terça-feira, abril 28, 2009

Tortura nunca mais

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 28 de Abril de 2009
Crónica 13/2009

Seria um erro pensar que a recente febre de transparência compensa por si os desvios totalitários da anterior presidência

Nas últimas semanas, os americanos redescobriram que a Administração Bush autorizou o uso da tortura nos interrogatórios de prisioneiros suspeitos de pertencer a redes terroristas. Os americanos redescobriram também que a mesma Administração, através do próprio Presidente e do vice-presidente Dick Cheney, suspendeu princípios básicos do direito, como a presunção de inocência, e retirou àqueles mesmos prisioneiros o direito de defesa e o direito a um julgamento justo, além de os submeter a outros atropelos, como mantê-los em prisões secretas, de localização desconhecida para os próprios e seus familiares, de forma não só a poder negar a sua existência mas também numa tentativa algo infantil de os subtrair à protecção conferida pela lei americana ("Lei americana? Mas eles não estão numa prisão americana!")
Os americanos redescobriram tudo isto, porque há anos que já sabiam tudo isto. Os mais distraídos já o sabiam pelo menos há cinco anos. E os mais atentos já o sabiam desde o final de 2002 - através de relatos publicados na primeira página dos grandes jornais nacionais.
A imprensa americana tem coberto nos últimos anos, com apreciável profundidade, a vergonha das prisões secretas, das transferências ilegais de prisioneiros (os "voos da CIA") através de países com governos de escrúpulos flexíveis (como Portugal), da tortura que George W. Bush baptizou com o eufemismo "conjunto de procedimentos alternativos de interrogatório", num discurso famoso em 2006, e que outros chamaram "métodos reforçados" e coisas semelhantes.
É um mérito da democracia americana que tudo isto esteja a ser revisitado, que investigações estejam a ser levadas a cabo e os seus resultados publicados, que a imprensa esteja a aprofundar os dossiers, que muitos documentos estejam a ser desclassificados para poderem ser apreciados pelos cidadãos - americanos e do resto do mundo - que se viram involuntariamente envolvidos nesta vergonhosa operação. Como é um mérito do Presidente Obama o seu empenho em investigar e esclarecer este período negro da História americana - apesar do seu declarado empenho em que os Estados Unidos saibam "olhar para a frente", em vez de "olhar para trás".
É também um mérito do sistema que alguns congressistas considerem a criação de uma comissão "Verdade e Reconciliação" em nome do apuramento dos factos - independentemente das críticas que a sua proposta de amplas amnistias suscitou. E é também um inegável mérito da democracia americana que haja quem defenda a responsabilização criminal e o julgamento de todos aqueles que parecem ser culpados de crimes de guerra ou de promoção da tortura e do tratamento desumano de prisioneiros - com a sinistra figura de Dick Cheney à cabeça.

Quando se mencionam os horrores levados a cabo pela Administração Bush-Cheney em nome da "Guerra contra o Terror" e se listam os atentados conscientemente praticados por esta contra a liberdade, contra a democracia, contra o direito, há sempre quem sublinhe a vitalidade de uma democracia que permite que estes podres sejam, apesar de tudo, investigados e submetidos ao escrutínio do povo. Reconheço, sem qualquer reserva mental, essa vitalidade.

Seria, porém, um grave erro considerar que, de alguma forma, esta vitalidade democrática e esta recente febre de transparência e responsabilização compensam os desvios totalitários da anterior presidência americana, como se Obama compensasse Bush, como se a simples existência do primeiro resgatasse os crimes do segundo e pudéssemos ir dormir de novo descansados, depois deste jogo de soma zero. As vítimas de Bush - que são, antes de mais, os cidadãos americanos - merecem mais. Merecem justiça.

A vitalidade democrática do povo americano só será comprovada - e a sua democracia reavivada - se as investigações prosseguirem de forma independente, forem levadas até ao fim e se forem responsabilizados os culpados. A começar por cima, pelos que deram as ordens, pelos que mudaram clandestinamente as leis para que a tortura se tornasse admissível. Jornalista (jvm@publico.pt)

domingo, abril 26, 2009

Página de Rosto - Lidia Yusupova: de Grozny, com coragem


por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 26 Abril 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 13



Lidia Yusupova, advogada, activista de direitos humanos (Rússia)


As candidaturas para o Nobel da Paz deste ano já fecharam. Geralmente, é até Fevereiro de cada ano que o Comité Nobel que escolhe o laureado com o prémio da Paz aceita nomeações. As que cheguem depois dessa data só serão consideradas para o prémio do ano seguinte. Os cinco membros do Comité, nomeados pelo Storting, o parlamento norueguês, precisam de tempo para avaliar as propostas. É em Fevereiro que o Comité reúne pela primeira vez para escolher o laureado do ano e as propostas devem estar todas em cima da mesa nessa altura. Há muitas entidades que podem enviar nomeações, de membros de governos a antigos laureados e o pacote de nomeados costuma rondar as duas centenas. E, como se imagina, existe um lobbying considerável, para convencer diferentes entidades a apresentar um mesmo nome, para apresentar os seus méritos à melhor luz, para convencer os membros do Comité da utilidade e da justiça de um dado prémio. Porque o Nobel da Paz é um instrumento político, que se pretende que não apenas reconheça os esforços de um indivíduo ou organização, mas que possa promover a causa da paz.

