terça-feira, agosto 10, 2004

Beba mais um copo

Por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 10 de Agosto de 2004
Crónica 30/2004


Temos a sorte de a ideia ter surgido numa altura em que ao volante do país está alguém que não hesita em carregar no acelerador.

A ideia vem da Grã-Bretanha e tem a virtude de ser uma solução imaginativa e eficaz a baixo custo. A descoberta foi feita por acaso, como aconteceu com tantas outras revoluções científicas, mas isso não lhe deve retirar o brilho.

O facto conta-se em duas palavras: a Environment Agency do Reino Unido constatou que a água potável que os britânicos andam a beber contém pequenas quantidades de Prozac, a famosa droga anti-depressiva. Aparentemente, isso deve-se ao facto de o consumo da droga estar a aumentar de forma acentuada e de os seus utilizadores excretarem parte do medicamento sem este ser metabolizado. Essas moléculas vão dar aos esgotos e, depois de passarem pelas estações de tratamento, tornam a entrar no sistema hídrico, a partir de onde reentram no sistema de recolha e distribuição de água a domicílio, para chegar às torneiras. O tratamento dos esgotos deveria eliminar todos os resíduos de Prozac, mas não é isso que acontece. Segundo a Inspecção da Água Potável do Reino Unido (Drinking Water Inspectorate) a quantidade de Prozac presente na água é por enquanto demasiado pequena para fazer efeito. Porém, considerando que os anti-depressivos são um dos grupos de medicamentos onde o consumo mais cresce (no Reino Unido e em Portugal), é evidente que a concentração irá crescer. A própria Environment Agency mostra-se preocupada com o facto pois, se a quantidade ingerida é pequena, a verdade é que a administração é contínua e ninguém sabe quais poderão ser os efeitos. Os Democratas Liberais dizem que se trata de uma “administração maciça e encoberta de medicamentos” à população e os ambientalistas também entraram em histeria (sinal de que não estarão a beber água suficiente), mas onde tantos vêem razões para alarme não há motivo para nós não vislumbrarmos uma oportunidade.

Desde há décadas que a água de consumo público e os alimentos têm sido utilizados para administrar de forma generalizada substâncias de que uma dada população carece. Os casos mais conhecidos são os do flúor, adicionado à água para combater as cáries, ou o iodo, adicionado ao sal para combater o hipertiroidismo nas regiões onde este é endémico, para não falar dos suplementos revitalizantes administrados nas rações de combate dos soldados americanos. Ora se isto é assim, por que não começar a adicionar Prozac na água da rede portuguesa? Não estamos todos deprimidos, os nossos neurónios não estarão carentes de serotonina como de pão para a boca, tanto ou mais do que os dos ingleses? A medida poderia fazer hesitar políticos mais convencionais mas temos a sorte (quem sabe se não mais uma feliz intervenção de Nossa Senhora) de a ideia ter surgido numa altura em que ao volante do país está alguém que não hesita em carregar no acelerador e que não permite que a sua energia seja sorvida pelo vórtice estéril da reflexão. O momento de avançar é agora, tanto mais que os próprios peritos não sabem se existe ou não alguma contra indicação. Haverá algum mal em dar um pouco de descontracção aos portugueses, em deixá-los usufruir de um pouco de felicidade, pelo menos nestes meses de férias? O custo pode ser negligenciável se se usarem genéricos e deve ser tomado em conta que, a partir de um certo teor de Prozac na água (massa crítica) o círculo virtuoso se pode alimentar a si próprio numa reacção em cadeia. Podemos ser felizes! E não há razão para ficar por aqui. Porque não juntar um pouco de Viagra no cocktail para tornar as nossas conversas mais animadas? E porque não um pouco de nandrolona para dar um pouco de cabedal? Reparem que não sugerimos o recurso a substâncias ilegais (a nandrolona é apenas proibida aos atletas), mas apenas a medicamentos aprovados pelo Infarmed.

Porque é que o Governo não usa o seu poder para aumentar a felicidade dos portugueses da única forma que sabe? É que disto nós sabemos que o nosso Governo é capaz e não há razão para colocar a nossa felicidade num objectivo inatingível como o desenvolvimento ou a justiça social – noções aliás cuja simples definição pode gerar os conflitos mais violentos. Sobre o Prozac estamos todos de acordo.

terça-feira, agosto 03, 2004

A política pimba

Por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Agosto de 2004
Crónica 29/2004

O estilo de Santana Lopes é descontraído e isso é percebido pelos cidadãos como um ganho – e de certa forma é.

