafones nas várias cidades europeias. O que querem estes jovens? O que gritam nos seus megafones? O que escrevem nos seus cartões? Democracia verdadeira, dizem. As palavras de ordem, que se repetem com variantes em todas as cidades, são humorísticas (“Yes we camp!”) e de desafio (“Toma la calle!”, “J’y suis! J’y reste! Je-ne-partirais-pas!”) mas são também claramente reivindicativas: “I don’t feel represented!”, “Não somos anti-sistema. O sistema é anti-nós”, “Esta crise não pagamos”, “Não somos mercadoria de políticos e banqueiros”, “A bancos salvais. A pobres roubais”. Há slogans a fazer lembrar Maio de 68 (“Os nossos sonhos não cabem nas vossas urnas”, “Se não nos deixam sonhar, não vos deixaremos dormir!”), outros mais claramente políticos (“Contra a ditadura capitalista”, “Contra a ditadura económico-financeira”, “Pelo poder popular”), outros anti-liberais (“Porqué manda el mercado, si yo no le he votado?”), muitos contra o FMI. Muitos contra a corrupção (os políticos chorizos…). E muitas referências à Revolução, que estará a começar. Há queixas que se aproximam perigosamente do discurso populista anti-partidos. O cuidado (excessivo) em não se aproximarem das propostas deste ou daquele partido torna por vezes as críticas difusas e as propostas vagas, mas uma coisa é evidente: estes jovens não se sentem representados pelos políticos (“No! No! No-nos-representan!”). Nem no seu país nem na Europa. Nem se sentem tratados com isenção pelo sistema eleitoral. Não se sentem tratados com justiça pelo sistema económico. Não se sentem defendidos pelo sistema judicial. Sentem que o sistema financeiro é desumano, injusto e fomenta a desigualdade e o crime. E, quando se ouvem melhor, as suas críticas aos partidos têm a ver com o facto de o sistema os forçar a escolher entre um PS e PSD (em Portugal) ou entre um PP e PSOE (Espanha) que, se podem ser distinguíveis, representam uma democracia armadilhada, que está como ausente, que coloca todas as escolhas fora da sua mão, do seu voto, da sua vontade, na mão do FMI, da União Europeia ou do mercado. Não foi por acaso que a multidão que enchia a Puerta del Sol recebeu o resultado das eleições regionais espanholas na mais absoluta indiferença. O que os move não é a adesão a este ou àquele partido. Nenhum os entusiasma nem lhes merece confiança. Não apelam ao voto nem à abstenção, mas sentem que não é nas eleições que vão conseguir mudar o que querem mudar. E, ganhe quem ganhar as eleições, estão dispostos a não nos deixar dormir. Ainda bem. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, maio 17, 2011

As vidas múltiplas de Eduardo Catroga

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 17 de Maio de 2011
Crónica 20/2011


O problema não é o ex-futuro ministro ser uma pessoa pouco elegante. É o facto de não ter tento na língua


1. É verdade que os dislates e os deslizes de Eduardo Catroga são pouca coisa se os compararmos com a agressão de que foi acusado este fim-de-semana em Nova Iorque o patrão do FMI, Dominique Strauss-Kahn. E falar das responsabilidades do primeiro em vez de chamar a atenção para as do segundo pode parecer tão desproporcionado como comparar um pêlo púbico a uma tentativa de violação. Mas há mais do que o critério da proximidade geográfica para nos dedicarmos ao economista português em vez de ao francês: é que, se ainda falta esclarecer se um DSK em pêlo cometeu de facto o ataque de que é acusado, as declarações em que Catroga tem sido fértil não estão em dúvida e aquilo que ele propõe pode vir a sair-nos do pêlo.

Foi instrutivo ouvir e ler ao longo dos últimos dias os comentários sobre a expressão usada por Catroga na sua entrevista à Sic para criticar políticos e media por não andarem a discutir as coisas verdadeiramente importantes. Mas a questão não está, como disse Pedro Passos Coelho, no facto de Catroga ter usado uma expressão “pouco feliz”. A política está cheia de expressões pouco felizes e até claramente infelizes. A questão está, sim, no facto de o homem que foi o coordenador do programa eleitoral do PSD, que foi o negociador-chefe do PSD nos seus contactos com o PS e com a troika, que é apontado como o futuro ministro das Finanças de um eventual Governo PSD na situação difícil do país, não conseguir exprimir as suas ideias em público sem recorrer a expressões de calão que em seguida o obrigam a pedir desculpa. Está no facto de Catroga não possuir um domínio de oralidade que lhe permita exprimir a vivacidade dos seus sentimentos sem recorrer a um chavão adolescente. Está no facto de Catroga ter perdido o controlo numa situação infinitamente menos stressante do que será o dia-a-dia de um ministro das Finanças. Está no facto de Catroga ter usado a expressão no meio de uma catilinária sobre o baixo nível da discussão política em Portugal. O problema não é que Catroga seja uma pessoa pouco elegante, é o facto de não ter tento na língua e de dizer o que não quer dizer.