Mas se há lobbying para promover candidatos, também existem pressões para afastar nomes, que não são menores. Há prémios que valem antes de mais pela denúncia que fazem e que são espinhos cravados na garganta de poderosos.

O nome de Lidia Yusupova estará certamente entre os candidatos deste ano, como esteve nos anos anteriores, assim como a organização a que pertence, a Memorial, uma prestigiada organização russa de investigação histórica, criada em 1992, que faz o levantamento e denúncia de atentados aos direitos humanos.

Em 2006, quando a nomeação de Lidia (ou Lida) Yusupova para o Nobel da Paz foi noticiada pela imprensa, esta advogada, hoje com 47 anos de idade, que era então a responsável pela delegação da Memorial em Grozny, a capital da Tchetchénia, recebeu no seu telemóvel um telefonema de um homem, que falava tchetcheno, que lhe disse: “Então, está contente por saber que foi nomeada para o Prémio Nobel da Paz? Mas sabe… para receber o prémio precisa de estar viva. Sabe o que seria melhor para si? Que deixasse de fazer o que está a fazer e que não ganhasse o prémio. Mesmo que viva até lá”.

A ameaça de morte surgia num contexto que lhe dava uma particular credibilidade: a jornalista Anna Politkovskaia tinha sido assassinada dias antes, quando entrava no elevador de sua casa, com vários tiros à queima-roupa, num típico assassinato contratado. Os responsáveis nunca foram identificados mas as suspeitas rondaram o Kremlin, os serviços secretos russos (mais ou menos por conta própria) e a clique dirigente tchetchena pró-russa. Três homens acusados de cumplicidade no crime de Politskaia chegaram a ser levados a tribunal, mas foram absolvidos – e nenhum deles tinha sido o assassino ou o mandante do crime. “As autoridades enviaram uma mensagem clara à sociedade civil russa”, disse na altura a organização Human Rights Watch. “Aqueles que se atreverem a criticar o governo podem ser mortos e os seus assassinos terão a sua impunidade garantida”.

Politkovskaia, como Yusupova – que colaborou inúmeras vezes com a jornalista, com quem mantinha uma estreita relação – tinha-se dedicado à causa da denúncia dos abusos dos direitos humanos na Tchetchénia, durante e depois da guerra, e escreveu artigos e livros que atacavam violentamente a presidência de Putin, a acção dos militares russos na Tchetchénia e os abusos cometidos por ambas as partes no violentíssimo conflito.
Yusupova sabia por isso que o aviso devia ser levado a sério. Mas, ainda que se tenha rodeando-se de precauções suplementares, a ameaça não a impediu de continuar o seu trabalho, investigando assassinatos e “desaparecimentos”, recolhendo depoimentos, acompanhando as vítimas ou aos seus familiares à polícia, ajudando-os a apresentar as suas queixas, fornecendo apoio jurídico e levando a tribunal acusações de violações dos direitos humanos. “Mais vale viver apenas um dia com honra, que degradada e humilhada toda a vida”, diria ao jornal norueguês Aftenposten dias depois. “Agora que a Anna [Politkovskaia] já não está connosco, temos de continuar o trabalho sozinhos”.
E este tem sido o mantra de Yusupova nos últimos anos.

Politkovskaia está longe de ter sido a única vítima mortal entre os que se atreveram a denunciar crimes e torturas cometidos pelo poder russo. A International Helsinki Federation for Human Rights relatava em 2006 que, só nos dois anos anteriores, tinham sido mortos na Rússia 13 militantes de organizações de defesa dos direitos humanos, seis tinham desaparecido e 19 tinham sido detidos e torturados. E a lista continuou a crescer. No início deste ano, o advogado de direitos humanos Stanislav Markelov, também envolvido na investigação de crimes praticados pelo exército e pelas autoridades na Tchetchénia, e a jornalista Anastasiya Baburova, que o acompanhava, foram assassinados na rua. Dias antes, o tchetcheno Umar Israilov, que tinha apresentado uma queixa no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem contra o presidente tchetcheno pró-russo Ramzan Kadyrov, que acusou de o torturar, foi morto numa rua de Viena, onde vivia exilado. Há uma lista de crimes sem fim, praticados para evitar que outros crimes sejam trazidos à luz e investigados.