Um dos grandes mistérios da governação portuguesa acaba de ser esclarecido graças a uma investigação do jornal “24 Horas”.

Até ontem, ninguém senão os íntimos do poder sabiam o que era uma estranha pulseira que Santana Lopes vinha ostentando no pulso direito. Seria um objecto de joalharia? Um amuleto haitiano? A pulseira de elástico do vestiário da piscina do Tamariz onde Santana teria esquecido a sua roupa? Estaria o primeiro-ministro a testar um modelo de pulseira electrónica para presos preventivos? Estaria Santana Lopes sujeito a uma medida de coação cuja divulgação tinha sido ciosamente defendida da rapacidade dos media? Seria a chapinha metálica que se via no seu pulso o meio de que se estariam a servir alienígenas para comandarem à distância o nosso primeiro-ministro, como defendiam alguns (o que justificaria a latência na leitura dos discursos)?
Ontem o segredo foi desvendado, mostrando mais um traço profundamente humano do homem que se encontra à testa dos destinos nacionais. A pulseira é uma jóia e um amuleto, custa “apenas 20 contos” segundo o “24 Horas”, foi comprada no Hotel Ritz, é de fio de algodão e prata (a rainha de Espanha tem uma igual mas com chapinha em ouro) e protege Santana Lopes desde que a comprou, em Outubro. A história teve honra de manchete (“Desde que a usa só tem tido sucessos na vida”) mas o jornal não diz se Santana usa a jóia por razões estéticas ou pelo seu poder mágico. Diga-se que a última razão não destoaria num Governo cujo ministro da Defesa acha que foi Nossa Senhora de Fátima quem desviou a mancha de crude do “Prestige”.

Toda esta história é naturalmente ridícula mas os gestos de Santana Lopes são-no frequentemente. O que é de notar é que eles são merecedores de notícia (sempre foram, mas são-no mais ainda desde que SL se guindou à testa dos destinos da nação) e que essas notícias se encontram fora do circuito informativo sério, fora do meio do noticiário político, fora do meio dos líderes de opinião. Elas não deixam por isso de influenciar a opinião pública e de criar adeptos que se revêem em alguém cujos gostos conhecem.

É sabido, desde que os americanos reinventaram as eleições, que os políticos precisam de se apresentar ao eleitorado como pessoas, com gostos próprios, famílias, sentimentos, “hobbies” e até fraquezas (vide Clinton). Em Portugal, porém, a vida pessoal dos políticos sempre andou tão afastada dos holofotes noticiosos que muitos dos nossos dirigentes são para a maior parte dos eleitores simples figurantes de telejornal. Atrevemo-nos no Verão a perguntar-lhes a que praia vão e qual o restaurante preferido e pouco mais. E, no entanto, é normal que os eleitores queiram saber que autores lê o primeiro-ministro, de que música gosta, que amigos tem, o que mais o irrita e o que faz nas férias. Porque tudo isso revela a pessoa e afinal votamos em pessoas.
Um dos políticos portugueses de quem conhecemos os gostos pessoais é Mário Soares (e não à custa de devassa, mas da transparência da sua vida social, de uma acção cívica sempre ligada a uma vida cultural intensa) e isso explica bem a proximidade que tantos portugueses sentem do ex-presidente.

Santana Lopes não tem vida cultural mas tem pulseiras e festas e óculos de sol e uma vida sentimental que as pessoas pensam conhecer e isso basta para criar um sentimento de proximidade.

Não interessa se isso é feito de uma forma pimba ou refinada, se incendeia a imaginação de intelectuais ou caixeiras. Interessa que vende e tem seguidores. Como a música pimba. O estilo de Santana Lopes é descontraído e isso é percebido pelos cidadãos como um ganho – e de certa forma é.

Tudo isto tem consequências políticas. A alternativa política a Santana Lopes não pode apresentar-se no plano eleitoral com uma sisudez franciscana de gato-pingado (para demonstrar que é diferente e séria), nem pode tentar bater Santana no palco do “entertainment” (para demonstrar que pode ser igual e divertida). Há que encontrar uma posição que seja alternativa em política e que consiga simultaneamente aproximar-se do eleitorado.

Algo que já seria um ganho seria, por exemplo, um líder político alternativo que usasse uma pulseira da moda mas sem poderes mágicos.