terça-feira, setembro 11, 2001

Porto Santo

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 11 de Setembro de 2001
Crónica x/2001

Porto Santo é, sem dúvida, uma das mais belas praias de Portugal e seria justamente colocada em qualquer "ranking".
A longuíssima extensão de areia fina, a qualidade da água, o manso mar azul turquesa, os ilhéus rochosos que enquadram a praia fazem de Porto Santo um destino de férias de sonho. O maior trunfo da ilha é o seu clima sub-tropical, com um Sol sempre quente mas nunca demasiado violento, com uma água sempre tépida mas sempre refrescante.
A paisagem natural da ilha para além da costa não é particularmente sedutora, com o seu perfil rochoso e agreste, mas oferece aqui e ali atraentes perspectivas, que reforçam o seu ar de oásis selvagem no meio do oceano.
Não espanta por isso que, desde há alguns anos, Porto Santo seja apresentada ao turismo como uma pequena jóia, um paraíso de férias de uma imensa beleza natural. A reputação é merecida e nenhum veraneante se sente defraudado com a escolha.
O que é alarmante em Porto Santo, é constatar que tudo o que é bonito na ilha foi uma oferta da natureza e que tudo o que é intervenção humana a desfeia.
É verdade que a costa da ilha não está (ainda?) cimentada à algarvia, mas a construção em Porto Santo (e não só em Vila Baleira) apresenta o mesmo padrão de desordenamento urbano que vemos um pouco por todo o país e faltam na ilha aqueles sinais exteriores de civismo a que os seus habitantes e visitantes têm direito. Os passeios são escassos, as estradas não têm a mínima berma que permita acomodar um passeante e toda a ilha é uma tortura para alguém que tenha de empurrar um carrinho de bebé (devido às características da praia as famílias são abundantes). A ilha poderia ser um paraíso para passeios de bicicleta mas não há uma única pista para ciclistas. O sistema de transportes públicos (autocarros) é praticamente inexistente e os horários são respeitados com uma parcimónia mais índica que atlântica. E é em vão que se procuram os parques, as esplanadas, os jardins, as árvores de sombra que a ilha está mesmo a pedir. Será que isso acontece porque as autoridades regionais querem manter a ilha na sua rudeza original, como um local de férias selvagens para os amantes da aventura? Também não. A ilha é cada vez mais invadida pelos carros e, na falta das devidas estruturas (parques ao pé das praias, por exemplo), o estacionamento é cada vez mais selvagem e chega a transbordar das beiras das estradas para os escassos passeios.
A erosão e o desaparecimento do coberto vegetal da ilha é outro dos graves problemas. Com o desaparecimento praticamente total da agricultura nas últimas décadas, as zonas de vinha e de outras culturas transformaram-se em pedregais poeirentos que esperam a sua vez de ser ocupados por construções de gosto duvidoso. Seria bom que se compreendesse que a actividade agrícola não é importante apenas pela produção directa, mas devido à gestão da paisagem que realiza.
Não há razão para considerar que o Porto Santo esteja desde já perdido. Mas a verdade é que é em vão que se procura um sinal de esperança no meio do caos da construção e do desordenamento da paisagem.

terça-feira, agosto 28, 2001

Ainda a lista

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 28 de Agosto de 2001
Crónica x/2001

A publicação da lista das notas alcançadas pelos alunos das várias escolas secundárias do país nos exames nacionais do 12º ano deve ser saudada. Ela representa um triunfo do direito dos cidadãos à informação e, particularmente, do direito dos cidadãos a conhecerem o funcionamento do sistema de ensino que financiam e cujo desempenho todos consideram essencial para garantir o futuro.
Deve ser saudada porque vem sublinhar o dever da prestação de contas dos sistemas públicos perante a sociedade.
Deve ser saudada, finalmente, porque representa uma vitória sobre o obscurantismo daqueles que defendiam que o público não estava preparado para conhecer e interpretar estes dados, que extrairia deles conclusões abusivas e incorrectas, que a ordem pública seria alterada para além do tolerável, que, em suma, o país não estava maduro para a democracia.
É evidente que a eficácia do sistema não pode ser avaliada de forma muito rigorosa através desta lista. Mas é melhor possuir alguns indicadores do que nenhuns. Trata-se de uma primeira abordagem, que irá sendo certamente corrigida e melhorada com o tempo.
É evidente que vai haver erros de interpretação, algumas injustiças na avaliação, algumas reputações (boas e más) algo imerecidas. Mas a qualidade dos dados e da sua leitura irá sendo cada vez maior e isso só poderá melhorar o sistema.
É justo sublinhar, neste momento, que esta publicação tem antecedentes: ela dificilmente teria tido lugar se o ministro da Ciência e da Tecnologia, José Mariano Gago, não tivesse tido a coragem, em 1997, de tornar pública a avaliação das unidades de investigação financiadas pelo Estado e de instituir essa divulgação como um princípio (cuja continuidade se espera). Ao princípio, também essa publicação caiu como uma bomba, mas o sistema habituou-se. Também as notas dos exames (que ficam muito aquém da avaliação a que as escolas podiam e deveriam ser submetidas) serão vividas como um choque primeiro e perderão depois o seu dramatismo.
Há quem receie que a publicação destes "rankings" leve a uma prática de benefício dos favorecidos e abandono dos marginalizados. A preocupação é legítima. Mas é inaceitável que, para não correr esse risco, se adopte um injusto igualitarismo, se defenda o anonimato da competência e a impunidade da incompetência, se defenda a própria ignorância do sistema sobre si próprio.
Uma das razões por que é necessário conhecer o desempenho das escolas pode ser para identificar os melhores e para os estimular a não aceitar nada menos do que a excelência. Mas tem de ser também para colmatar as insuficiências dos menos bons e para identificar e combater as razões de insucesso dos piores.
Na educação, como em muitas outras áreas (se não em todas), não há receitas de sucesso. Uma das formas mais eficazes de alcançar bons resultados é o chamado estudo das "boas práticas". A emulação dos melhores pode ajudar-nos a ter uma melhor educação. Cabe-nos exigi-la.

terça-feira, agosto 21, 2001

O gosto pela leitura

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 21 de Agosto de 2001
Crónica x/2001

Há aspectos singulares na actual polémica sobre a alteração aos programas de Língua Portuguesa para o ensino secundário. Um deles é o facto de vermos uma quantidade de gente exaltada pelo facto de o estudo pormenorizado de "Os Lusíadas" ter passado do 10º para o 12º quando muitos destes mesmos críticos apenas tiveram direito à abordagem que se fazia, se faz e vai continuar a fazer no 9º ano, sem que isso lhes tivesse parecido alguma vez um crime de lesa-majestade. A verdade é que se vai dar mais Camões (lírico e épico) nas escolas secundárias do que se dava há 25 anos, ainda que ao ouvir os críticos se fique com a ideia oposta.
Outra singularidade é a contradição entre as preocupações manifestadas pela forma como se ensina literatura nas escolas secundárias — que afastaria os jovens dos clássicos em particular e da leitura em geral — e a preocupação pela retirada de alguns autores da lista de leituras obrigatórias.
Poder-se-ia pensar que aqueles que acreditam que a inclusão de um autor no programa oficial reduz de forma dramática as probabilidades de ele voltar a ser lido alguma vez na vida, veriam com bons olhos a sua retirada da lista obrigatória. No entanto, o coração tem razões que a razão não conhece e não é essa a reacção mais frequente.
A aprendizagem da Língua Portuguesa tem fins utilitários (compreender um texto; aprender a exprimir conceitos, sentimentos), culturais (compreender a história, a diversidade de olhares), artísticos (aprender a fruir, a criar) mas deve ter como objectivo principal a aquisição pelos jovens do gosto pela leitura. Não pelos clássicos, mas pela leitura. E, para isso, é muito mais importante o "como" do que o "quê". Decidir se um autor é ou não é obrigatório, se ele vai ter direito à leitura de duas páginas e a quarenta minutos de atenção por parte do professor tem uma importância muito menor do que saber o que pode fazer esse professor para fomentar o gosto pela leitura. A primeira coisa que pode fazer para fomentar esse gosto é pôr os alunos a ler. Ler realmente, romances ou poemas, seja de que tipo for. Para descobrir que a leitura pode ser emoção e prazer, riso, aventura, paixão, é preciso antes de mais começar a ler. Antes de gostar de Eça gosta-se de Robinson Crusoe ou mesmo de livros de cóbois. Quando a escola se preocupar em levar a leitura aos jovens em vez de "dar" autores servidos em excertos esquartejados, o seu trabalho estará meio feito.
Dizer que a escola destrói os autores e os transforma em cascas secas não é uma questão de opinião. Há autores que resistem ao tratamento (Camões é certamente um deles), mas são raros. Há alunos que gostam de Eça APESAR de terem "dado" Eça na escola, mas estes alunos também são raros. Há quem descubra a leitura na escola mas, por cada um destes, há dez que passam a identificar leitura com sacrifício e secura. É mais importante discutir isso que a composição da Lista. Se a Lista for um instrumento de obscurantismo será uma bênção e uma honra não constar dela.

terça-feira, agosto 14, 2001

Não há vida na Avenida

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 14 de Agosto de 2001
Crónica x/2001