Lidia Yusupova sabe bem o que arrisca e não nega que tem medo, mas este é o rumo que decidiu dar à sua vida desde um dia do ano 2000, em Grozny, durante um bombardeamento russo contra a então república separatista tchetchena. Yusupova integrava então uma das muitas brigadas formadas por jovens e encarregadas de localizar e auxiliar as pessoas escondidas dos raides aéreos, levando-lhes alimentos e medicamentos. Num abrigo anti-aéreo Yusupova encontrou um grupo de crianças aterrorizadas e diz que nunca mais esqueceu a expressão de terror na sua cara. E decidiu dedicar a sua vida a lutar contra o medo e contra a violência que se exerce sobre os inocentes.
Lídia Yusupova nasceu em Grozny, na Tchetchénia, numa família de etnia russa. Começou por estudar literatura russa mas acabou por se licenciar em direito na Universidade Tchetchena de Grozny, a formação que se transformou na sua arma de eleição contra a arbitrariedade e a violência.

O seu trabalho na Memorial já lhe valeu duas distinções internacionais. Ao fim de três anos à frente da delegação de Grozny da Memorial, em 2004, Yusupova recebeu o prestigiado prémio Martin Ennals para defensores dos Direitos Humanos. E em 2005 conqusitou o prémio Thorolf Rafto de Direitos Humanos – que é considerado uma antecâmara do Nobel (quatro laureados ganharam previamente o Rafto). O prémio Martin Ennals tem o nome do primeiro secretário-geral da Amnesty International e é atribuído por um conjunto de dez ONG de defesa dos direitos humanos, entre as quais a mesma Amnesty International, a Human Rights Watch, a International Commission of Jurists e a World Organisation Against Torture.

A delegação da Memorial que Yusupova dirigia então era um pequeno escritório com apenas seis pessoas, onde muitas das vítimas de abusos dos militares ou das milícias tinham medo de bater à porta com receio de represálias das autoridades – o escritório chegou mesmo a ser atacado pelo exército –, o que obrigava Yusupova a deslocar-se pessoalmente aos locais dos crimes para recolher informações e instar as testemunhas a prestar declarações.

O prémio foi atribuído por unanimidade e o presidente do júri, no anúncio feito, onde sublinhou “os incansáveis esforços [de Yusupova] numa situação de guerra e de extremo perigo, onde as mulheres correm riscos acrescidos de violência”, considerou-a “uma das mulheres mais corajosas da Europa”.

O esforço da Memorial e a coragem de Yusupova eram (e são) tanto mais de sublinhar quanto o governo russo não se poupou a esforços para subtrair a guerra da Tchetchénia ao escrutínio internacional, proibindo o trabalho de organizações internacionais e impedindo as deslocações de observadores e jornalistas.

Hoje, a guerra da Tchetchénia – que Putin, astutamente, fez incluir na guerra global “contra o terrorismo”, apanhando a boleia de George W. Bush – acabou. O fim oficial da “operação contra-terrorista na Tchetchénia, que teve início em 1999, foi declarado há precisamente dez dias. Mas a situação está longe de estar pacificada. Há muitas feridas por sarar, milhares de mortes e desaparecimentos por esclarecer. “Todas as famílias tchetchenas estão traumatizadas” dizia Yusupova num depoimento citado pela Amnesty International. “Muitas famílias perderam dois ou três membros”.

Mas hoje são as “forças de segurança” do governo tchetcheno pró-russo, liderado pelo ditador Ramzan Kadyrov – “um homem cujos críticos são difíceis de encontrar”, diz o Los Angeles Times, “porque têm o hábito de desaparecer” -, que continuam a recorrer à tortura, às violações, às prisões arbitrárias, às execuções extra-judiciais, ao fogo posto a casas de oposicionistas. As violações, porém, ocorrem “numa menor escala”, segundo a Human Rights Watch.

As ONG humanitárias exigem que, agora que a situação oficial de guerra acabou na Tchetchénia, que os criminosos sejam levados à justiça e que as condenações do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sejam postas em prática. Mas ninguém parece alimentar esperanças sobre a questão, principalmente quando isso corresponderia a enfrentar Putin – o que ninguém na Europa parece querer. Seja como for, o papel de Lídia Yusupova continua a ser hoje tão fundamental como no passado.

E, quem sabe, se a Comissão Nobel norueguesa esquecer o peso de Putin e tiver a pequena coragem de pisar uns calos para pôr os direitos humanos à frente do gás natural, pode ser que reconheça este ano a grande coragem de Yusupova.

terça-feira, abril 21, 2009

O diabo seja surdo, cego, mudo e coxo

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 21 de Abril de 2009
Crónica 12/2009

Se a queixa tivesse chegado através de um meio menos modernaço, não teria servido para nada. Felizmente foi via Twitter

