sábado, maio 29, 2010

Quem compraria um carro usado ao Zé Povinho?

Texto publicado na Gazeta das Caldas em Junho de 2010

Desde o primeiro momento que as coisas não correram bem. O Zé Povinho não nasceu com a albarda ao lombo mas quase: foram-lhe ao bolso logo à nascença, na primeira vez que Bordalo o desenhou, em 12 de Junho de 1875, em “A Lanterna Mágica”, onde ele não teve mais remédio senão ceder as moedas ao Governo de Fontes Pereira de Melo, coçando a cabeça, sem perceber o que lhe estava a acontecer mas sem lhe passar pela cabeça discutir ou revoltar-se. E as albardas lá viriam, em muitos dos desenhos do seu criador e dos seguidores.

Há quem veja no ar com que recebe as albardas que lhe foram aconchegando ao lombo ao longo dos tempos uma silenciosa crítica sobranceira, uma displicência filosófica ou a iminência de uma revolta, mas não há provas de que elas estejam lá. O Zé tornou-se gozão e começou a fazer manguitos, mas levou sempre com a albarda, sempre lhe meteram a mão ao bolso e nunca percebeu muito bem o que lhe estava a acontecer.

E, aqui para nós, parece sempre demasiado etilizado para ter uma noção muito clara do que se passa. Nem se sabe se percebe quando os impostos são para caminhos de ferro ou para folhos de renda. A sua vingança? Critica os que lhe metem a mão ao bolso, a albarda às costas e o freio na língua, que só lá estão para se encher à sua custa, cambada de madraços, arrivistas, chico-espertos, deputados e ministros, homens de casaca e de ar grave, sempre a mamar na Grande Porca.

Critica e goza, mas o traço do caricaturista e os dedos do ceramista não lhe deram graça nem espírito. Não há um lampejo, um sonho, um arroubo, uma boa tirada que seja. Vive embasbacado. O que lhe sai da boca é um gemido e do braço um manguito. Às vezes faz um sorriso que parece dizer-nos que ele sabe que nós sabemos que ele sabe que nós sabemos, mas será que essa centelha estará lá? Não há poesia nem dignidade nesta figura que a sobranceria burguesa nos quis convencer que era o retrato da alma popular portuguesa.

O Zé Povinho alomba com o que lhe cai em cima. Não faz nada mas tudo lhe acontece e são desgraças em geral. No fim, ele perde. Mas nem sabemos se o devemos lamentar porque não sabemos o que representa. Os poderosos são uns crápulas mas será que ele é melhor, com o seu ar malandro e dissimulado? Será isto o povo? Vive de quê? De trabalho honesto ou de esperteza saloia? Há uma bandeira que transluz no pano cru rasgado da camisa? Ou tem libras de ouro no lugar dos botões? Gostamos dele com superioridade mas, se fosse de carne e osso, teríamos vergonha de o apresentar aos amigos. Quem lhe compraria um carro usado?

Não tem a bonomia satisfeita de John Bull, nem a seriedade determinada do Tio Sam, nem o ardor apaixonado de Marianne, nem o idealismo de D. Quixote e, se se aproxima de Sancho Pança na figura, não tem o seu eficaz sentido prático. O Zé Povinho é maltratado, queixa-se dos poderosos e sabemos que os despreza. O que não sabemos é o que quer e suspeitamos que não sonha com nada a não ser com o dia em que o deixarão em paz. O que sabemos é que nós não somos o Zé Povinho. Se o Zé Povinho são os portugueses, são os outros. Nós? Nós somos o Bordalo!

José Vítor Malheiros

quarta-feira, maio 26, 2010

O colarinho branco e a canja da ralé

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 26 de Maio de 2010
Crónica 20/2010

Quiseram aplicar a um homem como Ricardo Rodrigues os mesmos princípios éticos que aos outros deputados

1. Quando alguém mete ao bolso uma coisa que não lhe pertence dizemos que a roubou. Mas há justificações para meter coisas ao bolso. E diferentes nomes para usar nas várias circunstâncias, conforme o estatuto social e político dos autores. Uma senhora bem vestida que meta na carteira um perfume, numa loja elegante, distraiu-se – e um engano toda a gente tem. Uma mulher que o faça num supermercado suburbano comete um furto que a sociedade não pode permitir. Esta é a base da sociedade e querer subvertê-la é fomentar o caos e a anarquia. E o sistema judicial existe para garantir a sua subsistência.