É domingo à tarde. As faixas centrais da Avenida da Liberdade, em Lisboa, estão vazias. Deixando escorrer o olhar desde o Marquês de Pombal aos Restauradores, vê-se meia dúzia de passeantes que, em vez de caminhar pelo passeio, se aventuraram no alcatrão e avançam ao longo do lancil, tentando não fugir demasiado à sombra das árvores. Os calções, os bonés e o varrimento semicircular do olhar denunciam-nos como turistas. Lá em baixo, na placa central dos Restauradores, sob o sol, meia dúzia de miúdos ensaiam acrobacias de skate, envolvidos no ruído emitido por uma poderosa instalação sonora.
As áleas laterais estão atulhadas de carros e alguns autocarros, que avançam a passo lento.
A parte central da Avenida está (tem estado) fechada ao trânsito aos domingos no âmbito de uma iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa chamada "Há vida na Avenida". A imagem da Avenida desmente o "slogan": quase não há vivalma na Avenida. De vez em quando passa pelo meio do alcatrão um ou dois ciclistas ou uma trotinete, um casal empurra uma criança num carrinho de pedais ao longo do corredor do Bus, mas é tudo. Não há nesta Avenida mais vida do que num domingo normal, quando o trânsito automóvel está aberto e os autocarros da Carris passam galhardamente a 80 quilómetros à hora avenida abaixo e os carros aproveitam, para evitar o desperdício de um cruzamento vazio, aqueles primeiros três segundos de sinal vermelho em que os outros carros ainda não se atreveram a arrancar.
Todas as entradas na parte central da Avenida estão devidamente fechadas, com barreiras de plástico amarelas, fitas de plástico e polícias postados em todos os cruzamentos, não vá uma manifestação de camionistas querer entrar à força naqueles dois quilómetros reservados àquele cidadão australiano que sobe o alcatroado, ou tentar roubar uma das barreiras amarelas.
É verdade que há tão poucas ideias nesta Câmara que custa criticar quando aparece uma, mas a desproporção entre o custo e o benefício desta é descomunal. É possível que a ideia tenha tido alguma generosidade, querido dar a cidade a fruir aos seus cidadãos, dar lugar aos peões, etc. Mas a forma de a pôr em prática é tão ineficiente que seria mais inteligente dar-lhe um fim rápido. É verdade que a Câmara tentou organizar algumas actividades de animação de rua, mas foram tão pindéricas que é mais piedoso ignorá-las.
A preocupação da autarquia tem de ser uma estratégia de desenvolvimento sustentável e não a táctica das medidas de emergência. A Avenida não é um bom lugar para esta ideia porque é demasiado importante como artéria rodoviária, mesmo aos domingos; porque é a subir; porque não tem lojas abertas; porque quase não tem cafés; porque não tem equipamentos; porque não tem a beleza e a frescura que um local ao pé do rio (por exemplo) pode ter; porque não é um local de passeio habitual dos lisboetas; e, finalmente, porque a animação da cidade deve ser uma prática que embebe toda a actividade da autarquia e não pode ser concebida à maneira de uma táctica de guerrilha urbana, que obriga a cortar as ruas principais.

terça-feira, julho 31, 2001

Amálgamas

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 31 de Julho de 2001
Crónica x/2001

A cimeira de Génova, a contestação "anti-globalização" a que serviu de pretexto e a repressão de que esta última foi objecto deram origem a uma chuva de comentários nos órgãos de comunicação nacionais e internacionais que seriam todos interessantes se não sofressem tantos do mal da simplificação abusiva.
Todos os comentadores com alguma seriedade concedem que, sob o manto diáfano da designação colectiva "manifestantes anti-globalização", se reúnem os movimentos e os indivíduos mais díspares e mesmo mais opostos, de defensores da agricultura biológica a nacionalistas radicais, de militantes ecologistas a adeptos da teologia da libertação, de jovens empenhados em movimentos de solidariedade social a arruaceiros, de vegetarianos a terroristas em botão, de anarquistas a "hooligans" amadores ou profissionais, passando por homens e mulheres genuinamente preocupados com as injustiças e as desigualdades sociais. E o mesmo se poderia dizer dos "defensores da globalização", onde se podem encontrar sem dificuldade convictos defensores do desenvolvimento sustentável e da solidariedade internacional, misturados com especuladores sem escrúpulos, ditadores e mafiosos de vários matizes.
No entanto, sempre que se trata de analisar os acontecimentos, o pé de muitos comentadores — e da imprensa em geral, diga-se de passagem — desliza para a simplicidade da amálgama, de um lado e de outro da barricada. É mais fácil falar de "Globalização - Pró ou Contra" que tentar discriminar razões, objectivos, meios e fins. E a imprensa é, sabemos, simplificadora da realidade, sacrificando matizes que às vezes fazem deitar fora o bebé com a água do banho.
O maniqueísmo das análises tem desculpas de ordem prática mas não é aceitável num comentador isento. Da mesma forma, não é aceitável que se tente obrigar os cidadãos a escolher entre o manifestante munido de um cocktail Molotov e o empresário que deita fogo a uma aldeia para explorar a madeira tropical. Perante este maniqueísmo (lembram-se de quando qualquer pessoa de esquerda era acusada de querer o Gulag?) é preciso saber recusar as duas ignomínias que nos estendem sobre a bandeja.
Pode (e deve) compreender-se os riscos da globalização e tentar combater os seus efeitos nefastos (sejam eles efeitos "perversos" ou "inevitáveis" do capitalismo ou da tecnologia) recusando ao mesmo tempo o cocktail Molotov.
É possível compreender algumas das razões dos manifestantes de Génova e recusar outras, aderir a algumas palavras de ordem e recusar outras, adoptar certas formas de protesto e repudiar outras.
É evidente que a participação num movimento social traz consigo uma responsabilidade colectiva e não é possível ilibar totalmente um manifestante dos gestos praticados pelo grupo em que se integra — por muita ingenuidade ou inconsciência que possa haver na adesão a esse grupo. Mas, pela mesmíssima razão (porque somos livres de escolher), é absolutamente ridículo que alguém pense que nos pode propor como únicas alternativas a fome em África ou o terrorismo basco.

terça-feira, julho 24, 2001

Os cartazes do medo

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 24 de Julho de 2001
Crónica x/2001

O espectro da insegurança nas ruas sempre caracterizou o discurso propagandístico da direita. O argumento tem duas lógicas convergentes: por um lado, insinua-se que a esquerda, com o seu discurso de defesa dos trabalhadores e devido às simpatias proletárias da sua herança marxista, é naturalmente benevolente perante aquilo a que Marx chamou o "Lumpenproletariat" — os marginais em geral e os criminosos em particular. São reflexos dessa lógica os argumentos que afirmam que o rendimento mínimo garantido promove a marginalidade. Da mesma forma, as ideais de esquerda são assimiladas ao caos social e à insegurança civil.
Por outro lado, sugere-se que apenas a direita sabe exercer a autoridade, e que apenas ela respeita suficientemente a propriedade para pôr em prática os mecanismos sociais da sua protecção.
Além da sua força na captação de votos (no melhor dos casos), estes argumentos têm outra propriedade, devido ao clima de medo que geram: quando quem os usa consegue chegar ao poder, eles justificam uma intervenção musculada no discurso e na prática social e política, na relação com os parceiros institucionais e as oposições — privilegiando uma "atitude disciplinadora" versus uma "prática solidária".
Os cartazes "Lisboa parada", com que o candidato do PSD à Câmara Municipal de Lisboa, Pedro Santana Lopes, encheu a cidade — em particular o típico "Lisboa parada com medo dos assaltos" — , são exemplos desta lógica.
Neste cartaz, vê-se uma imagem desfocada de um assalto à mão armada em pleno dia: um homem armado de uma faca arranca um saco que uma mulher traz a tiracolo.
O cartaz tem o exagero da propaganda. Lisboa não está parada com medo dos assaltos e dizê-lo leva a crer que a candidatura que os colocou tem da cidade a imagem caricatural de uma beata aldeã de idade avançada apavorada com a urbe selvagem e frenética. O cartaz (toda a série, de facto) tem, ainda, o inconveniente de realizar uma campanha pela negativa, sem defender nenhum ponto de vista, sem fazer propostas concretas e até sem fazer críticas precisas (no conteúdo ou no destinatário).
Mas o cartaz tem principalmente a desvantagem de constituir objectivamente uma campanha de publicidade em prol da criminalidade — no que não será certamente o desejo do candidato Santana Lopes. Dizer em grandes cartazes que Lisboa está paralisada com medo dos assaltos (como o tinha já feito o Partido Popular) e insinuar que os lisboetas não saem à rua devido à vaga de criminalidade é convidá-los a sentir medo da sua cidade. Ora a criminalidade combate-se principalmente fazendo da cidade um local vivo e habitado por cidadãos sem medo.
Anunciar em grandes cartazes que os fora-da-lei são donos da cidade é adequado para a promoção de um "western". Mas seria mais tranquilizador se soubéssemos que Santana Lopes tinha aceitado finalmente que não é Gary Cooper.

terça-feira, julho 17, 2001

Chapéus contraditórios

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 17 de Julho de 2001
Crónica x/2001

A discussão sobre a recente directiva da Alta Autoridade para a Comunicação Social sobre a recolha de imagens de pessoas em situação de fragilidade psicológica suscita aquilo que poderíamos chamar uma questão de chapéus.
As sociedades democráticas estimulam a organização de grupos com interesses e objectivos comuns. Esses grupos (partidos, clubes, associações, empresas) defendem as suas posições, colocando-as em confronto com outras num mercado de ideias que se pretende aberto. Esse confronto — aliado a mecanismos de livre escrutínio, adesão, recusa ou contestação por parte do público — encontra-se no cerne da sociedade democrática.
Esta livre organização de interesses tem como resultado que todos nós representamos vários papéis, de acordo com os vários grupos de que fazemos parte. Somos todos funcionários de empresas, membros de associações, de partidos e clubes e, dentro de cada um destes grupos, representamos muitas vezes mais de um papel.
É frequente que um indivíduo, interrogado por um jornalista ou por alguém que, de alguma forma, vai dar eco às suas opiniões, insista em sublinhar o estatuto em que faz as suas declarações — o que é um reflexo positivo da organização da sociedade civil, da vivacidade do mercado de ideias e da veemência da defesa dos interesses dos vários grupos sociais.
É evidente que o estatuto de quem fala é fundamental para avaliar a idoneidade e/ou o peso de uma dada afirmação. É fundamental saber se uma declaração está a ser feita por alguém enquanto ministro ou espectador de cinema para sabermos a importância que devemos dar às afirmações produzidas.
É igualmente claro que há casos onde a identificação usada por um dado indivíduo para falar em público tem consequências ponderosas. Saber se o funcionário de uma dada instituição está a transmitir um sentimento individual ou a representar a instituição é sempre fundamental. Da mesma forma, é importante saber se alguém fala enquanto dono de uma empresa ou presidente de uma federação de trezentas empresas. É evidente que ambas as posições são possíveis (falar em nome pessoal ou em nome da instituição) mas o que não é sempre possível, é usar alternadamente os dois chapéus — mesmo que se tenha o cuidado de dizer que se fala hoje enquanto A e amanhã enquanto B.
Vem isto a propósito das declarações, feitas a título pessoal, de Carlos Veiga Pereira, criticando a directiva da Alta Autoridade para a Comunicação Social, de que é... porta-voz.
A directiva que Veiga Pereira critica encontra-se de facto ferida de um excesso de zelo profundamente ridículo. Mas o que interessa é que um porta-voz é alguém que aceita dar voz à posição oficial de um dado órgão, o que pressupõe uma profunda identidade com o seu funcionamento e a aceitação do resultado do seu trabalho, quer com ele se concorde pessoalmente ou não.
A esquizofrenia de posições divergentes coincidindo na mesma pessoa conforme o chapéu que têm na cabeça não pode senão levar-nos a pensar que as posições não pertencem à cabeça mas sim ao chapéu.