Os líderes parlamentares dos partidos representados na Assembleia da República decidiram por unanimidade excluir as expressões "autista" e "autismo" do léxico dos deputados. A decisão surgiu após uma discussão suscitada por uma mensagem enviada pela mãe de uma criança autista ao deputado socialista Jorge Seguro e o facto de essa mensagem ter sido enviada através do Twitter lançou um irreprimível frisson no meio de políticos e jornalistas. "A primeira decisão tomada no Parlamento devido ao Twitter", "Twitter alterou a Assembleia da República", "Twitter conseguiu mudar discurso da Assembleia da República", "Foi graças ao Twitter que os deputados deixaram de se chamar autistas uns aos outros no Parlamento", noticiaram, com diferentes graus de emoção, os media. E Jorge Seguro considerou este caso um "bom exemplo de como as novas tecnologias podem funcionar ao serviço da cidadania". Que emoção! Fica-se com a sensação de que, se a queixa ou sugestão tivesse sido enviada através de um meio menos modernaço, como o telefone ou o mail, não teria servido para nada. Ou de que, inversamente, se a sugestão tivesse sido no sentido de os deputados usarem todos chapéus engraçadas à sexta-feira, ela poderia ter sido aceite por ter sido enviada através de uma nova tecnologia que é ainda mais nova do que outras novas tecnologias e que é mesmo muito, muito, moderna, o que é giríssimo - e moderno, claro.

Não se sabe se a conferência de líderes tenciona interditar outras palavras politicamente menos correctas, mas é de esperar - em nome da coerência - que outras expressões mereçam a mesma condenação, mesmo sem a intervenção directa de um tweet. Aliás, uma dirigente da Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo, que se manifestou "totalmente a favor" da decisão dos líderes parlamentares, exprimiu o desejo de que os deputados evitassem o uso depreciativo de outros adjectivos que correspondem a limitações físicas como "cego" ou "surdo".

Se este tipo de regras vingar, deixaremos de ter no Parlamento "políticas coxas" e "ministros surdos aos clamores do povo", mas também deixaremos provavelmente de ter "estratégias marcadas pela miopia", "autarcas que claudicam perante as pressões", "ministérios paralisados", "organismos anquilosados" e tantas outras expressões médicas que durante tantos anos enfeitaram o discurso parlamentar. Será uma mudança de fundo, pois a metáfora sanitária tem larga tradição na política (tanta que às vezes nem era matáfora). Mas não há razão para ficar por aqui. Se se pretende limpar o discurso político de incorrecção política, o que dizer do uso depreciativo de expressões como "provincianismo"? Não desagradará a provincianos? Há todo um vocabulário a espiolhar, adjectivos a proibir e certamente umas centenas de substantivos. E nem falamos ainda dos insultos - dos que o são e o podem ser - de bandalho e suas rimas a bobo, palhaço e outras insularidades. E os nomes próprios? O que dizer dos nomes próprios? Será que se deve poder chamar a alguém Bokassa? Ou Alberto João Jardim? Átila? Hitler? Não será melhor a conferência de líderes... Há toda uma bibliografia a folhear, séculos de história a peneirar a pente fino, dicionários biográficos a compulsar. E os venenos? Podemos dizer que uma diploma é peçonha, que o ambiente é sulfuroso, que um discurso é tóxico (e os activos?), que a religião é ópio, que isto já cheira mal? Pode-se dizer que esta portaria não interessa nem ao menino Jesus? E fascista? Não será insulto? E dizer que uma coisa horrível é estalinista não chocará filhos perdidos do paizinho dos povos? E dizer nazi, dizer nazi? Não devíamos proibir? A bandeira nazi sabemos que está proibida, dá para um deputado ser impedido de entrar e mesmo que os acharam mal a impedidela acharam mal a bandeirada. E se declarássemos, simplesmente, que tudo o que alguém achar mal não se devia dizer no Parlamento? Não seria mais simples?
E seria pedir de mais aos líderes parlamentares que não se esquecessem que o Parlamento tem de ser, por excelência, o lugar da liberdade de expressão, e que as normas de urbanidade podem ser sugestões às suas hostes mas nunca devem ser proibições que nada autoriza? Nem mesmo o Twitter? Jornalista (jvm@publico.pt)

domingo, abril 19, 2009

Página de Rosto - Craig Newmark, o anti-Cristo dos jornais

por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 
19 Abril 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, pág. 14


Tímido, nerd confesso, Craig ganhou uma particular notoriedade durante a campanha eleitoral democrática de 2008 para as presidenciais, onde foi um dos arquitectos da utilização da Web

Nesta empresa está quase tudo ao contrário do que é habitual. O dono e fundador ganha milhões de dólares mas trabalha na assistência a clientes e passa os dias sentado ao computador a responder a mails com queixas e sugestões. O CEO da empresa, considerada um dos maiores exemplos de sucesso no mundo da Internet e que tem um dos sites mais visitados do planeta, é classificado com frequência como “comunista” e “anarquista” e possui uma filosofia de vida profundamente anti-sistema e anti-capitalista. Mas o mais surpreendente é que nesta empresa, a famosa Craigslist de San Francisco, que gere o site Craigslist.org, ninguém está interessado em aumentar as receitas e muito menos em maximizar o lucro ou em conquistar uma fortuna. Não é que digam que não estão: não estão mesmo. Porque têm tido inúmeras oportunidades para o fazer e têm-nas sempre recusado em termos que não estimulam novas propostas.

