terça-feira, setembro 01, 2015

Um mundo de coisas a esconder - Artigo publicado no número 1 da revista da CNPD - Julho 2015

por José Vítor Malheiros

Artigo publicado no número 1 da revista da CNPD - Comissão Nacional de Protecção de Dados - Julho 2015


“Se quiserem vasculhar a minha vida que vasculhem! Não tenho nada a esconder!”
É um argumento que ouvimos muitas vezes, em tom displicente, às vezes dito
com orgulho ou mesmo em modo de desafio. No entanto, penso que é uma das posições mais lesivas da liberdade pessoal que existe nas nossas sociedades modernas, crescentemente vigiadas.
É um argumento que fragiliza mais ainda os mais fracos (os vigiados ou potencialmente vigiados), que reforça mais os poderes dos mais fortes (os que vigiam ou que podem vigiar) porque lhes garante total liberdade de acção, que apresenta como alienável um direito que é de facto inalienável, que compromete mais o nosso futuro, que põe em causa o nosso direito a viver a nossa vida como queremos, sem ser submetido ao escrutínio permanente dos nossos pares, dos nossos chefes, de todos aqueles que queiram submeter-nos e reduzir a nossa liberdade.
Porquê? Porque transforma a defesa de um direito fundamental numa suspeita, numa acusação, quase num crime, invertendo totalmente os valores em causa. Porque transforma a defesa de um direito numa infâmia. Porque insinua que quem protege a sua vida da devassa de outros, dos vizinhos, das empresas, dos patrões, das polícias, do Estado, dos sites da Internet, o faz porque comete ou cometeu actos inconfessáveis, ilegais, ilícitos, vergonhosos. Porque é uma posição que não compromete apenas aquele que a enuncia, mas contribui para definir um padrão social que irá limitar a liberdade de todos os outros.
Numa sociedade democrática (e não preciso de dizer democrática liberal porque a liberdade é condição da democracia, tem de estar na sua base, sem o que não há democracia) as pessoas têm direito a reservar a sua vida, diferentes aspectos da sua vida (aqueles que queiram, à la carte), do escrutínio de outros (aqueles que queiram, à la carte).


Não é só a intimidade


É costume falarmos da “reserva da vida privada” e a Constituição da República Portuguesa defende o direito (artigo 26º) “à reserva da intimidade da vida privada e familiar”, mas não se trata apenas da “vida privada e familiar”.
Para além deste sanctum sanctorum da nossa identidade, cuja devassa poucos hesitam em condenar, há inúmeros aspectos da nossa vida que, não sendo estritamente privados nem familiares, não nos importamos de revelar a uns mas queremos proteger do conhecimento de outros.
Uma pessoa pode frequentar aulas de ballet e, ainda que isso seja do domínio público no clube onde frequenta as aulas, que até podem ter assistência, pode querer manter isso em segredo dos seus colegas de trabalho. Outra pessoa pode querer manter em segredo de certas pessoas o seu emprego, porque o considera por alguma razão embaraçoso, mas este pode ser do domínio público num outro contexto. E a divulgação dessas informações no contexto errado poderia constituir uma violência imensa para a pessoa em causa, fonte de sofrimento, de culpa, vergonha, de possível coacção ou extorsão.
Todos conhecemos exemplos semelhantes e - mais significativamente - todos protegemos certas informações “não íntimas”,  “não privadas” e “não familiares” dos olhos de certas pessoas. Não porque sejam crimes ou sequer pecados, mas porque queremos moldar a persona que mostramos às pessoas com quem nos relacionamos. E temos esse direito. Todos mostramos diferentes personagens, diferentes personas, diferentes facetas a diferentes grupos e a diferentes pessoas. Não porque as queremos enganar, mas porque, tratando-se de pessoas diferentes, as tratamos como pessoas diferentes. Alguém conta as mesmas anedotas aos colegas da tropa e aos sogros? Alguém apresentará a mesma atitude nas reuniões do trabalho e quando fala ao namorado da filha? Será isso hipocrisia? Será isso um pecado? Ou será apenas o direito a exercermos a nossa liberdade de sermos diferentes conforme a circunstância, o interlocutor, o momento, o nosso objectivo nesse momento e a nossa história?