terça-feira, junho 26, 2001

Rossio à vista

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 26 de Junho de 2001
Crónica x/2001

Uns amigos meus franceses vêm passar alguns dias a Lisboa todos os verões, desde há dez anos. Quando o tempo disponível o permite estendem o passeio a outras regiões, mas Lisboa é uma passagem obrigatória.
Costumam ficar instalados no centro da cidade, perto da Baixa, e usufruem a cidade como os estrangeiros que o sabem fazer.
Este ano, os meus amigos, que virão em Agosto, vão ter a surpresa de ver uma praça num local onde eles pensavam que havia apenas um descampado para uso das empresas de construção: em pleno Rossio.
Não me lembro com rigor quando é que o Rossio se transformou num estaleiro. Sei que foi há demasiados anos, mas não poderia dizer a data precisa. Antes das obras da praça propriamente dita houve um interregno cheio de tapumes mas sem actividade visível, antes do interregno houve as obras do Metro, antes das obras do Metro houve outras obras que usaram a praça como local de armazenamento de materiais, etc.
O que sei é que estes meus amigos, nas várias viagens que fizeram a Lisboa, nunca viram o Rossio liberto de obras, como pertence a uma praça que reivindica o título de coração da cidade. E sei que não o viram porque discutimos a questão no último Verão, quando passeávamos ao longo dos tapumes que se tornaram habituais na zona.
Não posso garantir que não tenha havido algum Verão em que eles tenham trocado os passeios diários à beira-Tejo por uma voltinha de barco no Campo Grande (o que é improvável mas não impossível) e que tenham perdido alguma janela de oportunidade em que o Rossio se tenha mostrado visível. Mas a verdade é que eles não se recordam do Rossio como a praça que devia ser. E eu também não.
Vem isto a propósito de o Rossio estar, finalmente, à beira de se mostrar, reabilitado e renovado, para alegria de todos os lisboetas, trabalhadores e visitantes da cidade. É evidente que os benefícios realizados são bem-vindos e é com alegria que retomamos possessão daquilo que é nosso. Mas seria conveniente que, daqui para a frente, a autarquia e as empresas mais ou menos públicas que actuam no espaço público da cidade não partissem do princípio de que o Rossio lhes pertence e deixassem de empilhar a brita naquele espaço que dá tanto jeito, mesmo à volta da fonte.
Esperamos mesmo que João Soares venha prometer que, se for eleito, não permitirá, em caso algum, que a praça do Rossio venha a ser usada como estaleiro, jurando que a dignidade do coração lisboeta não está à venda. Ou não veio o autarca na pele de candidato garantir que, se fosse presidente da Câmara Municipal de Lisboa (não é?), não permitiria que os carros estacionassem nos passeios?

terça-feira, junho 19, 2001

A perda da infodiversidade

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 19 de Junho de 2001
Crónica x/2001

Há dez anos, quando alguém precisava de se informar rapidamente sobre um tema sobre o qual sabia pouco ou nada, tinha um problema bicudo entre mãos.
As fontes possíveis não eram muitas: ou se tentava identificar um especialista que nos pudesse informar e recomendar as leituras adequadas, ou se visitava uma biblioteca em busca de uma publicação onde as respostas pudessem ser debulhadas.
É claro que já havia grandes bases de dados recheadas de artigos, mas a sua consulta era cara e difícil e o seu conteúdo, com raras excepções, estava restrito aos temas das ciências duras. As pesquisas eram longas e produziam uma massa de respostas de manipulação impraticável.
A situação mudou radicalmente com o aparecimento da World Wide Web. De súbito, milhões de instituições e indivíduos começaram a disponibilizar a sua informação, a criar bases de dados de acesso livre e, o que é mais importante, começaram a aparecer os famosos motores de busca (ou de pesquisa): programas gratuitos capazes de, na Babel inimaginável da Web, localizar em segundos o que procuramos, de vasculhar não uma base de dados mas milhares e milhares de bases de dados.
Há dez anos, a informação procurava-se; hoje, colhe-se. A sua localização deixou de ser um problema de maior.
Os primeiros motores de busca da Web, quando procurávamos a palavra "árvore", encontravam todas as páginas que contivessem a palavra e consideravam-nas tanto mais relevantes para a nossa pesquisa quanto mais vezes essa palavra aparecesse. Depois, apareceram os motores de pesquisa actuais, que consideram as páginas tanto mais relevantes para nós quanto maior for o número de links da Web que aponta para elas. Como um programa de pesquisa não consegue avaliar a qualidade do conteúdo, faz o que pode: usa o "efeito de citação" para o avaliar, para o validar.
Assim, quanto mais links apontarem para uma página, mais visitantes ela receberá, enviados pelos motores de pesquisa, e cada vez mais links apontarão para ela, criando um efeito de bola de neve, facilitando a concentração de poder que a mundialização arrasta ao criar vasos comunicantes. Não é fácil resistir a este critério, pois toda a gente quer usar "a melhor pesquisa", "encontrar o melhor resultado" e ninguém está disposto a abdicar de uma funcionalidade deste tipo quando ela está ao alcance de um clique.
Claro que, em certos casos — quando sabemos bem o que procuramos, quando discriminamos a idoneidade das fontes —, possuímos critérios adicionais que nos permitem resistir às primeiras propostas dos programas de pesquisa. Mas quantos o fazem?
Contrariamente ao que esperavam da Internet os mais optimistas — um mundo de comunicação aberta e democrática, onde todos pudessem fazer ouvir a sua voz e fazer valer as suas ideias ­—, a Web corre assim o risco de levar a uma dramática perda da infodiversidade (a variedade das fontes, a multiplicidade de pontos de vista), que poderá ser tão desastrosa como a perda de biodiversidade.

terça-feira, junho 12, 2001

American way of death

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 12 de Junho de 2001
Crónica x/2001

Não se consegue lamentar verdadeiramente a morte de alguém como Timothy McVeigh.
O homem que foi ontem executado nos EUA cometeu um acto de violência cega, longa e friamente planeado, que vitimou um enorme número de pessoas, que eram inocentes mesmo do ponto de vista do próprio assassino. Veigh executou o seu atentado como um gesto de terrorismo contra o Estado americano, por razões de puro delírio, apenas para mostrar que era capaz de inflingir perdas e espalhar o medo no seio do seu inimigo, e nunca mostrou remorsos pelo seu acto. As crianças que morreram na explosão foram consideradas por McVeigh como "danos laterais", lamentáveis mas negligenciáveis, um pequeno preço a pagar pelo êxito de uma justa "acção de guerra".
Não se consegue lamentar verdadeiramente a morte de alguém como Timothy McVeigh. E é verdade que, para muitos americanos, o mundo até pode parecer um sítio mais seguro depois da sua morte.
Mas, se não se pode lamentar a morte deste homem, é inevitável que lamentemos o facto de ela ter ocorrido às mãos de um Estado que se proclama defensor dos direitos humanos.
Uma execução é um acto de barbárie. Que a morte de um homem seja causada por outro pode compreender-se em certas circunstâncias — não é difícil imaginar alguma em que qualquer um de nós o faria — mas, que essa morte seja planeada e executada a sangue-frio, é um acto da mais nauseante abjecção.
Ao dar a sua morte como espectáculo ao mundo a pretexto de transparência na administração da justiça (é pouco relevante que a execução não tenha sido mostrada), as autoridades e os media tornaram-nos espectadores e, nessa medida, participantes e cúmplices do horror, da banalização do mal. E isso diminui-nos.
Imaginar que uma execução (ou mil) possa de alguma forma reduzir o clima de violência que se vive num país é não só irracional como desmentido pelos factos. Tal como Waco foi o detonador da loucura de McVeigh, a sua morte será uma razão para outros, alimentando o ciclo de violência do "american way of death".
Os Estados Unidos são um país violento porque são sede das mais violentas injustiças sociais que existem no mundo e porque mantêm e alimentam um vivo culto da violência e do direito do mais forte em todas as suas instituições — da justiça à saúde, do entretenimento à economia. Um culto de violência banalizado, exportado para todo o mundo e protagonizado pelo Estado, que ontem nos ofereceu o mais obsceno espectáculo que um país pode oferecer: um assassinato travestido de justiça.
A Justiça de uma sociedade não pode ser outro nome para vingança. A justiça moderna define penas que têm um triplo objectivo: castigar, dissuadir e reabilitar. A pena de morte castiga, mas não dissuade (porque não tem pedagogia, porque não apresenta valores alternativos) e não só impossibilita a reabilitação como destrói a própria ideia de reabilitação. Tudo o que faz é colocar aquilo que devia ser a Justiça ao nível de um McVeigh.

terça-feira, junho 05, 2001

O factor animal

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 5 de Junho de 2001
Crónica x/2001

A propósito de três livros publicados nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha que abordam a posição ocupada pelos deficientes na sociedade e o papel de assistência aos doentes tradicionalmente assumido pelas mulheres, a especialista de ética Martha Nussbaum publicou no jornal "The New York Review of Books" um interessante artigo.
Nussbaum começa por fazer notar que este trabalho, geralmente feito por mulheres, constitui um factor de desigualdade social e injustiça, já que não é remunerado nem reconhecido socialmente. A sua invisibilidade é ainda maior que o trabalho de casa ou o de cuidar dos filhos, apesar de ele limitar de forma drástica a possibilidade de fruição pessoal, de realização profissional e de participação cívica daquelas que o desempenham.
Estas mulheres realizam um trabalho vital para a sociedade, cujo peso tenderá a ser cada vez maior, à medida que aumenta a esperança de vida.
Porém, à medida que a sua necessidade aumenta, a sua dignidade não parece de forma alguma reconhecida.
O artigo de Nussbaum chama a atenção para o facto de que todos somos indivíduos apenas episodicamente independentes. Se considerarmos a nossa infância, a velhice, as doenças passageiras ou crónicas, as convalescenças, as deficiências temporárias ou definitivas, damo-nos conta de que uma grande parte da nossa vida é passada sob os cuidados de alguém.
Ora acontece que as teorias políticas ocidentais se baseiam na ideia de um "contrato social", assinado por seres "livres, iguais e independentes" para vantagem mútua. Esta ficção de uma sociedade formada por seres competentes e maduros parece inocente mas não é, diz Nussbaum.
De facto, haverá sempre pessoas permanentemente dependentes, incapazes de participar nos acordos de reciprocidade que estão na base dos nossos ideais de justiça e de solidariedade.
O contrato pressupõe uma vantagem mútua. O que se passa quando já se sabe à partida que algúem vai "receber" e não vai nunca "pagar"? O contrato não poderá ser posto em causa? Será que um dia os deficientes poderão ser julgados um luxo que uma sociedade competitiva não pode tolerar?
Nussbaum discute um alargamento da lista dos "bens primários" que qualquer sociedade deve proporcionar a todos os seus cidadãos (proposta pelo filósofo John Rawls) de forma a incluir a assistência durante os períodos de dependência.
Mas Nussbaum não resolve o problema daqueles que serão sempre dependentes e que nunca poderão "pagar" a sua parte numa moeda socialmente aceite. Uma proposta para garantir a reciprocidade do contrato seria introduzir formalmente o "factor animal" nestas considerações, incluindo na lista dos "bens primários" que a sociedade deve garantir não apenas o bem-estar próprio, mas o bem-estar da nossa prole.
A regra de ouro social deixaria assim de ser apenas "tratar os outros como queremos que nos tratem "mas também "tratar os filhos dos outros como queremos que tratem os nossos filhos" — o que constituiria uma vantagem própria e garantiria o resultado desejado.