A Craigslist começou por ser a “Craig’s list” – a lista do Craig. Craig é Craig Newmark, um engenheiro de software de 56 anos, nascido na costa Leste dos Estados Unidos, em New Jersey, que foi trabalhar para San Francisco. Em 1994, quando estava na empresa financeira Charles Schwab a trabalhar na área da segurança informática “e a fazer evangelização em prol da Internet”, como costuma dizer, Craig decidiu criar um serviço por mail, inicialmente destinado apenas aos amigos, com a lista dos eventos mais interessantes à volta de San Francisco. Os amigos foram passando palavra e o número de destinatários foi crescendo até que, quando chegou aos 240, a qualidade do serviço começou a degradar-se. Craig decidiu então criar a Craigslist e instalá-la num servidor. Pensou inicialmente chamar-lhe “SF Events” mas os amigos convenceram-no de que não valia a pena – se toda a gente a conhecia como “Craig’s list”, por que não manter o nome?

Durante os primeiros anos, a lista foi-se expandindo com a colaboração dos próprios utilizadores, que tinham liberdade para publicar o que quisessem e que começaram a usar “a lista” para fins diferentes das intenções originais de Craig – como publicar um anúncio para vender uma mota ou para procurar um quarto, sempre de forma totalmente gratuita. O êxito foi crescendo e a San Francisco seguiram-se outras cidades dos EUA e do mundo (a lista possui uma organização geográfica, por países e cidades).

Em 1998, quando Craig já tinha deixado a Charles Schwab e trabalhava como consultor independente – nomeadamente para o Bank of America, na área do home banking – tornou-se evidente que era preciso fazer uma escolha: a lista tinha crescido tanto em conteúdo, utilizadores e reputação que era preciso dar-lhe a atenção necessária, vendê-la ou aceitar a sua degradação. Craig decidiu deixar a sua actividade de consultor e criar uma verdadeira empresa. A bola de neve não parou. Hoje, segundo dados do site, a Craigslist cobre 570 cidades de todo o mundo, com anúncios classificados que cobrem todas as áreas imagináveis, do emprego e do imobiliário a serviços de segurança, do trabalho voluntário a encontros eróticos, de restaurantes a advogados. O site tem mais de 20.000 milhões de visualizações de páginas por mês, ocupa o número 25 de todos os sites do mundo e o sétimo lugar dos sites de língua inglesa em tráfego. Tem 50 milhões de utilizadores e publica 40 milhões de novos anúncios por mês. Destes, mais de um milhão são anúncios de emprego. Para não falar dos fóruns onde são publicados mensalmente 100 milhões de posts. Craisglist é, antes de mais, uma comunidade e os utilizadores estão profundamente envolvidos na sua gestão, nomeadamente identificando anúncios de conteúdo ilegal ou ofensivo.

Só que este êxito não é bem recebido por todos. A Craigslist transformou-se na Némesis da imprensa. Estes anúncios classificados, que são publicados gratuitamente no site, foram durante anos uma receita cativa dos jornais diários e a actual crise da imprensa deve-se, em grande parte, a esta fuga de receitas publicitárias para a Internet – o que, nos EUA, significa em grande medida para a Craigslist. Uma empresa de consultoria estimou em 2005 que a Craisglist representaria uma perda de receitas para os jornais de 50 a 65 milhões de dólares por ano, apenas no domínio dos anúncios de emprego… e apenas na área da baía de San Francisco.

Não admira por isso que, quando Stephen Colbert entrevistou Craig Newmark para o seu programa Colbert Report, há cerca de um ano e meio, o tenha felicitado entusiasticamente por “estar a matar os jornais americanos”. Esses ninhos de liberais, entenda-se.