Quando um deputado rouba alguma coisa também não se trata exactamente de roubo-roubo, como se fosse um maltrapilho qualquer. Pode dizer-se que o deputado se apropriou, tirou ou “roubou” e “furtou”, mas entre aspas.

Quando o deputado do PS Ricardo Rodrigues roubou dois gravadores a dois jornalistas fê-lo com um hábil golpe de mão, como se nunca tivesse feito outra coisa na vida, mas esclareceu que tinha “tomado posse” deles, como teria feito se se tratasse de um cargo oficial. A hierarquia do partido compreendeu aliás o seu gesto e desculpou-o, pois foi provocado pela “violência psicológica insuportável” a que foi submetido pelos jornalistas que o entrevistavam.

Ricardo Rodrigues não roubou os gravadores para os vender na Feira da Ladra e sacar vinte euros para comprar umas ganzas. Isso seria escandaloso. Fê-lo apenas para ver se impedia a publicação de uma entrevista que abordava temas que não lhe convinham. Tratou-se de um pequeníssimo atropelo à liberdade de imprensa e de informação, mas do mais puro colarinho branco. Não é furto, mas apenas um acto irreflectido, compreensível, já esquecido. E o seu passado não é para aqui chamado porque não é disso que estamos a falar. Nem o facto de o deputado ter mentido ao Parlamento, à imprensa e ao país sobre o que fez aos gravadores. Querer que um homem como Ricardo Rodrigues obedeça aos mesmos princípios éticos que os outros deputados é uma afronta. Francisco Assis disse-o melhor que ninguém: ninguém pode julgar Ricardo Rodrigues.

2. As medidas de contenção das prestações sociais recentemente apresentadas pelo Governo no âmbito do PEC têm de ser lidas à luz da mesma lógica, que distribui direitos e deveres de acordo com os méritos das pessoas: seria impensável pedir a pessoas de posses, a pessoas de qualidade, a pessoas daquelas de que o país não pode prescindir, que pagassem a crise provocada pelos actos de contabilidade criativa que os corretores e os banqueiros fizeram nos últimos anos e pelos buracos orçamentais criados para colmatar os défices dos bancos. Como o seria combater a fuga de capitais para os paraísos fiscais, ou a fuga ao fisco de pessoas que não sejam trabalhadores por conta de outrem. Tratar-se-ia de uma violência psicológica insuportável.

Os pobres já estão habituados a poupar e a apertar o cinto e quase não vão notar a diferença. Os ricos não o sabem fazer. Fá-lo-iam mal. Os desempregados, os recipientes do rendimento mínimo, os trabalhadores precários são peritos na arte de rapar o tacho. Fazem-no há anos, há gerações, há séculos. E atingiram uma eficiência que um banqueiro nunca conseguiria. E, em alturas de crise, temos de apostar na eficiência, temos de entregar a cada um as tarefas que melhor desempenham. Alguém pensa que um gestor de uma grande empresa poderia viver com 1000 euros? Nem vale a pena tentar. Um pobre consegue alimentar uma família de seis com 800 euros. Sabe fazer canja de miúdos de frango e um guisado com um osso de vaca, sabe quais são os medicamentos da receita que não precisa de aviar, conhece as lojas onde pode comprar sapatos e sabe remendar a roupa. Ninguém o faz tão bem como os pobres. É o talento da ralé. Por que se há-de tentar que sejam os ricos a pagar mais impostos e a gastar menos? (jvmalheiros@gmail.com)

quarta-feira, maio 12, 2010

As nove virtudes teologais

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 12 de Maio de 2010
Crónica 19/2010

Isto não é uma campanha de publicidade para pasta de dentes. Isto tem de ser mesmo verdade