terça-feira, maio 29, 2001

Caça à multa

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 29 de Maio de 2001
Crónica x/2001

Foi objecto de notícia há dias nestas páginas uma determinação do comandante do Grupo Territorial de S. João da Madeira da GNR que criticava os seus agentes por não se empenharem mais na sua missão. Essa falta de empenho verificar-se-ia tanto no âmbito das operações de policiamento geral, como na fiscalização rodoviária e na prevenção e combate à criminalidade. O comandante afirmava que essa situação se traduzia no "não levantamento de autos de contra-ordenação" (vulgo multas) e exortava os seus homens a aumentar a sua actividade neste domínio.

A medida levantou um coro de protestos na corporação — ainda que moderado pela lei da rolha aí em vigor — com os agentes a queixar-se de que os queriam lançar na "caça à multa" e a denunciar uma situação generalizada no país segundo a qual se esperaria deles que passassem "cinco multas por mês".

É claro que seria irrazoável e imprudente definir os objectivos de acção de uma corporação como a GNR em termos de um número mínimo de multas a passar por agente por dia. E se é isso o que pretende o comandante em causa, seria conveniente que ele recebesse algum esclarecimento por parte da hierarquia.

Mas, se a existência de multas não prova que tudo esteja bem, a sua ausência garante que algo está mal: não é possível fazer um policiamento irrepreensível sem passar uma multa quando se possuem responsabilidades como o policiamento geral, a fiscalização rodoviária e a prevenção e combate à criminalidade.

Não conheço S. João da Madeira suficientemente bem para poder avaliar as suas necessidades de policiamento (segundo a GNR a zona apresenta "índices elevados" de criminalidade) e muito menos para prever o número médio de multas que poderia ser considerado razoável para um guarda cumpridor e razoável. Mas sei que, em Lisboa, seria preciso que um corpo policial fosse extraordinariamente descuidado (ou algo pior) para que, cumprindo funções como policiamento geral, fiscalização rodoviária e prevenção e combate à criminalidade cada agente apenas levasse a efeito cinco "autos de contra-ordenação" por mês.

A expressão pejorativa "caça à multa" pode aplicar-se a situações onde a polícia emboscada espera o incauto passante num local propício a uma transgressão inócua (ou cuja geografia concreta até a incentiva) para o apanhar com a boca na botija.

Mas não se trata de "caça à multa" quando a polícia multa quem transgride ou prende quem comete um crime. É claro que a polícia não tem de (nem deve) multar sempre que pode. É conveniente que um agente da autoridade seja razoável e compreensivo. Mas não é admissível que ele seja sistematicamente tolerante com todos os desmandos e abusos.

Pelo meu lado, gostaria imenso que as polícias se empenhassem activamente na caça aos condutores embriagados nas noites de sexta-feira, por exemplo. Ou que a inspecção fiscal levasse o seu ardor venatório até à área da caça grossa.

E é lamentável que se passe à polícia a ideia de que não queremos que ela faça isso só por receio de que um dia a multa seja nossa.

terça-feira, maio 22, 2001

Serviços Especiais

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 22 de Maio de 2001
Crónica x/2001

Foi recentemente publicado em França um livro intitulado "Services Spéciaux, Algérie, 1955-1957", da autoria do general Paul Aussaresses, antigo responsável dos serviços de informação franceses. Nas suas páginas, o autor admite e relata a prática rotineira de actos de tortura e execução sumária de militantes independentistas, praticados sob as suas ordens e em certos casos pelas suas próprias mãos, durante a guerra da Argélia.
O livro reabriu em França a profunda ferida da Argélia e relançou o debate sobre os verdadeiros factos da guerra de independência argelina; sobre o papel obscuro jogado nessa história por François Mitterand, então ministro da Justiça; sobre o dever moral, a possibilidade prática e a conveniência política de lembrar e julgar este tipo de actos; sobre o pousio que deve ser concedido aos factos da História recente; e sobre a hipocrisia do Ocidente em geral e da França em particular quando fala dos direitos humanos e da necessidade de julgar os torcionários... estrangeiros.
Aussaresses não só confessa todos os seus crimes como garante - no livro e em entrevistas posteriores - não sentir o mínimo remorso ou sobressalto moral pelo que fez. Era a guerra, tinha recebido ordens, eles eram o inimigo, usava os meios mais eficazes para os exterminar, repetiria hoje o que fez ontem, tudo pela França.
Num livro publicado em 1967, " O prisioneiro", o escritor brasileiro Erico Veríssimo conta a história de um jovem oficial que recebe ordens para forçar um prisioneiro a confessar onde colocou uma bomba. A acção passa-se num país e numa guerra não identificada e o livro aborda o drama moral do oficial, colocado entre o dilema de torturar um prisioneiro ou permitir que um atentado à bomba faça dezenas de vítimas inocentes.
Quando o livro de Veríssimo foi publicado, todos viram nele uma alusão à guerra do Vietname. Na realidade, o escritor inspirou-se no relato de um episódio passado na Argélia, que envolveu um prisioneiro da FLN e um oficial francês.
É curioso constatar como o dilema moral do personagem de Veríssimo está longe do personagem real de Aussaresses. Mas é ainda mais chocante descobrir como, perante estes actos, as autoridades e até as opiniões públicas se mostram capazes da mais evidente duplicidade de critérios - isto depois de conhecermos tantas mais atrocidades, depois de conhecermos a sua inutilidade (a não ser como geradoras de ódio), depois do longo debate da filosofia política sobre os fins e os meios. Tudo o que a justiça francesa pôde fazer a Aussaresses pelo seu livro foi processá-lo por "apologia de crimes de guerra". Algo aquém da exigência moral sentida perante um Pinochet ou um Milosevic.
Hubert Beuve-Méry, fundador de "Le Monde", dizia, a propósito do uso da tortura na Argélia, em 1956 (o facto não era uma novidade), que restava esperar que os franceses não se acostumassem a justificar os "procedimentos semelhantes cometidos sob os regimes hitleriano ou estalinista". As palavras continuam actuais.

terça-feira, maio 15, 2001

A táctica dos noves

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 15 de Maio de 2001
Crónica x/2001

“Grande promoção! Aproveite já! Apenas 4.999 escudos!”
Quatro mil novecentos e noventa e nove escudos. Novecentos e noventa e nove escudos. Nove mil novecentos e noventa e nove escudos. Nem chega a quatro contos, a um conto, a dez contos.
Se pertence à minoria a quem estes truques de marketing irritam, para quem esta profusão de noves é uma fiada de grãos de areia a cair nas engrenagens do seu cálculo mental, um carreiro de formigas pretas a esgueirar-se por uma racha aberta na fachada branca da racionalidade, anime-se: não está só. Mas desiluda-se também: pertence a uma pequena minoria incompreendida, que sabe aritmética mas não tem direito a qualquer discriminação positiva.
Porque é que os supermercados, as empresas de telemóveis, os stands de automóveis, as lojas de ferramentas e praticamente todas as outras lojas do mundo oferecem produtos a preços menos que redondos? Porque funciona. É triste mas é verdade.
O que é que você faz quando vê as calças que ambiciona nuns saldos a 4.999 escudos? Pensa que por cinco contos aquelas calças são baratas? Pois (dizem os especialistas) não é isso que a maior parte das pessoas pensa. A maior parte das pessoas (dizem os especialistas) pensa “Uau! Calças destas a quatro contos e tal!”
E o “tal” dissolve os 999 escudos restantes com a eficácia de ácido sulfúrico derramado em cima de uma moeda de cobre.
Claro que a empregada da caixa não vai ter um escudo (nem dois escudos, porque você comprou dois pares de calças) para lhe dar de troco, o que faz com que as calças lhe tenham custado uns redondíssimos cinco contos, mas no momento em que você sai da loja, feliz a abanar o saco de papel, os noves fizeram o seu trabalho.
Implícita na táctica dos noves está a depreciativa ideia de que você e eu não sabemos somar e que só conseguimos reparar no primeiro algarismo de um dado número. Pelo meu lado, sinto que o escudo que falta nestes preços é meu e que me foi ilegitimamente surripiado só porque os vendedores deste mundo acham que sou trouxa. Com aquele escudo, eles querem comprar a nossa aquiescência, o nosso sentido crítico, a nossa consciência.
Eles sabem que o meu preço devia levar três zeros com o devido salto para o milhar seguinte (já para não falar do caso em que as calças até custam normalmente 4800 escudos). Mas tiram-me o escudo, fazendo alarde da generosidade, e vendem-mo como uma maçã à qual faltasse uma dentada, como um bife pesado com o dedo na balança, como um livro sem uma página.
Acha que não posso dizer que me roubam porque, de facto, vou pagar menos, nem que seja só um escudo (se a menina da caixa tivesse o escudo para o troco)?
Não é assim. Quando compramos um produto, uma das coisas que compramos é o seu preço. Quando uma etiqueta anuncia 4.999 escudos, a mensagem subliminar que ela nos pretende transmitir é que as calças custam “quatro contos e tal”. E todos sabemos que isso não é verdade.
Os “999” não são senão uma forma de publicidade enganosa dos preços. Não se deixe enganar. Quando for às compras, exija os seus preços inteiros. Não permita que lhe roubem um único escudo.

terça-feira, maio 08, 2001

Os votantes distraídos

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 8 de Maio de 2001
Crónica x/2001