Os graus de cinzento e o contexto


A questão é que não existem de um lado dados que não nos importamos de revelar (públicos) e do outro lado dados que queremos preservar da observação dos outros (privados). A distinção não é tão clara e muito menos binária. Não é por acaso que discriminamos: dados familiares, pessoais, privados, íntimos. Informação sobre a nossa situação bancária, saúde, vida amorosa, sexualidade, sonhos. Existe um longo continuum entre estes dois mundos, público e privado, plenos de matizes e ramificações, de cinzentos infinitesimamente mais escuros ou mais claros.
E, para tornar tudo mais complexo, para cada informação não existe apenas o contexto de onde ela é originária, o contexto onde essa informação foi recolhida, o seu mundo de origem (saúde, finanças) mas o contexto em que ela é difundida, que muda tudo. Há informações absolutamente privadas num dado contexto, que constituiriam uma violência para a pessoa se fossem tornadas públicas nesse contexto, e que são partilhadas abertamente noutro grupo. A informação mais íntima, uma informação sobre a nossa saúde, sobre uma doença que nos aflige, que mantemos secreta do mundo, no nosso emprego, que podemos esconder até da nossa família e dos nossos amigos, pode ser partilhada num grupo de entre-ajuda de doentes, entre pessoas quase desconhecidas. A relação que mantemos com estas pessoas e com a nossa família é diferente e a faceta que queremos mostrar-lhes também.
Teremos esse direito? O direito de modular a informação sobre nós que permitimos que os outros consultem, que permitimos que os outros vejam? Penso que sim. Penso mesmo que essa deve ser a regra e que todas as invasões da nossa vida privada e todas as divulgações de dados pessoais devem ser as excepções, cuidadosamente e criteriosamente decididas. Felizmente, também a lei e a CNPD pensam, em geral, assim. E isso porque a relação de poder que temos com as diferentes pessoas com quem nos relacionamos é diferente. Há informação que receamos que possa ser, de alguma forma, usada contra nós num dado contexto e que não temos razão para recear difundir noutro contexto.
Colher informação num dado contexto e transplantá-la para outro - ou colher toda a informação que disponibilizamos voluntariamente “publicamente” nos vários contextos e disponibilizá-la em todos os outros contextos seria uma enorme violência. Seria literalmente despir a pessoa da sua persona e obrigá-la a exibir-se sem a roupa que escolheu para a sua vida social nos diferentes grupos a que pertence, nos diferentes mundos que frequenta.


Expectativa de privacidade


É por isso que, apesar de estarmos em público quando andamos numa rua, não é necessariamente aceitável, por esse simples facto, filmar as pessoas que passem nessa rua e muito menos divulgar essa informação publicamente.
Mesmo nos casos onde essa informação é recolhida - e deve haver um exigente escrutínio das razões para tal, dos benefícios dessa recolha e dos prejuízos possíveis - ela deve ser protegida tanto quanto possível, limitando as imagens colhidas, o tempo de arquivo e os acessos permitidos. E isto porque as pessoas têm, apesar de tudo, uma expectativa de relativa privacidade mesmo quando andam numa rua. A relativa privacidade que lhes é garantida pelo anonimato da cidade, da multidão, da hora de ponta, do lusco-fusco ou o que for e pelo facto de estar aqui e não estar ali (ou seja: de ter a expectativa de poder estar, eventualmente, a fornecer informação sobre a sua localização a um determinado grupo de pessoas, as que se encontram na mesma rua, mas não ao mundo inteiro).
Se disséssemos a alguém que, sempre que passasse pela rua X, essa informação seria transmitida a todos os elementos da sua rede social, a toda a gente que a conhece ou conheceu, é provável que essa pessoa preferisse escolher outro trajecto. Não porque tencione fazer algo condenável na rua X, mas porque prefere não estar sob o foco da atenção alheia de milhares de pessoas. E tem esse direito. O direito ao anonimato, o direito a ser deixada em paz.


O segredo é condição de liberdade


A questão é que, quando estamos a ser escrutinados, observados, vigiados, não gozamos da mesma liberdade que quando nos julgamos fora do alcance da observação alheia. Agimos de maneira mais livre quando não somos vigiados, de maneira mais de acordo com o nossa verdadeira vontade, sem receio de críticas, admoestações, condenações, reparos, registo para eventual uso futuro. É por isso que o voto democrático é o voto secreto, o que podemos fazer sem que ninguém nos veja. É por isso que nos sentimos tão incomodados quando alguém espreita pelo buraco da fechadura, violando uma regra social que não parece muito relevante mas é, para todos, preciosa.
A verdade é que somos seres sociais mas somos, também, seres privados, indivíduos com uma mente secreta só nossa e esse espaço virtual de absoluta liberdade é essencial para sermos quem somos. Precisamos desse recato, da certeza de não estarmos a ser observados, para levar a cabo aquele diálogo connosco mesmos que define o nosso eu, os nossos pensamentos, que estrutura os nossos actos, que nos dá a coerência com o nossa história e as nossas ideias. Que escritor conseguiria escrever com alguém a espreitar por cima do seu ombro? Que compositor conseguiria compor? Quem conseguiria criar submetido a um escrutínio constante, a uma observação constante, por discreta e por benevolente que ela fosse? E isso não acontece porque se trate de obras secretas - o escritor e o compositor escrevem para o mundo - mas o momento da criação exige absoluta liberdade e a liberdade exige ausência de escrutínio, de observação alheia, respeito.