Confesso que não percebo a campanha “Foi o Pai que me ensinou”, que está por todas as ruas para comemorar a visita papal. Sei que este Pai se escreve com maiúscula porque foi assim que a Agência Ecclesia escreveu no despacho que anunciava a campanha. Pelos mupis e pelos cartazes não se pode saber porque está tudo em maiúsculas.
As notícias que li sobre a campanha falavam do slogan como se fosse a coisa mais evidente do mundo e não explicavam que pai era aquele. Imagino que alguns dos jornalistas que estiveram na conferência de imprensa onde a campanha foi apresentada eram católicos praticantes e perceberam logo tudo e que os outros tiveram vergonha de perguntar para não lhes chamarem ateus, mas a verdade é que eu não sei de que pai estão a falar.
Do Pai Eterno? Do pai, daquele que não costuma precisar de maiúscula? Do pai espiritual? Do Papa?
Se é do Pai Eterno, é inquestionável que foi ele que ensinou tudo isto não só aos nove protagonistas da campanha, mas também a todos nós, porque também criou todas as aves do céu e todos os peixes do mar, mas será mesmo ele? E se fosse ele porque é que fariam esta campanha para a visita do Papa? Será uma homenagem aos pais, tipo Dia do Pai católico, para sublinhar a importância das figuras tutelares masculinas no ensinamento da virtude, para contrabalançar um pouco os escândalos da pedofilia? Uma campanha pelo pai espiritual não parece ser, porque a figura está em desuso.
É provável que seja o Papa, porque a campanha foi concebida como uma homenagem prestada ao ilustre visitante e porque sei que os verbos que a compõem (“Partilhar foi o Pai que me ensinou”, Amar, Rezar, Acreditar, Confiar, Esperar, Perdoar, Escutar e Festejar) foram extraídos dos textos de Bento XVI, mas tive as minhas dúvidas, porque me pareceu algo excessivo. Será que oPapa  teve de facto esta influência naquelas nove pessoas que dão a cara pela campanha? Tanto quanto sei (a campanha tê-lo-ia dito) nenhuma destas pessoas privou com o Papa. Foi Bento XVI que ensinou aquele simpático casal de namorados a amar? Foi ele que ensinou aquela senhora a partilhar? E aquele jovem a confiar? E os outros todos? Apenas pelo seu exemplo à distância e pelos seus escritos e pelos seus sermões? Que lindo!
Ou será uma confusão propositada entre Deus e o Papa, para não sabermos muito bem de que Pai se fala, uma jogada de “culto da personalidade”, um “desvio”, como se diria se fosse na política?
O problema é aquele pronome, aquele “que”, que indica este pai como o responsável, o único responsável pela aprendizagem de todas estas coisas tão importantes. Não terá havido mais alguém que tenha ensinado estas pessoas a confiar e a escutar e a partilhar? Não terá havido um pai? Um daqueles pais normais, sem maiúscula? E não terá havido uma mãe, também normal, também sem maiúscula? E não terá havido um amigo, uma namorada, um professor, um marido, um desconhecido, um livro, um poema, um olhar, uma paisagem, um quarteto de Brahms, uma Vista de Delft? Tudo isso junto? Foi mesmo o Papa que? Deve ter sido, porque isto não é publicidade para pasta de dentes, isto tem de ser mesmo verdade.
Ou terá sido um descuido? Alguém que deixou cair um acento no Papa e o transformou em papá?
Se o Papa tivesse só ajudado a ensinar e tivesse deixado lugar para os lírios do campo ensinarem alguma coisa, era mais plausível, mas assim... se foi o Papa que, é mais difícil.
Se alguém me garantisse que foi o seu pai que o ensinou a fazer o nó da gravata e mais ninguém, isso parecer-me-ia credível. Mas para as outras coisas em geral há mais pessoas a contribuir. E livros e tal. Mas se este é o Papa, não será que um pai de letra pequena se poderá entristecer de ver chamar pai a outro? Ou será que estão mesmo a falar do pai de letra pequena?
Claro, deve ser isso! E a razão por que se faz esta campanha de glorificação do pai é porque... porque... não consigo lembrar-me de nenhuma razão especial para fazer isso com o pai e não fazer a mesma coisa com a mãe, mas pode ser que isto esteja nos planos da Igreja para os próximos dias. É isso com certeza. É isso. Estou ansioso por descobrir o que é que a mãe ensinou. (jvmalheiros@gmail.com)

quarta-feira, maio 05, 2010

O maravilhoso mundo do PowerPoint

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 5 de Maio de 2010
Crónica 18/2010
 