O congresso do Partido Socialista que teve lugar este fim-de-semana foi exactamente aquilo que esperavam os que tinham menos esperanças: uma cerimónia de entronização da actual liderança, a formalização de uma purga das vozes críticas e uma constatação geral da crise volitiva que (des)anima o partido.
O congresso navegou entre a ausência daquela paixão que animou a primeira legislatura socialista e uma boa consciência contentada, que seria ridícula mas não seria preocupante se não se desse o caso de este ser o estado de espírito do partido que está no Governo e se o estado do país não fosse o que é.
Os "debates" com que o congresso arrancou na sexta-feira — numa cosmética mas frustrada tentativa de injectar na reunião algo do ânimo dos Estados Gerais — acabaram por dar o tom geral.
O que é mais incongruente na posição deste PS é a sensação que dá de achar que ninguém tem o direito de lhe pedir mais, como se a urgência e a insatisfação perante o "status quo" não fossem precisamente uma marca da esquerda e a razão das vitórias socialistas.
Mais paixão da educação? Mas o "slogan" já durou quatro anos, o que se pode pedir mais? Guterres não disse já que a tarefa é para uma geração? Justiça social? Mas não se criou o Rendimento Mínimo Garantido? O que se pode querer mais? Saúde? Justiça? Reforma fiscal? Mas não se sabe que o Governo faz o que pode? Quem é que tem a lata de exigir mais?
Como se fosse necessária uma prova documental da futilidade deste congresso, da pouca seriedade da discussão e da sua falta de ambição, ela veio com a notícia de que o próprio primeiro-ministro — assim como Almeida Santos, Jorge Coelho e muitos outros — tinha votado, por pura distracção, a favor de uma moção sectorial, apresentada pela secção socialista da EDP, onde se exige uma "imediata remodelação governamental" e se acusa o Governo de ter "prosseguido uma política cinzenta" que "mantém o estrangulamento do progresso do país".
O documento, que foi aprovado por esmagadora maioria, afirma ainda que o PS "não desenvolveu uma reforma de fundo em sectores como a saúde, justiça, fiscalidade, educação", diz que a reforma fiscal não é mais que uma simples "operação de cosmética" e — com uma clarividência premonitória — garante que a democracia interna no partido não passa de um "mero formalismo".
A pergunta que se coloca é: o que vai agora fazer a direcção nacional do PS? Vai aplicar as propostas da moção? Vai impugnar a sua aprovação? Vai desafiar a secção socialista da EDP a apresentar um candidato a secretário-geral?
O mais provável é que venha dizer, simplesmente, que a moção não vale porque estavam todos distraídos quando votaram. Afinal não acontece tantas vezes votar-se nalguma coisa ou nalgum partido por estarmos distraídos? Não aconteceu isso a tanta gente nas últimas eleições?

terça-feira, maio 01, 2001

O CCB foi uma festa

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 1 de Maio de 2001
Crónica x/2001

A Festa da Música encheu este fim-de-semana mais uma vez o Centro Cultural de Belém, em Lisboa, oferecendo três magníficos dias cheios de concertos dedicados à música russa.
É um privilégio viver uma Festa da Música porque a multiplicação da oferta de concertos e a concentração de excelentes intérpretes provoca uma excitação particular. Se os gafanhotos se excitam através da fricção das asas uns nos outros e se os centros comerciais são estudados para fornecer a agitação necessária e suficiente para promover a fúria de comprar, os melómanos excitam-se através da troca de comentários à saída dos auditórios, do som das ovações que sai das salas para onde não conseguiram bilhete, dos comentários dos amigos que se encontram sempre nestas ocasiões. "Impressionantes os coros!", "Já ouviste o Berezovsky?", "E os Momentos Musicais pelo Lugansky!?" Em duas horas, todos os intérpretes e compositores se tornam muito de lá de casa.
Uma parte da excitação vem do facto de se saber que ali, numa daquelas salas aveludadas, dos dedos de um daqueles homens e mulheres que atravessam os corredores transportando caixas de formas estranhas, uns de fraque, outros em mangas de camisa, vai sair provavelmente algo de sublime. Aconteceu com o violoncelista Alexander Kniazev, com o consagrado Pieter Wispelwey, com o Quarteto Debussy, e certamente em muitos mais momentos, fugazes mas mágicos, nas muitas salas da Festa.
Claro que os 41.000 bilhetes vendidos deste ano não representam 41.000 espectadores (os espectadores compram bilhetes para a Festa às meias-dúzias e às dúzias) e seria bom que o espectáculo pudesse alargar-se a um público ainda mais amplo. Seria bom ver mais crianças de todas as idades e famílias inteiras na Festa, seria bom poder tocar e ouvir música ao ar livre (nem todos os instrumentos se prestam, é verdade), seria bom ter músicos que falassem mais com o público, que aqui e ali a dessacralização fosse levada um pouco mais longe, que houvesse espaços pensados para mais contactos informais com os músicos. Tudo isso seria ainda melhor.
Mas a verdade é que a Festa oferece uma verdadeira barrigada de música e deixa, no fim, como toda a verdadeira festa, a nostalgia e as saudades da Festa do ano que vem (já afiamos o dente para Haydn e Mozart). Claro que haverá outros concertos e entretanto gozaremos os discos das peças e dos intérpretes que descobrimos aqui, mas a Festa é algo que já se tornou indispensável, de que já sentimos a falta.
A Festa da Música foi o melhor presente de despedida que Miguel Lobo Antunes nos podia deixar, no momento em que abandona o Centro Cultural de Belém, rumo não se sabe onde. É estranho que saia sem que o Estado lhe faça uma proposta aliciante para continuar a exercer os seus talentos em proveito público, seja onde for. Mas seria lamentável que a sua saída se saldasse por um retrocesso no caminho traçado até aqui pelo CCB na conquista de novos públicos para a cultura.
Obrigado, Miguel Lobo Antunes.

terça-feira, abril 24, 2001

Três horas e 18 minutos

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 24 de Abril de 2001
Crónica x/2001

Três horas e 18 minutos é o tempo que passa em média, por dia, um português diante do seu televisor. Três horas e 18 minutos que poderiam ser, na melhor das hipóteses, de divertimento e descontracção, mas que são compostas principalmente por embrutecimento opiáceo e nesse conformismo envergonhado que se chama "zapping".
Poder-se-á dizer que "há quem goste", mas a questão é que há muita gente que não gosta e, não gostando, vê. Ou que nem se pergunta se gosta e o faz porque a televisão entrou na sua natureza. A televisão inscreveu-se no nosso quotidiano como uma dependência e é como uma dependência que sobrevive, um vício adormecente, que come o nosso tempo como uma térmite, que só tenta acordar-nos para nos lembrar que "shampoo" temos de usar.
Todos sabemos que a televisão pode ser algo de diferente e que às vezes é... mas também sabemos que isso é raro. A maioria do que se vê na televisão é mau, uma grande parte é verdadeiro lixo e depois resta ainda aquela agressão reiterada chamada publicidade.
É por tudo isto que iniciativas como a da Semana Sem Televisão, lançada pela revista canadiana "Adbusters" e que teve ontem início — ou a sua tímida contrapartida nacional, os quinze minutos sem televisão de sábado passado, de 20h00 às 20h15 — são bem-vindos.
Bem-vindos porque nos mostram que há uma alternativa, que não estamos sós e que nos lembram que, se calhar, até podemos realmente mudar o mundo (aquilo a que se chamava política, lembram-se?).
Seria ingenuidade esperar que muita gente aderisse a um programa de protesto tão duro como o canadiano, mas é importante lembrar que é possível agarrar naquelas três horas e 18 minutos e fazer outra coisa.
Pelo menos empenhe-se em baixar a média nacional, olhe para as três horas e 18 minutos e tente reduzir, como faz com os cigarros, como faz com as gorduras.
Na realidade, aquelas três horas e 18 minutos são calorias que você está a consumir a mais, são fatias de toucinho frito que vão encher de gordura as artérias da sua inteligência, atufar de celulite as coxas da sua imaginação. Se não conseguir cortar de repente não corte (até lhe podia fazer mal), mas reduza.
Um telejornal representa pouco mais que uma cenoura cozida, isso pode ver (ainda que às vezes apareçam cheios de molho gordurento) e também pode condescender até um episódio por dia daquele folhetim, mas não se deixe enganar pelos "talk shows" que parecem dietéticos mas estão cheios de colesterol e nem sequer sabem tão bem como isso. E não engula nenhum concurso sem ler antes a informação em letras pequeninas no fundo da caixa. (Atenção que eles às vezes contam as calorias em minutos quando sabem que todos vemos cinquenta minutos mais os intervalos.) Lembre-se de que bastam dez minutos de um concurso para lhe engordurar o olhar e reduzir a libido.
Se não conseguir melhor, fique-se pelas três horas e 17 minutos, mas baixe a média. Comece hoje, comece amanhã, mas comece. Acrescente uns minutos à sua vida. Não ligue a televisão.

terça-feira, abril 17, 2001

Mais leis para a estrada

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 17 de Abril de 2001
Crónica x/2001


Algumas horas antes do início das mini-férias da Páscoa, onde se esperava a habitual carnificina rodoviária, o Governo veio apresentar um novo pacote de medidas de combate aos acidentes.
A razoabilidade das medidas propostas não está em causa. O que suscita alguma surpresa é o facto de o Governo e a Administração Pública continuarem a falar da sinistralidade como se se tratasse de algo que a simples produção de legislação pudesse controlar.
Ao ouvir os discursos sobre o tema, ficamos com a convicção de que se foram experimentando sucessivas políticas que tudo levava a crer que seriam eficazes, que elas foram falhando sucessivamente para nossa enorme surpresa e que somos obrigados a puxar pela imaginação, tentando abordagens legislativas originais, para ver se se acerta com a solução, que continua a fazer-se esquiva.
A falácia deste raciocínio é que, na realidade, as soluções não foram experimentadas. Tudo aquilo que compõe o Código da Estrada, com excepção da circulação pela direita, é ignorado pela generalidade dos automobilistas, com alegria e impunidade, e vai continuar a sê-lo.
Os automobilistas portugueses não vêem o Código da Estrada como um instrumento social que visa garantir a fluidez e a segurança do tráfego, mas como uma ferramenta legal para decidir quem paga quando se bate. O problema é que às vezes não se bate apenas mas também se mata.
A verdade é que as leis que regulam a circulação não são aplicadas, a não ser em períodos excepcionais de zelo como as tontas operações de "tolerância zero" — que não são senão caricaturas de medidas razoáveis. Não é uma multa por se exceder o limite de velocidade em 10 quilómetros à hora que leva um automobilista a sentir a necessidade de cumprir a lei. Pelo contrário.
Todos sabemos a razão da esmagadora maioria dos acidentes na estrada: excesso de velocidade, ultrapassagens irregulares, etc. É evidente que seria possível identificar os prevaricadores perigosos e aplicar a lei de forma dissuasora (já experimentaram colocar-se na faixa da esquerda de uma auto-estrada a 120 quilómetros à hora? Subir a Av. da República de Lisboa a 100 à hora e ver se conseguem ultrapassar alguém? Contar quantos carros passam com vermelho na Av. da Liberdade?), mas é claro que o Governo não o pretende fazer. E não o quer fazer porque sabe que isso seria visto como um ataque por aquela faixa do seu eleitorado para quem o carro é parte integrante da imagem do seu corpo — a imagem mais correcta é a de um implante peniano, o que também é válido para as mulheres.
A aplicação da lei não basta. A existência de transportes públicos que sejam uma alternativa possível e agradável ao transporte privado é essencial. Mas sem a vontade de afrontar aqueles que acham que têm um direito divino a ultrapassar pela direita, os mortos e os feridos vão continuar.

terça-feira, abril 10, 2001

O Volvo em cima do passeio

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 10 de Abril de 2001
Crónica x/2001


Domingo, depois do almoço. Um dia glorioso. O sítio é a esplanada do Jardim das Oliveiras, no Centro Cultural de Belém.