Os novos velhos problemas da Internet


Transplantar a informação pessoal de um contexto para outro, de um tempo para outro, de um grupo para outro, foi algo que a Internet tornou constante. Porque a informação que se partilha nas redes sociais online é informação pessoal (quem sou, onde nasci, com quem namoro, como se chama o meu pai, onde passo férias, de que música gosto, onde estou neste momento e com quem e porquê) e porque toda essa informação, colhida em diferentes momentos, na companhia de diferentes pessoas, em diferentes contextos, é depois colocada num mesmo espaço onde fica para sempre, à mercê dos futuros utilizadores que não sabemos quem serão. É assim que o nosso patrão acede às fotografias da bebedeira que apanhámos em Porto Covo e fica a saber em que partido votámos nas últimas (e provavelmente também nas próximas) eleições. É assim que uma pessoa minimamente interessada que se dê ao trabalho fica a saber praticamente tudo sobre nós, esse conjunto de informações “públicas” que, devidamente articuladas, fazem um detalhadíssimo “retrato privado” da nossa vida.
É o que se chama o problema da “big data” e do respectivo “data mining”, que coloca nas mãos de não sabemos quem, mais informações do que gostaríamos de lhes ter dado. Alterações no padrão do nosso comportamento (das compras que fazemos no supermercado, por exemplo) permitem a uma entidade com um software sofisticado e acesso aos dados (o nosso supermercado, por exemplo) saber algo que nem sequer contámos a ninguém: que estamos doentes, que estamos a fazer dieta, que estamos com problemas de dinheiro e talvez desempregados, que estamos apaixonados, que vamos ter um filho.
Há inúmeros problemas de privacidade nascidos com a Internet. Outro consiste no facto de que a maior parte dos utilizadores continua a pensar que a informação que disponibiliza (aos sites onde se inscreveu ou a outros utilizadores) apenas é vista pelo seu reduzido e simpático grupo de amigos. Sabem que não é assim, mas querem acreditar que é assim. Afinal, não têm nada a esconder, pois não?
Outro é o facto de que a maior parte dos utilizadores continua a pensar que a informação que disponibiliza na Internet desaparece no dia seguinte porque não está na última página do Face. Sabem que não é assim, mas querem acreditar que é assim.
E outro, maior, é o desaparecimento do tal contexto. Em vez de termos o grupo dos colegas, dos amigos do coração, das colegas do liceu, da malta da tropa, do grupo do judo, das amigas da avó, dos colegas da faculdade, que existem no mundo em diferentes mundos, a quilómetros de distância, a horas diferentes, a Internet é um único contexto, onde a avó sabe que patuscadas combinamos e o antigo namorado sabe que mudámos de emprego. Na Internet verifica-se o que chamo o flattening de todos os universos onde existimos - todos passam a ser apenas um. Todos se encontram no mesmo Facebook e o Twitter guarda as mensagens da noite para mostrar no dia seguinte a quem estava a dormir. O mesmo Facebook, o mesmo Twitter.


Velho problema, novas soluções


Não é um enorme problema, mas obriga a uma nova aprendizagem por parte dos utilizadores. Uma aprendizagem que ainda não amadureceu e que, provavelmente, só vai emergir depois de algum sofrimento, como o caso de Justine Sacco, a directora de comunicação de uma grande empresa que descobriu, ao aterrar no país onde ia passar férias, que tinha sido despedida durante o voo por causa de um tweet que tinha enviado antes de o avião descolar e que o seu chefe considerou racista - assim como muitos milhares de pessoas que o difundiram pela rede, tornando a sua vida um inferno nos anos seguintes.
A Internet torna mais difícil compartimentar a nossa vida, como fazemos IRL (in real life). É fácil dizer, como dizem muitos (Scott McNealy, CEO da Sun; Mark Zuckerberg, CEO do Facebook) que a privacidade morreu e tudo o que temos a fazer é adaptarmo-nos a isso.
Não penso assim. É evidente que a Internet e as redes socias e a descoberta do valor comercial de certos dados (a nossa lista de compras) nos pressionaram a partilhar/difundir/desproteger muita informação, que hoje oferecemos sem pudor. É verdade que a tecnologia disponível permite hoje conhecer quase tudo sobre os cidadãos. É verdade que podemos saber muitas coisas uns sobre os outros que antes era difícil saber e que as empresas e outros poderes podem saber muito mais, quase tudo, com a possível excepção do que nos passa pela cabeça. Habituámo-nos a um certo grau de nudez, maior do que antes. Aquilo que queremos reservar mudou. Há trade-offs que estamos dispostos a fazer. Aquilo a que chamamos “vida privada” não é a mesma coisa a que chamávamos “vida privada” há vinte anos, tal como deixou de ser atrevido mostrar as pernas, mas a protecção da vida privada como conceito não perdeu actualidade, pelo contrário. É o direito a reservar aquilo que queremos reservar do escrutínio público. E aqui quem decide tem de continuar a ser a lei democrática, como tradução da moral, e não as possibilidades da tecnologia. Nem tudo o que é possível é desejável. Nem tudo o que é possível deve ser permitido. A vida privada tornou-se apenas um jardim mais difícil de cuidar. Mas é aí que está o cerne da nossa humanidade.


José Vítor Malheiros
Julho 2015