A acusação não tem muito sentido, porém: Craigslist é o site mais visível, mas a transferência ocorreria sempre. A questão é que os anúncios classificados, que representam em média 35 por cento das receitas dos jornais, se prestam muito mais a ser publicados e consultados online que num jornal em papel. O que não impede a imprensa escrita de olhar para Craig como para o anti-Cristo.
Qual é o negócio da Craigslist? Como é que um site de anúncios classificados gratuitos faz dinheiro? É que nem todos são gratuitos: os anúncios de emprego em 18 cidades e os de casas em Nova Iorque são pagos (25 a 75 dólares). Isso é suficiente para gerar receitas no valor de… ninguém sabe ao certo quanto. Como a empresa não está cotada na bolsa, Craig não é obrigado a dizer. Mas as estimativas andam pelas muitas dezenas de milhões de dólares por ano ou talvez por uma ou duas centenas. Nada mau para uma empresa que possui apenas 28 empregados e que opera a partir de uma pequena casa vitoriana de San Francisco. Quanto vale a empresa? Se Craig e Jim Buckmaster (o CEO, também sócio, que foi contratado por Craig através de um anúncio na lista), a quisessem vender, conseguiriam sem dúvida um valor acima dos mil milhões de dólares mas… nenhum deles quer. Não gostariam de ter dinheiro suficiente para poderem humilhar toda a gente à sua volta, para usar a formulação de uma pergunta feita por Jon Stewart a Craig Newmark? Ambos dizem que não precisam de mais dinheiro do que o que tem e falam mais vezes de princípios morais, de estilo de vida, da necessidade de reforçar os laços da comunidade e das suas responsabilidades para com os seus clientes que da vida de luxo que poderiam ter se vendessem. Um dia, dizem, alguém fará melhor aquilo que a Craigslist está a fazer hoje e ela será eliminada pela concorrência. Entretanto, continuam a dar o seu máximo e a investir na qualidade do serviço.
Em 2004 a EBay comprou 28,4 por cento da Craigslist, mas fê-lo através da compra da quota de um ex-empregado a quem Craig tinha dado sociedade. A princípio pensou-se que a EBay tentaria usar este passo – que lhe deu um lugar na administração - para adquirir toda a empresa, mas Craig e Buckmaster não cederam às pressões nesse sentido. As relações entre a EBay e a Craigslist azedaram, com ataques e processos judiciais mútuos: a EBay acusando a Craigslist de desvalorizar a empresa (e a sua participação, que comprou por um valor não divulgado), e a Craigslist acusando a EBay de espionagem e concorrência desleal. Após a sua entrada na Craigslist, a EBay lançou um site de classificados, o Kijiji, que a primeira diz apenas pretender a sua destruição. Mas a verdade é que concorrer com a Craigslist não é fácil. O site define-se como “um serviço público” e tem como filosofia fazer e oferecer o que os clientes querem. Um princípio simples que muitas empresas ignoram. Os utilizadores não gostam de publicidade e de pop-ups? O site não tem publicidade nem pop-ups. Os utilizadores não gostam de inquéritos? O site não faz inquéritos.

Tímido, nerd confesso (no site da empresa diz que já deixou de andar com os óculos colados com adesivo) Craig ganhou uma particular notoriedade durante a campanha eleitoral democrática de 2008 para as presidenciais, onde foi um dos arquitectos da utilização da Web (comunicação, promoção, organização das comunidades). E na fotografia que pôs no seu perfil do Facebook aparece ao lado de Obama. A identificação é “Customer Service Rep & Founder, Craigslist”

terça-feira, abril 07, 2009

Pode ser de chocolate

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 7 de Abril de 2009
Crónica 11/2009

Quando o prato chega à mesa a regra de ouro é olhar para o seu conteúdo com uma verdadeira careta de nojo

"O croissant é simples, de ovo ou de chocolate?..." O empregado espera pacientemente a decisão. Depois de um beicinho de hesitação, a resposta vem com uma careta de contrariedade. "Pode ser de chocolate, pronto..." O empregado de café, não só educado mas também sábio, com uma experiência de vinte anos a atender desde senhoras e cavalheiros a gajos e gajas, não responde aquilo que dá vontade: "Eu não faço questão que escolha o de chocolate. Também temos croissants simples. Pode nem comer croissant nenhum. E temos fruta. Não quer umas groselhas?"

A cena repete-se em todas as refeições, todas as mesas, todos os lanches. Quando o cliente faz a escolha que lhe provoca a mais profunda má-consciência dietética, age como se essa escolha lhe fosse imposta por algum poder exterior, como se estivesse apenas a ceder por delicadeza à insistência do empregado, dos vizinhos de mesa, da moda, da sociedade em geral e nada estivesse mais longe dos seus desejos.

"Quer algum molho especial para a salada?" "Molhos? Não, não. Sem tempero... acho eu... Não sei, que molhos tem?" "Vinagrete, molho de mostarda, de queijo, de pimenta, mayonnaise..." "Bom... pode ser mayonnaise, pronto!..." O tom é de algum enfado e pode até ser acompanhado de desabafos. "Estes tipos só sabem fazer mayonnaise, mayonnaise... Sempre mayonnaise, também chateia".

Mas o nariz torcido não se restringe aos molhos e aos recheios. "O que é que é mais rápido?" "Os pratos do dia estão todos prontos a sair." "E quais é que são os pratos do dia?" "Pescada cozida, salada de frango e entrecosto frito com arroz de feijão" "Sei lá... qualquer coisa... desde que seja rápido... pode ser o entrecosto, pronto...".

A expressão é displicente, às vezes decepcionada, e o tom é frequentemente condescendente - para permitir o subtexto de "estes tipos só fazem coisas gordíssimas, o que é que eu hei-de fazer?".