Um carro avança ao longo do CCB, frente ao rio, pelo caminho que dá acesso ao parque de estacionamento subterrâneo. Passa a entrada do parque e vai estacionar umas dezenas de metros mais à frente, duas rodas sobre o passeio, duas rodas no asfalto, na via de saída do parque de estacionamento para a Av. da Índia, a dois passos da escada de pedra que dá acesso ao terraço.

O Secretário de Estado da Defesa Nacional, Miranda Calha, sai do carro, indumentária informal de fim de semana, seguido de uns acompanhantes e dirige-se ao recinto do CCB. Uma tarde descontraída em Belém.

O parque de estacionamento do CCB está praticamente vazio. Não foi por falta de lugar que o condutor preferiu não estacionar o carro no parque. Nenhum dos seus passageiros dá mostras de dificuldades de locomoção que possam justificar o recurso ao lugar escolhido (nem este aliás parece mais acessível que o parque).

As pessoas que, do alto do terraço, olham o político sair do carro e o acompanham com o olhar enquanto ele se dirige à esplanada, não parecem nem surpreendidas nem chocadas com o lugar do estacionamento. Aqueles lugares costumam estar ocupados por carros cujos donos preferem poupar os 200 escudos do parque, ainda que as cilindradas levem a crer que o desembolso fosse suportável.

Afinal é domingo, está um lindo dia, e estacionar displicentemente em cima do passeio tem algo de desportivo — ainda que o carro não seja um todo-o terreno especialmente desenhado para galgar passeios mas sim um Volvo de proporções governamentais.

Sejamos justos e sistemáticos. É possível que o membro do Governo tenha estacionado em cima do passeio por várias razões:

a) o estacionamento é pago e a infracção de borla

b) um membro do Governo tem de mostrar que o poder é imune às críticas

c) pensava que o estacionamento em cima do passeio tinha passado a ser obrigatório desde a última revisão constitucional

d) nunca lhe disseram que isso dificulta a vida dos peões porque há vários anos que não fala com nenhum

e) tem a certeza de que nenhum agente da autoridade está a trabalhar neste dia glorioso e, se estiver, sabe que ele/ela nunca terá a irrazoabilidade de o multar

f) o ar domingueiro é apenas um disfarce. O membro do Governo está na realidade envolvido numa operação vital para a Defesa Nacional e é fundamental estacionar num local que lhe permita uma fuga rápida

g) as leis que regulam o estacionamento, os limites de velocidade ou o pagamento de impostos são apenas armadilhas para capturar os indivíduos sem iniciativa e Portugal precisa de iniciativa para vencer os desafios do futuro

h) o Secretário de Estado está-se borrifando para as normas de estacionamento, os peões, a lei, o bem-estar das pessoas que não usam um Volvo de proporções governamentais e para este teste de escolha múltipla.

Pode escolher mais de uma resposta.

terça-feira, abril 03, 2001

O eterno ("handicap") feminino

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 3 de Abril de 2001
Crónica x/2001


As propostas de quotas mínimas para cada um dos sexos (leia-se para as mulheres) nas listas eleitorais e nos órgãos políticos vão ser votadas esta semana no Parlamento.
O facto das quotas para as mulheres constituírem uma medida de discriminação (positiva, mas discriminação), tem sido suficiente para que algumas vozes tenham criticado a medida por uma questão de princípio. Para estes críticos, a democracia deve ver todos os cidadãos como seres iguais em direitos e deveres, não permitindo e muito menos proporcionando tratamentos de favor seja a que grupos for.
De facto, porém, as situações de favorecimento de certos grupos sociais considerados à partida menos favorecidos sempre existiram. São medidas de discriminação positiva o estacionamento reservado aos deficientes motores, a prioridade nas bichas para as mulheres grávidas, o acesso à habitação proporcionado aos moradores de bairros degradados ou os princípios que facilitam o acesso das regiões mais pobres a certos financiamentos comunitários.
Nenhum destes princípios parece criticável porque se considera que eles pretendem corrigir uma injusta desigualdade existente à partida e proporcionar igualdade de oportunidades a indivíduos que, sem algum favorecimento, nunca ficariam nas mesmas circunstâncias que os restantes.
É evidente que se pode argumentar que a discriminação positiva atribui um estatuto de menoridade aos indivíduos cujo espaço pretende assegurar. Mas este é um risco que, na maior parte dos casos, compensa largamente os riscos da inacção: o crescimento da dualidade, numa bola de neve de discriminação social.
As medidas de discriminação positiva são aceitáveis quando se trata de corrigir um desequilíbrio provisório e apenas como medidas pontuais. Sem isso, acabarão inevitavelmente por ser vistas como injustas e por criar dois tipos de cidadãos, vários níveis de direitos. Um indivíduo nascido num bairro de lata não deve contar ao longo da vida com apoios especiais por esse facto (no acesso à escola, à habitação, ao emprego, ao crédito, à reforma) mas é razoável e desejável que, num dado momento, ele beneficie de um empurrão para lhe permitir ultrapassar esse "handicap" de partida.
É por isso que a questão das quotas parece longe de resolver o problema da falta de poder das mulheres. Se se oferecerem às mulheres lugares cativos no Parlamento apenas por serem mulheres, estaremos a dizer que o facto de ser mulher constituiu um “handicap”. E como é pouco provável que as mulheres deixem de o ser (ou seja, como o "handicap" é inultrapassável), um benefício deste tipo arrisca-se a ter de se eternizar sem jamais resolver a questão de fundo.
A única acção razoável consiste em identificar as razões que fazem com que as mulheres não possuam a proeminência social e política que pensamos que seria justa e atacar as raízes do mal. As propostas existem, só que nunca foram postas em prática.

terça-feira, março 20, 2001

Os tablóides ao serviço do povo?

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 20 de Março de 2001
Crónica x/2001


Num provocador e interessante texto publicado ontem neste jornal ("As lágrimas politicamente incorrectas"), o crítico Eduardo Cintra Torres insurge-se contra aqueles que criticaram o estilo "tablóide" da cobertura televisiva feita à tragédia de Castelo de Paiva.
Na sua opinião, a censura feita a essa cobertura deve-se ao facto de uma certa élite intelectual, habituada a instituir-se como intermediária dos desejos colectivos, considerar por esse facto como "politicamente incorrectas" as "lágrimas do povo". ECT dá mesmo a entender que essas críticas proviriam de uma cumplicidade com o poder, já que "a dor dos que perderam os seus familiares era em si mesma uma insuportável acusação" e as lágrimas vertidas não seriam mais do que a expressão de uma justa revolta.
Tendo escrito nesta mesma coluna na semana passada, em tom crítico, sobre o tema da cobertura televisiva de Castelo de Paiva, não posso deixar de aceitar a provocação de ECT — ainda que não me reveja nem em todas as críticas feitas à televisão nem, provavelmente, em todas as suas intenções.
Antes de mais, é bom lembrar que a linha do bom senso e do bom gosto impõe certas limitações de grau que são sempre difíceis de discutir e que a eventual utilização de um cronómetro também não ajudaria a clarificar. Se há imagens de desespero que pode ser imperativo mostrar, é evidente que existe um momento onde a insistência se torna excessiva. Essa linha, que define a diferença entre a informação com emoção e o vampirismo, é impossível de definir em teoria. E nas imagens de Castelo de Paiva houve muitos momentos, demasiados, onde o vampirismo, a exploração da emoção para fins circenses ou comerciais foi visível. E foi triste de ver. Porque nos sentimos na pele do outro e sabemos que quereríamos e mereceríamos o pudor se lá estivéssemos de facto.
É evidente que é dever do jornalista mostrar o desespero, testemunhar o luto e dar voz à revolta, mas não é isso que constitui um problema. O problema é quando o que se pede ao entrevistado está para lá da possibilidade do discurso. Se há perguntas que dão a voz, há perguntas que a calam e que mais não são do que uma forma de abuso de poder. Uma forma de negação do discurso do outro, de imposição de outro discurso, de exploração.
A crítica feita nesta coluna na semana passada é tanto uma crítica ética como técnica. Há relações, contextos e momentos que admitem que se pergunte "O que sentiu?" e que permitem uma resposta real. Há outros momentos onde ela é uma violação e uma mordaça. Para mais quando sabemos o que significa ser entrevistado na televisão, com um projector na cara, um jornalista que só ouve o som que sai do seu auricular e que pede a nossa cumplicidade para não estragarmos o espectáculo.
Há limites à liberdade de informar. Um desses limites é o âmbito da vida privada. As lágrimas por um filho ou por um pai não são as lágrimas por Amália ou a emoção do Presidente da República. E o jornalista deve ter o pudor de as respeitar.

terça-feira, março 06, 2001

Imagens de caça

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 6 de Março de 2001
Crónica x/2001