2. O episódio da Sic é apenas um de um rosário de casos que mostram que Catroga já conheceu melhores dias. A dança de posições sobre a descida da Taxa Social Única onde PS e PSD têm sido activos (apenas 1%? descer gradualmente até 4%? 4% de uma vez? 8% de uma vez? 4% mais 4%? 16%? 20%? só para as empresas exportadoras? só para quem contrate? para todas as empresas?) dá-nos mais um desses exemplos. Neste caso, enquanto os dirigentes do PSD garantiam apenas prever uma descida de 4 por cento da TSU, Catroga veio defender 8 por cento. A justificação? Carlos Moedas explicou: quando Catroga avançou essa possibilidade falava “como economista”. Passos Coelho também explicou que Catroga, quando se afastava da linha do PSD, falava “como técnico”. No fundo, uma explicação na linha da que deu Catroga sobre o seu deslize na Sic: neste caso tinha usado uma expressão popular na sua aldeia. Ficámos assim a saber que Catroga fala à televisão na condição de homem da aldeia, que dirigiu o programa do PSD numa condição que não sabemos qual foi mas que não foi a de economista (pois quando fala como tal diz coisas que não são coincidentes com o documento), que defende o fim da taxa intermédia do IVA como técnico mas não como futuro ministro do PSD e, provavelmente, quando revela conversas privadas que o faz na sua condição de reformado e não na de sportinguista. Isto foi o melhor que o PSD encontrou para dar a Passos Coelho a credibilidade que as suas 46 primaveras não lhe garantiam. Alguém se admira por o PS estar à frente nas sondagens? (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, maio 10, 2011

Contra a democracia de cartão

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 10 de Maio de 2011
Crónica 19/2011

Uma conferência de imprensa é um exercício de cidadania, onde alguém aceita ser questionado. Não uma arenga às massas.

Uma conferência de imprensa é algo com uma definição precisa: é um encontro que pode ser convocado por qualquer pessoa, onde essa pessoa convida os jornalistas a comparecer num dado local a uma dada hora e anuncia a sua disponibilidade para responder às suas perguntas, para ser gravada, filmada e fotografada.
Uma conferência de imprensa pode ser precedida (ou não) de uma declaração (improvisada ou lida) da pessoa que a convoca. Pode incluir (ou não) a distribuição de documentação aos jornalistas. Pode limitar (por razões de tempo) o número de perguntas dos jornalistas a que se irá responder - ainda que, neste caso, seja necessário definir uma gestão justa e transparente do tempo, de acordo com os jornalistas presentes.
O que uma conferência de imprensa não pode deixar de ter são perguntas dos jornalistas. Quando uma “conferência de imprensa” não admite perguntas dos jornalistas não é uma conferência de imprensa mas sim uma declaração ou uma arenga às massas.
Nos últimos dias, o número de “CdI sem perguntas” parece ter explodido, com o primeiro-ministro à frente de um extenso pelotão. A moda não é recente nem exclusiva da política - no futebol, a figura também é comum. Mas não é admissível. Não é admissível que se minta (admito que dizer isto no campo da política ou do futebol seja considerado ingénuo) anunciando uma conferência de imprensa que não o é - e que obriga a mobilizar para o local redactores que acabam por ficar limitados à conhecida função de pés-de-microfone. Mas, principalmente, não é admissível porque a democracia exige que os jornalistas questionem os poderes, interpelem os políticos, lhes exijam explicações, justificações, que os confrontem com outras informações, etc. e a aparição numa conferência de imprensa é, muitas vezes, a única oportunidade de interpelar os poderosos. Uma conferência de imprensa sem perguntas fica bem numa ditadura, mas é inadmissível numa democracia. Uma conferência de imprensa é um exercício de cidadania, onde uma pessoa se expõe ao questionamento dos cidadãos e se explica através da intermediação da imprensa.
Repare-se que o PM pode fazer as declarações ao país que quiser. Mas não deve é exigir para os seus tempos de antena uma moldura humana de jornalistas. E, se fizer questão, porque fica bem na televisão, pode sempre contratar figurantes. Ou colocar à sua volta figuras de cartão.
Pelo outro lado, os jornalistas não devem aceitar esta inaceitável limitação do seu direito e dever de informar, esta mordaça institucional que se vai tornando hábito, esta menorização do seu papel social, esta subserviência vergonhosa aos poderes. É por isso de saudar que o Sindicato dos Jornalistas tenha apelado ao boicote das CdI sem perguntas (tinyurl.com/65htfqo) - ainda que não faça sentido o seu excesso de zelo ao propor que nem sequer sejam publicadasas declarações que não possam ser objecto de perguntas”.
O que seria verdadeiramente pedagógico seria que os directores dos órgãos de comunicação assumissem (colectivamente, essa palavra proibida) esta mesma posição em defesa da cidadania, da transparência da política e da dignificação do jornalismo. Será que podemos esperar isso deles? De alguns? De um só?
Da mesma forma, seria louvável que os jornalistas se negassem a continuar a entrevistar aquelas figuras infames que se tornaram conhecidas pelas suas tentativas de manipulação ou de limitação da liberdade de imprensa. Ainda há dias vi na televisão a pouco edificante cena de um jornalista de televisão, num directo, a pedir um comentário ao deputado do PS Ricardo Rodrigues (mais conhecido como “o Ricardo dos Gravadores”), como se tal personagem tivesse algo de credível ou relevante a transmitir ao país.
Não nos martelam nos ouvidos a toda a hora que o país tem de começar a funcionar melhor? Por que não começar pelo jornalismo? Nao tinha imensa graça? (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, maio 03, 2011

