Texto publicado na Gazeta das Caldas em Junho de 2010
Desde o primeiro momento que as coisas não correram bem. O Zé Povinho não nasceu com a albarda ao lombo mas quase: foram-lhe ao bolso logo à nascença, na primeira vez que Bordalo o desenhou, em 12 de Junho de 1875, em “A Lanterna Mágica”, onde ele não teve mais remédio senão ceder as moedas ao Governo de Fontes Pereira de Melo, coçando a cabeça, sem perceber o que lhe estava a acontecer mas sem lhe passar pela cabeça discutir ou revoltar-se. E as albardas lá viriam, em muitos dos desenhos do seu criador e dos seguidores.
Desde o primeiro momento que as coisas não correram bem. O Zé Povinho não nasceu com a albarda ao lombo mas quase: foram-lhe ao bolso logo à nascença, na primeira vez que Bordalo o desenhou, em 12 de Junho de 1875, em “A Lanterna Mágica”, onde ele não teve mais remédio senão ceder as moedas ao Governo de Fontes Pereira de Melo, coçando a cabeça, sem perceber o que lhe estava a acontecer mas sem lhe passar pela cabeça discutir ou revoltar-se. E as albardas lá viriam, em muitos dos desenhos do seu criador e dos seguidores.
Há quem veja no ar com que recebe as albardas que lhe foram aconchegando ao lombo ao longo dos tempos uma silenciosa crítica sobranceira, uma displicência filosófica ou a iminência de uma revolta, mas não há provas de que elas estejam lá. O Zé tornou-se gozão e começou a fazer manguitos, mas levou sempre com a albarda, sempre lhe meteram a mão ao bolso e nunca percebeu muito bem o que lhe estava a acontecer.
E, aqui para nós, parece sempre demasiado etilizado para ter uma noção muito clara do que se passa. Nem se sabe se percebe quando os impostos são para caminhos de ferro ou para folhos de renda. A sua vingança? Critica os que lhe metem a mão ao bolso, a albarda às costas e o freio na língua, que só lá estão para se encher à sua custa, cambada de madraços, arrivistas, chico-espertos, deputados e ministros, homens de casaca e de ar grave, sempre a mamar na Grande Porca.
Critica e goza, mas o traço do caricaturista e os dedos do ceramista não lhe deram graça nem espírito. Não há um lampejo, um sonho, um arroubo, uma boa tirada que seja. Vive embasbacado. O que lhe sai da boca é um gemido e do braço um manguito. Às vezes faz um sorriso que parece dizer-nos que ele sabe que nós sabemos que ele sabe que nós sabemos, mas será que essa centelha estará lá? Não há poesia nem dignidade nesta figura que a sobranceria burguesa nos quis convencer que era o retrato da alma popular portuguesa.
O Zé Povinho alomba com o que lhe cai em cima. Não faz nada mas tudo lhe acontece e são desgraças em geral. No fim, ele perde. Mas nem sabemos se o devemos lamentar porque não sabemos o que representa. Os poderosos são uns crápulas mas será que ele é melhor, com o seu ar malandro e dissimulado? Será isto o povo? Vive de quê? De trabalho honesto ou de esperteza saloia? Há uma bandeira que transluz no pano cru rasgado da camisa? Ou tem libras de ouro no lugar dos botões? Gostamos dele com superioridade mas, se fosse de carne e osso, teríamos vergonha de o apresentar aos amigos. Quem lhe compraria um carro usado?
Não tem a bonomia satisfeita de John Bull, nem a seriedade determinada do Tio Sam, nem o ardor apaixonado de Marianne, nem o idealismo de D. Quixote e, se se aproxima de Sancho Pança na figura, não tem o seu eficaz sentido prático. O Zé Povinho é maltratado, queixa-se dos poderosos e sabemos que os despreza. O que não sabemos é o que quer e suspeitamos que não sonha com nada a não ser com o dia em que o deixarão em paz. O que sabemos é que nós não somos o Zé Povinho. Se o Zé Povinho são os portugueses, são os outros. Nós? Nós somos o Bordalo!
José Vítor Malheiros
Não tem a bonomia satisfeita de John Bull, nem a seriedade determinada do Tio Sam, nem o ardor apaixonado de Marianne, nem o idealismo de D. Quixote e, se se aproxima de Sancho Pança na figura, não tem o seu eficaz sentido prático. O Zé Povinho é maltratado, queixa-se dos poderosos e sabemos que os despreza. O que não sabemos é o que quer e suspeitamos que não sonha com nada a não ser com o dia em que o deixarão em paz. O que sabemos é que nós não somos o Zé Povinho. Se o Zé Povinho são os portugueses, são os outros. Nós? Nós somos o Bordalo!
José Vítor Malheiros
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