O fotógrafo David Douglas Duncan, conhecido pelos seus retratos de Picasso, acaba de publicar nos Estados Unidos um livro que reúne uma série de instantâneos de um outro monstro sagrado da fotografia, o francês Henri Cartier-Bresson.
A história não teria nada de especial se Cartier-Bresson, actualmente com 92 anos, não tivesse uma enorme aversão a ser fotografado e se o livro não constituísse uma publicação "não autorizada".
Duncan realizou as fotografias quando os dois homens tomavam um café no jardim do Museu Picasso, em Paris. Segundo Duncan, as fotos foram feitas em cinco minutos e Cartier-Bresson não pareceu incomodado pelos disparos. É evidente porém que o francês desconhecia a intenção de Duncan, da mesma forma que se sabe que o americano conhece a aversão de Cartier-Bresson a ver publicada a sua imagem.
O fotógrafo francês, ao ser informado da publicação do livro nos EUA, tentou dissuadir o seu colega, mas sem êxito. Agora, tenta evitar a publicação do livro em França, onde as leis de defesa da vida privada poderão garantir-lhe um êxito relativo — já que os franceses poderão comprar calmamente o livro através da Internet.
A pretensão de Cartier-Bresson é algo ingénua num mundo onde a vampirização da imagem alheia (íntima ou chocante se possível) se transformou numa forma de negócio e onde a "não autorização" constitui um cobiçado suplemento de picante.
Em Portugal, graças a programas como "Big Brother" e "Acorrentados", que exploram e incentivam a exposição da intimidade, o direito "à imagem" e "à reserva da intimidade da vida privada", que a Constituição garante e o Código Penal regula, passaram a ser vistos quase como bizarrices sem razão, valores menores perante a diversão que os programas pretendem promover. Há algo porém que se deve dizer em defesa destes programas: só lá é exibido quem se exibe.
O mesmo já não acontece com "reality shows" como "112", da TVI, ou "Histórias da Noite", da RTP1, que entram pela casa dentro de cidadãos e exibem a sua intimidade de uma forma tanto mais indecorosa quanto é apresentada como "informação". Na semana passada, num destes programas, uma ambulância do INEM acudia a uma mulher com insuficiência respiratória, em sua casa, perante o olhar cru das câmaras e a luz dos projectores, a sua luta para respirar transformada no nosso espectáculo. Depois, enquanto a mulher era levada para o hospital, uma médica do INEM contava-nos sem o mínimo rebuço a história clínica da doente. É irrelevante se a mulher autorizou a divulgação dessa informação, já que é evidente que, nas circunstâncias, não seria possível dar um consentimento livre e informado.
Numa sociedade livre, a intimidade pode ser exposta por quem o desejar, mas esse direito não pode fazer esquecer o da defesa da vida privada de todos os outros. E os jornalistas, em particular, não se podem esquecer de que a vida privada não é um terreno de caça.

terça-feira, fevereiro 27, 2001

O ridículo e o absurdo

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 27 de Fevereiro de 2001
Crónica x/2001


A Grande Enciclopédia Portuguesa do Ridículo ganhou na semana passada mais uma entrada de ouro com a queixa apresentada por Jorge Coelho contra a RTP, junto da Alta Autoridade para a Comunicação Social, devido a um invocado caso de favorecimento do PSD no tratamento noticioso (ver "PS Diz Que a RTP Anda a Favorecer o PSD ", PÚBLICO de 21.2.2001 ou http://jornal.publico.pt/2001/02/21/Media/R01.html).
O guião desta farsa é de tal forma ridículo que quase nos faz pensar se não andará por aqui a mão sapuda das Produções Fictícias, mas a história é anti-pedagógica a tantos títulos que será talvez proveitoso enumerá-los.
Primeiro, porque acontece que Jorge Coelho carece de uma posição que lhe permita indignar-se por esta suposta falta de equilíbrio de tratamento — ainda que ela exista — pelo facto de ser colaborador de um canal de televisão concorrente da RTP.
Que um ministro seja ao mesmo tempo consultor de uma empresa, parece a todos como algo naturalmente inconcebível. Devido a uma arcana interpretação da deontologia política, parece porém aceitável que um ministro seja comentador regular de uma televisão privada. Que isso aconteça, é lamentável. Que esse ministro se arvore o direito de dar lições de independência e equidade é uma desfaçatez. Alguma prudência, uma ténue noção de conflito de interesses ou o mero pudor teriam aconselhado o silêncio.
É precisamente a limitação de liberdade imposta por estes laços que aconselha que os políticos se mantenham tão longe quanto possível deste tipo de relação profissional.
(Como nota lateral, diga-se que é também devido à noção da existência de um conflito de interesses — e não apenas devido ao sentimento corporativo, real — que os jornalistas exercem uma tão débil acção crítica dos seus pares).
Segundo, porque a queixa se baseia não num rol de maus tratos mas num único episódio documentado de suposto favorecimento, o que sugere que a matéria de facto capaz de sustentar a acusação é escassa. A ideia com que ficamos depois de conhecer os dados que estão na base da queixa do PS é que a RTP deve ser a mais equilibrada das estações de televisão da Via Láctea... ou talvez a que mais generalizadamente favorece o PS...
Terceiro, porque os critérios de equidade que devem presidir aos julgamentos dos jornalistas não são critérios aritméticos (se o fossem, a informação mais equilibrada seria a dos tempos de antena) mas devem basear-se, pelo contrário, numa justa avaliação da importância da notícia e essa tem sempre um elemento subjectivo e depende dos contextos (das outras notícias do dia, das dos dias anteriores, dos meios existentes na redacção num dado momento, etc).
E, finalmente, porque ao exigir uma "equidade ao segundo", Jorge Coelho tem forçosamente de se colocar no papel irrepreensível de quem a irá garantir em todos os assuntos que lhe passem pelas mãos. Uma perfeita redução ao absurdo.

terça-feira, fevereiro 20, 2001

Representação

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 20 de Fevereiro de 2001
Crónica x/2001


A ratificação do Tribunal Penal Internacional deu origem nos últimos dias a uma pequena avalanche de textos de opinião, editoriais e debates.
A discussão não é fácil porque a questão tem a particularidade de colocar frente a frente bens igualmente estimáveis e contraditórios: de um lado, o justo desejo de punir os grandes criminosos negligenciados pelas justiças nacionais e o primado dos Direitos Humanos sobre os códigos nacionais. Do outro, os princípios de soberania nacional e o princípio humanista do Código Penal português que recusa as penas perpétuas — para deixar de lado as imunidades dos detentores de cargos públicos.
Trata-se de saber, neste caso, quais destes bens temos por essenciais e inalienáveis e quais consideramos negociáveis em troca de um menor mal ou de um maior bem — no duplo plano da moral e da política.
(Diga-se à margem que defendo a ratificação do TPI, com algum cepticismo mas sem hesitação.)
O curioso nesta discussão tem sido que, quando se torna evidente o choque entre o desejo de prevenir/punir um genocídio e a necessidade de prescindir da humanidade das penas portuguesas, venha à baila a eventualidade de se realizar um referendo. Como se, confrontados por um dilema que não passa pela facilidade da fracção ideológica, os votos do povo pudessem servir de moeda ao ar.
Um preocupante corolário que se pode extrair desta proposição é que os nossos representantes eleitos parecem considerar-se as melhores pessoas para tomar as decisões relativamente às quais os partidos têm posições claras e opostas, mas já não para decidir questões de maior profundidade filosófica. O que é perturbador para aqueles (poucos) que se apressam a falar de referendo não é o confronto nem as ideais em presença, mas a dúvida.
Para este tipo de questão, o referendo não pode ser uma possibilidade. O referendo é adequado para que uma população escolha entre duas possibilidades aceitáveis (ambas) no plano dos princípios, mas não pode ser a base da moral ou da política. Serve para ver de que lado estão mais interesses — o que é legítimo e razoável em muitos casos. Mas não pode ser um escape para a pusilanimidade.
É precisamente neste tipo de questões que a democracia representativa tem de mostrar a sua virtude. Esta parece-nos um melhor sistema que a democracia directa não só porque é mais eficaz, nem só porque nos permite eleger os melhores de entre nós, mas também porque obriga os eleitos a representar-nos de forma pública — comprometendo-se a representar (há uma componente teatral na política) o papel de políticos honestos, competentes, corajosos e empenhados no interesse público. Independentemente da qualidade da nossa escolha, a visibilidade da representação garante de alguma forma que os nossos eleitos serão melhores do que nós (ou se esforçarão por sê-lo), ainda que o não fossem à partida — numa espécie de profecia auto-realizadora positiva.

terça-feira, fevereiro 13, 2001

Precisamos de saber

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 13 de Fevereiro de 2001
Crónica x/2001


Há uma pergunta que pode ser declinada de inúmeras maneiras, mas que condiciona todas as outras. Como é que devemos viver? Que princípios nos devem conduzir nos nossos actos? O que é que está certo e o que é que está errado?
A pergunta é particularmente difícil porque não tem uma resposta, mas milhões. Intuímos que deve haver uma forma simples de responder, uma fórmula universal, mas a nossa experiência ensina-nos que essa resposta é diferente para cada caso, cada época, cada país. É uma pergunta a que não se responde apenas com uma receita, com um preceito, mas com os actos que praticamos todos os dias, a cada momento — é uma pergunta à qual não se consegue fugir com a batota das declarações de princípio.
No tempo em que as regras de comportamento e a definição do bem e do mal eram ditadas pelos deuses, as coisas eram mais simples. Havia uma doutrina e sacerdotes capazes de a interpretar, recompensas e castigos que marcavam claramente a escolha certa e o caminho da danação. Nas sociedades democráticas e laicas, a lei é o que mais se aproxima desse corpo normativo, mas preocupa-se apenas em definir interditos ou em impor regras convencionais — que são práticas, mas não se podem confundir com a ética.
As escolhas raramente são evidentes (ou pelo menos nunca o são quando já nos surgem como questões éticas) porque nos obrigam quase sempre a equilibrar valores que são todos importantes mas que não deixam por esse facto de ser contraditórios. Seria demasiado fácil.
Como devemos viver? Não há manuais que nos possam responder. Os códigos deontológicos que existem nalgumas profissões são isso mesmo, deontológicos, definem deveres profissionais.
A ética não tem códigos, vive da jurisprudência. Vive de analogias, de comparações, de exemplos, da análise das consequências. As suas referências são os exemplos vivos, ao nosso lado, os exemplos mortos da História.
Para saber como devemos viver, não é possível ignorar como viveram os que viveram antes.
Vem tudo isto a propósito da polémica sobre a colaboração da IBM com o regime nazi. Que a IBM colaborou com os nazis, está para além da dúvida. Os documentos citados no livro de Edwin Black provam-no (mesmo que nos atenhamos apenas às citações desses documentos). Mas é importante saber até que ponto colaborou, saber o que sabiam os administradores em Nova Iorque sobre o fim dos recenseamentos, sobre o uso dado às máquinas que se encontravam nos campos da morte, o que sabiam os responsáveis das várias filiais da empresa, saber por quanta eficiência (por quantas mortes) a tecnologia IBM foi responsável, conhecer a verdadeira dimensão desse envolvimento.
A IBM tem o dever de abrir os seus arquivos, de permitir o escrutínio de cada guia de remessa, de cada nota de encomenda, de cada carta e de cada factura, porque as pessoas tem o direito de saber. Têm direito a saber todos os que foram vítimas do nazismo, todos os familiares dos exterminados e todos os outros. Temos o direito de saber porque precisamos de saber. Precisamos de saber porque precisamos de poder julgar, de poder avaliar, perdoar e condenar. Precisamos de poder julgar porque a equidade do tratamento é uma das bases da nossa ética, que impõe a reciprocidade e a equidade como uma norma. Porque não podemos condenar uns e perdoar outros que tenham cometidos os mesmos actos.
Precisamos de saber o que fizeram essas pessoas da IBM, há 60 anos, porque as instituições (e as marcas) transportam valores (e bens) para além do período de vida das pessoas e têm de ser julgadas não apenas pelos actos das pessoas que as compõem mas também pelos actos que praticaram como instituições. Ou não são as empresas as primeiras a invocar a sua tradição e os seus actos passados quando se trata de afirmar as qualidades de uma marca?
Neste novo século, não queremos ter de tornar de novo a descrever o indescritível, não queremos ter de encarar o insuportável, de sofrer o inexplicável. Para isso, é preciso que possamos aprender com os nossos erros. E, para isso, é preciso que os conheçamos.
Mais ainda neste novo mundo onde nos dizem que a concorrência global é o único caminho para o bem-estar, onde só pode haver vencedores, onde a ideologia da vitória parece querer tornar-se o único critério de decisão.

