terça-feira, fevereiro 13, 2001

Precisamos de saber

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 13 de Fevereiro de 2001
Crónica x/2001


Há uma pergunta que pode ser declinada de inúmeras maneiras, mas que condiciona todas as outras. Como é que devemos viver? Que princípios nos devem conduzir nos nossos actos? O que é que está certo e o que é que está errado?
A pergunta é particularmente difícil porque não tem uma resposta, mas milhões. Intuímos que deve haver uma forma simples de responder, uma fórmula universal, mas a nossa experiência ensina-nos que essa resposta é diferente para cada caso, cada época, cada país. É uma pergunta a que não se responde apenas com uma receita, com um preceito, mas com os actos que praticamos todos os dias, a cada momento — é uma pergunta à qual não se consegue fugir com a batota das declarações de princípio.
No tempo em que as regras de comportamento e a definição do bem e do mal eram ditadas pelos deuses, as coisas eram mais simples. Havia uma doutrina e sacerdotes capazes de a interpretar, recompensas e castigos que marcavam claramente a escolha certa e o caminho da danação. Nas sociedades democráticas e laicas, a lei é o que mais se aproxima desse corpo normativo, mas preocupa-se apenas em definir interditos ou em impor regras convencionais — que são práticas, mas não se podem confundir com a ética.
As escolhas raramente são evidentes (ou pelo menos nunca o são quando já nos surgem como questões éticas) porque nos obrigam quase sempre a equilibrar valores que são todos importantes mas que não deixam por esse facto de ser contraditórios. Seria demasiado fácil.
Como devemos viver? Não há manuais que nos possam responder. Os códigos deontológicos que existem nalgumas profissões são isso mesmo, deontológicos, definem deveres profissionais.
A ética não tem códigos, vive da jurisprudência. Vive de analogias, de comparações, de exemplos, da análise das consequências. As suas referências são os exemplos vivos, ao nosso lado, os exemplos mortos da História.
Para saber como devemos viver, não é possível ignorar como viveram os que viveram antes.
Vem tudo isto a propósito da polémica sobre a colaboração da IBM com o regime nazi. Que a IBM colaborou com os nazis, está para além da dúvida. Os documentos citados no livro de Edwin Black provam-no (mesmo que nos atenhamos apenas às citações desses documentos). Mas é importante saber até que ponto colaborou, saber o que sabiam os administradores em Nova Iorque sobre o fim dos recenseamentos, sobre o uso dado às máquinas que se encontravam nos campos da morte, o que sabiam os responsáveis das várias filiais da empresa, saber por quanta eficiência (por quantas mortes) a tecnologia IBM foi responsável, conhecer a verdadeira dimensão desse envolvimento.
A IBM tem o dever de abrir os seus arquivos, de permitir o escrutínio de cada guia de remessa, de cada nota de encomenda, de cada carta e de cada factura, porque as pessoas tem o direito de saber. Têm direito a saber todos os que foram vítimas do nazismo, todos os familiares dos exterminados e todos os outros. Temos o direito de saber porque precisamos de saber. Precisamos de saber porque precisamos de poder julgar, de poder avaliar, perdoar e condenar. Precisamos de poder julgar porque a equidade do tratamento é uma das bases da nossa ética, que impõe a reciprocidade e a equidade como uma norma. Porque não podemos condenar uns e perdoar outros que tenham cometidos os mesmos actos.
Precisamos de saber o que fizeram essas pessoas da IBM, há 60 anos, porque as instituições (e as marcas) transportam valores (e bens) para além do período de vida das pessoas e têm de ser julgadas não apenas pelos actos das pessoas que as compõem mas também pelos actos que praticaram como instituições. Ou não são as empresas as primeiras a invocar a sua tradição e os seus actos passados quando se trata de afirmar as qualidades de uma marca?
Neste novo século, não queremos ter de tornar de novo a descrever o indescritível, não queremos ter de encarar o insuportável, de sofrer o inexplicável. Para isso, é preciso que possamos aprender com os nossos erros. E, para isso, é preciso que os conheçamos.
Mais ainda neste novo mundo onde nos dizem que a concorrência global é o único caminho para o bem-estar, onde só pode haver vencedores, onde a ideologia da vitória parece querer tornar-se o único critério de decisão.

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