Ainda há coisas que se podem fazer

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 3 de Maio de 2011
Crónica 18/2011

A ideia populista de que os ricos devem ser penalizados pelo uso do SNS é o primeiro passo para a sua destruição

Não vivemos um normal tempo de crise, onde sabemos que a normalidade irá acabar por regressar, como o bom tempo depois de uma tempestade. Esta não é uma crise de onde sabemos que sairemos mais fortes, porque teremos sobrevivido e porque teremos aprendido a não repetir os últimos erros. Esta é uma crise onde não só não sabemos para onde vamos, como também não sabemos para onde poderíamos ir. Esta é uma crise da qual ninguém sabe como sairemos, nem sequer se sairemos dela. Esta não é a crise que se vai transformar na finest hour da União Europeia, como desejávamos, mas aquela onde os agiotas reunidos em Londres e em Frankfurt tentam proceder à última fase da lobotomia da civilização, apagando o Estado Social dos programas eleitorais de todos os partidos. Uma questão de realismo, dizem. “Vocês não têm dinheiro para isso”, sussuram-nos ao ouvido. “Nós faremos um melhor serviço a gerir os vossos hospitais, as vossas reformas, os vossos exércitos, as vossas prisões, os vossos partidos”.
Esta crise não é uma batalha perdida, mas uma guerra perdida, onde a única possibilidade é reagrupar as forças no exílio, organizar a resistência clandestina e prepararmo-nos para um longo combate.
Esta crise é o tempo de todos os charlatães e de todas as mentiras, porque haverá sempre algo mais a extorquir dos contribuintes. Que se deixarão espoliar voluntariamente. Porque alguém lhes disse que isso era inevitável. Porque alguém lhes disse que a política era um luxo impossível, que só a economia deve tomar decisões sobre as nossas vidas, que só a desumanidade garante a eficiência e que a desigualdade é a única justiça e a igualdade uma injustiça. Orwell ficaria boquiaberto com a sua presciência.
Mas neste momento em que não sabemos o que pensar, o que propor, há ainda coisas fundamentais que podemos fazer. Como defender o Serviço Nacional de Saúde com unhas e dentes, por exemplo, sem aceitar os argumentos das empresas (e dos seus partidos), que acham que este é um negócio tão ruinoso para o Estado... que preferem ser elas a fornecê-lo.
Numa entrevista recente ao Público, o líder social-democrata Miguel Relvas defendeu que “a filha do homem mais rico de Portugal não pode pagar nove euros por uma consulta num hospital público, pagando o mesmo que a filha de um desempregado”. “Não é justo”, dizia.
Vale a pena reflectir na proposta.
Antes de mais, o sistema é justo porque a família mais rica de Portugal já paga muito mais do que a família do desempregado para o SNS: paga através dos seus impostos (ou pagaria, se todos os partidos quisessem). Por outro lado, se uma taxa moderadora progressiva desincentivar os mais ricos a aceder ao SNS e a escolher serviços privados, o SNS transformar-se-á no “serviço dos pobres”, abrindo a porta a todos os ataques à sua manutenção e melhoria (menos utilizadores, menor pressão social para a sua melhoria, utilizadores mais facilmente silenciados, etc.). De facto, se se pretende um serviço de saúde de qualidade, é fundamental que ele sirva todos em condições de igualdade, ricos e pobres, sem distinção. Só desta forma toda a sociedade se empenhará, colectivamente, na sua defesa.
A ideia populista (aparentemente socialista, mas de facto profundamente reaccionária) de que os ricos devem ser penalizados pelo seu uso dos serviços públicos é o primeiro passo para a destruição desses serviços públicos e para reforçar uma saúde (uma educação, uma...) a duas velocidades: uma privada, de qualidade; uma pública, de subsistência. Os ricos devem ser tratados exactamente como os pobres - nem pior nem melhor - e só assim a defesa do serviço público será uma preocupação de todos. Ao contrário do que pretendem alguns, só a igualdade no acesso promove a qualidade. (jvmalheiros@gmail.com)