terça-feira, fevereiro 06, 2001

Vivam as escadas

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 6 de Fevereiro de 2001
Crónica x/2001

Se perguntássemos aos moradores do município de Lisboa quais são os problemas que consideram que a sua Câmara deveria resolver com mais urgência encontraríamos uma lista de onde constariam certamente a mediocridade dos transportes públicos, o trânsito, o estacionamento sobre os passeios (três faces da mesma moeda); a falta de simples passeios e espaços de lazer criados para o uso os peões; a falta de segurança nalgumas zonas da cidade (que é outra maneira de dizer desertificação urbana); a sujidade das ruas; a degradação dos imóveis; a falta de convivialidade da cidade; os inúmeros perigos que a cidade oferece aos peões em geral e aos idosos em particular; o desaparecimento do pequeno comércio; as ruas alagadas quando chove, etc.
Penso que seria altamente improvável que alguém pusesse numa lista desse tipo acima da trigésima posição o difícil acesso do Martim Moniz ao castelo de S. Jorge.
A solução encontrada para facilitar o acesso da Mouraria ao Castelo é, assim, pelo menos estranha, pois parece uma solução para um problema que não existia, ou existia mas não era urgente e que, de qualquer forma, podia ser solucionado de outras formas.
Pode dizer-se que a gestão de uma cidade não se resume a resolver os problemas urgentes e que há outros aspectos que têm de merecer a atenção dos autarcas, como a necessidade de prever e evitar problemas futuros ou o embelezamento e melhoramento geral da cidade.
O problema é que, também aqui, não se encontra razão para a decisão da Câmara, pois o elevador proposto parece ser a forma mais cara e menos prática de resolver qualquer problema de acesso (cuidar das ruas de acesso ao Castelo e, eventualmente, criar um vaivém de dimensão adequada às ruas parece mais sensato) e tem-se alguma dificuldade em imaginar que ele possa constituir um embelezamento, com o seu ar de mostruário de betão, típico dos anos 50, e o seu design industrial (aceitável para a correia transportadora de uma fábrica) mas certamente nem elegante, nem ousado.
João Soares, na pequena exposição patente nos Paços do Concelho sobre o elevador, faz uma imodesta comparação com a torre Eiffel — de quem também pouca gente gostava no início. A analogia não é das melhores. A torre foi uma proeza técnica, teve o mérito de não se propor desfear Notre Dame e... não servia para nada.
A Câmara de Lisboa não gosta de peões. Os peões chateiam, muitos deles são velhos e andam na estrada porque os passeios escorregam, alguns até nem gostam de buracos nem de andar na lama. O elevador tem o mérito de os concentrar num tubo, o que permite que não seja preciso preocuparmo-nos com eles nas encostas do Castelo.
O arquitecto e ensaísta Paul Virilio diz que, quando se inventa o elevador, perdem-se as escadas. Lisboa tem direito às suas escadas, ao seu relevo, às suas colinas. E a uma autarquia que resolva problemas reais de forma sensata.
Crónica

$Vivam as escadas

José Vítor Malheiros

Se perguntássemos aos moradores do município de Lisboa quais são os problemas que consideram que a sua Câmara deveria resolver com mais urgência encontraríamos uma lista de onde constariam certamente a mediocridade dos transportes públicos, o trânsito, o estacionamento sobre os passeios (três faces da mesma moeda); a falta de simples passeios e espaços de lazer criados para o uso os peões; a falta de segurança nalgumas zonas da cidade (que é outra maneira de dizer desertificação urbana); a sujidade das ruas; a degradação dos imóveis; a falta de convivialidade da cidade; os inúmeros perigos que a cidade oferece aos peões em geral e aos idosos em particular; o desaparecimento do pequeno comércio; as ruas alagadas quando chove, etc.
Penso que seria altamente improvável que alguém pusesse numa lista desse tipo acima da trigésima posição o difícil acesso do Martim Moniz ao castelo de S. Jorge.
A solução encontrada para facilitar o acesso da Mouraria ao Castelo é, assim, pelo menos estranha, pois parece uma solução para um problema que não existia, ou existia mas não era urgente e que, de qualquer forma, podia ser solucionado de outras formas.
Pode dizer-se que a gestão de uma cidade não se resume a resolver os problemas urgentes e que há outros aspectos que têm de merecer a atenção dos autarcas, como a necessidade de prever e evitar problemas futuros ou o embelezamento e melhoramento geral da cidade.
O problema é que, também aqui, não se encontra razão para a decisão da Câmara, pois o elevador proposto parece ser a forma mais cara e menos prática de resolver qualquer problema de acesso (cuidar das ruas de acesso ao Castelo e, eventualmente, criar um vaivém de dimensão adequada às ruas parece mais sensato) e tem-se alguma dificuldade em imaginar que ele possa constituir um embelezamento, com o seu ar de mostruário de betão, típico dos anos 50, e o seu design industrial (aceitável para a correia transportadora de uma fábrica) mas certamente nem elegante, nem ousado.
João Soares, na pequena exposição patente nos Paços do Concelho sobre o elevador, faz uma imodesta comparação com a torre Eiffel — de quem também pouca gente gostava no início. A analogia não é das melhores. A torre foi uma proeza técnica, teve o mérito de não se propor desfear Notre Dame e... não servia para nada.
A Câmara de Lisboa não gosta de peões. Os peões chateiam, muitos deles são velhos e andam na estrada porque os passeios escorregam, alguns até nem gostam de buracos nem de andar na lama. O elevador tem o mérito de os concentrar num tubo, o que permite que não seja preciso preocuparmo-nos com eles nas encostas do Castelo.
O arquitecto e ensaísta Paul Virilio diz que, quando se inventa o elevador, perdem-se as escadas. Lisboa tem direito às suas escadas, ao seu relevo, às suas colinas. E a uma autarquia que resolva problemas reais de forma sensata.

terça-feira, janeiro 02, 2001

Observados

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 2 de Janeiro de 2001
Crónica 1/2001


Uma das maravilhas tecnológicas do comércio electrónico que a Web prometeu às empresas foi a capacidade de monitorizar o comportamento dos seus clientes de forma automática. Navegar na Internet é, de facto, saltar de computador em computador, e todos sabemos que os computadores têm o obsessivo hábito de registar tudo o que lhes fazemos.
Não é possível fazer uma compra na Internet sem que esse acto fique registado numa base de dados e, à medida que as nossas compras vão crescendo, essas bases de dados vão guardando informações cada vez mais detalhadas sobre os nossos hábitos, as nossas preferências, os nossos gostos, sobre nós.
Hoje, para conhecer os gostos de uma clientela potencial, basta um programa que analisa as cascatas de cliques que saem dos nossos ratos.
É evidente que este conhecimento tem um lado positivo tanto para os vendedores como para os consumidores: as empresas podem desta forma fazer ofertas compatíveis com as preferências e necessidades dos seus clientes potenciais, aumentando as suas vendas e a satisfação dos compradores.
Porém, é conveniente não perder de vista as implicações sociais de um tal sistema.
À medida que a Web se vai tornando um espaço cada vez mais vigiado, o grau de liberdade de que gozamos nesse espaço sofre uma restrição. É irrelevante que a informação que é recolhida sobre nós vise vender-nos cada vez mais produtos e não o controlo autoritário dos nossos gestos. O fundo da questão é que, cada vez mais, cada gesto que fazemos na Web é seguido por um programa e essa monitorização, só por si, é uma redução da nossa liberdade.
A liberdade não é só o direito e a possibilidade de agir segundo a nossa consciência moral, as nossas escolhas racionais e as nossas preferências emocionais. É também o direito de o fazer secretamente, sem que ninguém o possa saber. A liberdade está ligada ao anonimato de que podemos gozar, à protecção da nossa esfera privada.
A física quântica ensinou-nos que a observação altera os eventos observados, a antropologia confirma que alguém que é observado age de forma condicionada.
Quando estamos protegidos dos olhares exteriores estamos também protegidos de pressões, de censuras, de represálias.
Sentimo-nos mais livres numa cidade estrangeira porque nos sentimos livres do escrutínio dos nossos pares, da atenção dos nossos vizinhos, porque somos mais anónimos.
O sufrágio nos países democráticos é secreto por se considerar que a vontade dos eleitores só se pode exprimir de forma verdadeiramente livre se for feita de forma anónima, no segredo de uma cabine de voto.
A Web e o comércio electrónico precisam da confiança dos utilizadores, mas essa confiança só existirá se cada internauta puder saber, em cada momento, que informação está a ser colhida sobre o seu comportamento e se puder controlar facilmente essa informação e recusar o seu processamento. Os cidadãos devem exigir esse controlo, as empresas devem proporcioná-lo e as autoridades devem garanti-lo.

segunda-feira, janeiro 01, 2001

Crónicas e Cª

Este blog irá incluir textos já publicados no Público sob a forma de crónicas, comentários ou críticas.