Outra técnica muito usada é tratar todos os excessos como excepções, liberdades que só são admitidas só lá muito de quando em quando. "Pode pôr-me só um bocadinho de molho de manteiga no linguado? Desta vez apetece-me um bocadinho", dizem em tom de confidência ao maître, juntando delicadamente as polpas do indicador e do polegar para indicar que se trata apenas de uma pitadinha de tempero, não mais, só para dar um aroma, um arzinho. "Só um bocadinho de nada. Isso. Pode pôr mais um bocadinho. Ponha também nas batatas. E nos legumes. Aqui também. Pode pôr mais um bocadinho. Pronto, assim chega. Chega! Ai que exagero, meu Deus! Pode deixar a molheira."

Além do "já que insiste" e do "só um bocadinho" temos, ainda, a "dieta na base", que consiste em pedir pratos superdietéticos e em guarnecê-los com alguma coisinha só para lhes dar um bocadinho de graça. "É só uma salada de alface, sem tempero nenhum, nenhum, nenhum. É só mesmo a alface. Tomate? Não obrigado, o tomate é fruta, sabe? Tem imenso açúcar. É só mesmo a alface. Ah... estou a ver aqui que tem aquele fromage de chèvre entier que eu gosto tanto. Portanto é a alface com o chèvre. Tem imenso cálcio. Já que não vou temperar posso fazer uma extravagância. Ah... e a entrada?... Tem de ser fruta. Abacate! Tem aquele cocktail de abacate e camarão? Com o molho Aurora. Aqui tem mesmo de ser. O abacate sem o molho é horrível. Portanto é só a saladinha de alface e o abacate. Não há nada mais dieta."

Quando o prato chega à mesa a regra de ouro é olhar para o seu conteúdo com uma verdadeira careta de nojo, do género "mas eu pedi rúcula selvagem e trazem-me alheira de Mirandela" e usar o garfo para explorar o prato sempre com a mesma expressão de repugnância mas como se se tivesse esperança de encontrar no meio daquela mixórdia algo digno de ser mastigado (se quiser representar a cena usando o Método tem de lembrar-se daquela vez que teve de recuperar o anel de diamantes que a sua gata comeu).

Finalmente há a dieta cabalística, que aposta não nos elementos isoladamente considerados mas na sua combinação, que conseguirá eliminar tudo o que de nefasto e engordante existe nas travessas. "É o pato assado mas olhe - vou-lhe pedir um favor: em vez da laranja, pode trazer-me rodelas de limão e de kiwi? O limão anula a gordura e o kiwi tem imenso ómega-3 que é óptimo. E têm aquele gelado caseiro fantástico? Se me puder arranjar umas folhinhas de hortelã-pimenta para acompanhar, quero gelado. Que sabores tem? Pode ser de chocolate." Jornalista (jvm@publico.pt)

domingo, abril 05, 2009

Página de Rosto - Millôr, humor sem barreiras

por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 5 Abril 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, pág. 17



Millôr Fernandes, humorista (Brasil)