O programa da Microsoft é óptimo para apresentar listas. O problema é que, na vida, nem tudo são listas

Na semana passada, o New York Times publicou um esquema que representava a estratégia americana no Afeganistão. O desenho, que fazia parte de uma apresentação feita aos líderes militares ocidentais no país, e que já tinha sido revelado pelo correspondente da NBC em Cabul no final do ano passado, representa as várias forças no terreno e todos os factores que interferem na situação política e militar. Tudo aquilo é depois ligado por um emaranhado de setas que, em teoria, mostra a relação entre todos os intervenientes e torna evidente o que se passa e o que se pretende (http://msnbcmedia.msn.com/i/MSNBC/ Components/Photo/2009/December/091202/091203-engelbig- 9a.jpg).
A imagem é incompreensível. “Quando conseguirmos perceber este diapositivo, vamos ganhar a guerra”, foi o comentário do general Stanley A. McChrystal, líder das forças da NATO no Afeganistão, citado pelo NYT.

O esquema, que foi comparado a um prato de esparguete, é apenas um dos muitos exemplos da praga chamada PowerPoint, um programa de gestão de apresentações da Microsoft que há anos vem poluindo o mundo político e científico, as apresentações públicas e as nossas escolas com o que de pior o marketing tem para mostrar.
As limitações do PowerPoint são conhecidas há muito.

O seu maior crítico é o designer Edward R. Tufte, que, em 2006, publicou o fascinante e demolidor The cognitive style of PowerPoint, que se debruça nomeadamente sobre a responsabilidade do uso do PowerPoint na explosão do vaivém Columbia em 2003. Mas a ferramenta continua a ser cada vez mais usada e a espalhar o seu veneno pelos auditórios de todo o mundo.

É verdade que a responsabilidade de tudo isto não é do PowerPoint em si mas do uso que as pessoas fazem dele. É possível fazer um bom uso do programa e todos nós já tivemos oportunidades de o constatar. Só que o PowerPoint e os seus templates convidam os utilizadores a fazer apresentações onde a racionalidade está rarefeita e cujo único fito parece ser hipnotizar audiências. Um dos vícios mais perniciosos que o PowerPoint generalizou foi a utilização de listas de itens com bullets – aquelas bolinhas pretas que aparecem à frente das frases. Eu adoro listas.

Só que as listas têm um problema: são óptimas para levar para o supermercado mas não são o melhor método para apresentar uma argumentação complexa. E é isso que o PowerPoint tem tendência a fazer: suprime a argumentação em favor de listas de tópicos, põe todos os argumentos ao mesmo nível, apaga o contexto que dá sentido a um raciocínio, faz desaparecer as dúvidas e as interrogações, reduz uma situação complexa a um esquema incompreensível e, o que é o pior de tudo, dá-nos a ilusão de que as coisas são mais claras do que são de facto, estimulando o uso de sound bites em vez de argumentação e de imagens em vez de discurso. Tufte dizia que o programa sacrifica o conteúdo à forma e transforma uma sessão de informação numa sessão de vendas e os apresentadores em publicitários.

Um dos militares citado pelo NYT é mais directo: “O PowerPoint torna-nos estúpidos”.
Há tantos problemas à volta do uso do PowerPoint que esta página seria pequena só para fazer a lista (e uma lista, mesmo com bullets, não serviria para muito) mas fiquemo-nos por dois dos mais terríveis: de ferramenta de apresentação, o PowerPoint está a passar a ferramenta de comunicação em geral e é usado, por exemplo, para transmitir ordens no meio militar. O problema? As ordens parecem claras, mas não são. Outro problema: o PowerPoint está a transformar-se na ferramenta de escolha para apresentação de trabalhos escolares, com as suas listas de tópicos e belas imagens a substituir o velho texto onde se podia descascar uma ideia, explicar coisas detalhadamente e até (como dizer?) reflectir em voz alta. (jvmalheiros@gmail.com)