A aventura começa logo com a data de nascimento. Nasceu a 16 de Agosto de 1924. Ou melhor: é bem possível que tenha nascido a 16 de Agosto de 1924. Pelo menos essa é a data que ele acha mais provável, o dia em que lhe dão os parabéns e uma das mais referidas nos artigos escritos sobre ele. Só que também pode ter sido a 27 de Maio. É ele  mesmo que diz que pode. E é essa que vem no bilhete de identidade. De 1924. Ou 1923... No BI está 1924 mas também pode ser 1923. Ah, e o 16 de Agosto também pode ser de 1923. É até essa data que vem na Enciclopédia Itaú Cultural. Na curta nota biográfica que publicou no seu site diz que “há desencontros na opinião da família”. E provavelmente já é tarde para tentar o consenso.
O sítio, esse, está estabelecido: o bairro Meyer (ou Mayer, ou Méier) no Rio de Janeiro.
Depois também há uma peripécia com o nome. Nasceu Milton Viola Fernandes e usou Milton durante a infância e a adolescência. Mas um dia, aos 17 anos (às vezes diz 18) descobriu que o seu verdadeiro nome não era Milton mas Millôr. Descobriu quando consultou o seu registo de nascimento. A história é repetida em todos os perfis e no seu site está o fac simile do registo para tirar todas as dúvidas. E tira. O que lá está é um Milton caprichado, à maneira de 1924 (ou 1923) onde o traço que corta o “t” ficou por cima do “o”. E o “n” final, se não fosse um “n”, poderia ser um “r”. Millôr! Milord!
Millôr Fernandes inventou-se todo, dos pés à cabeça. E não começou só aos 17. Nasceu quase de geração espontânea, órfão de pai com um ano de idade e de mãe aos dez. A morte do pai atirou a mãe e quatro filhos da classe média “para o nível proletário”. A morte da mãe provou-lhe definitivamente a injustiça da vida e a inexistência de Deus – “a paz da descrença”, diz. Uma descrença que vai muito para lá do Além (será possível?) e que se traduziu numa pose eminentemente cínica perante a vida, genialmente sublimada na sua actividade de humorista, observador impenitente das fraquezas humanas. À morte da mãe seguiu-se “o período dickensiano, vendo o bife ser posto no prato dos primos, sem que o órfão tivesse direito. A família dispersa, os quatro irmãos cada qual pro seu lado, tentando sobreviver”.
Começou a trabalhar na imprensa aos treze anos, na revista O Cruzeiro. Como paquete mas também a ajudar na paginação e… a fazer sub-títulos. E a sua carreira descola. Em 1939, aos 15 anos (ou 16, nunca saberemos) ganha um concurso de contos organizado pela revista A Cigarra e é convidado para colaborador regular. As colaborações multiplicam-se, a sua reputação cresce. Regressa a O Cruzeiro. Aos vinte anos já é uma celebridade e ganha “um dos maiores salários da imprensa” (numa das súmulas autobiográficas surreais que escreveu diz que “aos quinze (anos) já era famoso em várias partes do mundo, todas elas no Brasil”). O Cruzeiro, onde Millôr chega a ser responsável por dez secções, torna-se um extraordinário caso de sucesso e atinge uma tiragem de 750.000 exemplares. “De repente, todo o mundo que trabalhava no Cruzeiro ficou famoso”, conta Millôr numa entrevista à Época.
Conheci Millôr Fernandes nas páginas do Diário Popular, na secção Pif-Paf - que ele tinha criado em 1945 na revista brasileira O Cruzeiro (onde assinava Vão Gogo) - que já tinha tido uma vida breve como publicação independente, com apenas oito edições. Nessa altura ele já tinha abandonado as páginas de O Cruzeiro, com quem tinha entrado em conflito devido a uma sátira A Verdadeira História do Paraíso – que a igreja católica tinha considerado ofensiva e da qual a própria direcção da publicação se  tinha dessolidarizado num editorial infame. Mas quando o seu trabalho chega a Portugal o seu currículo já se tinha alargado ao cinema, ao teatro (como dramaturgo, cenógrafo, adaptador, produtor, actor); à tradução (uma das suas ocupações principais; começou com banda desenhada e passou aos clássicos), à televisão (como autor e apresentador, às vezes misturando texto e ilustração), já tinha feito inúmeras exposições, entre as quais duas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e o seu estatuto de consciência crítica, bobo incómodo e filósofo popular estava já firmemente estabelecido. Millôr já era políticamente incorrecto antes de se inventar o conceito e continuou a ser quando já era mal visto. Foi processado meia dúzia de vezes, nada de mais. “Não tê-lo sido me envergonharia”, diz-me num mail.
O Pif-Paf do Diário Popular, uma página inteira semanal, era um espaço de humor inqualificável, uma mistura de subtil mas explosiva irreverência, de sátira social e ficção surrealista, recheado de Hai-kais, aforismos e fábulas de humor finíssimo, onde as farpas voavam em todas as direcções, acompanhados pelas selvagens e iconoclastas ilustrações do Millôr, de uma força incontrolável, sempre impiedosas e às vezes pungentes, apesar de tudo. Há algo de Picasso no traço e é o lado selvagem. Millôr desenha como quer desenhar e está-se nas tintas para as convenções – sociais ou estéticas. Estão a ver o Picasso das “mulheres que choram”? A mistura daquela tragédia pungente, a capacidade de descrever aquela dor inconsolável e a evidente falta de paciênca para a aturar? É como em Millôr. Devo confessar que na altura eu achava que ele desenhava muito mal – Millôr manteve a sua página no Diário Popular de 1964 a 1974 e eu comecei a lê-lo logo em 1964, tinha eu sete anos, quando os meus padrões artísticos eram muito clássicos – mas adorava o vigor dos desenhos, a força daquele traço fascinava-me. E, à medida que o tempo foi passando, fui gostando cada vez mais. Não demorou muito até eu perceber que ele era mesmo um desenhador extraordinário – apesar, ou melhor, precisamente pelo seu desrespeito pelos cânones. Guardei durante anos recortes amarelecidos com desenhos seus.
Há aforismos do Pif-Paf de que me lembro desde essa altura e desconfio de que muitas das citações de Confúcio que andam pelas bocas do mundo saíram da pena do Millôr – ele inventou tantas que acabou por fazer um livro, Confúcio disse.
Os aforismos, provérbios, Hai-kais, citações inventadas e jogos de palavras sempre foram uma parte importante do trabalho de Millôr e há muitas pérolas por ali. Mesmo nas entrevistas as frases saem assim, fiadas de sound bites avant la lettre, concisas e certeiras, cínicas e profundamente sarcásticas (“Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim”, “O país que precisa de um salvador não merece ser salvo”, “Quando um chato vai embora, que presença de espírito!”, “Os nossos amigos poderão não saber muitas coisas, mas sabem sempre o que fariam no nosso lugar”). Só A Bíblia do Caos tem mais de “5.142 pensamentos, preceitos, máximas, devaneios, elucubrações” mas a bibliografia de Millôr conta com dezenas e dezenas de obras, das de autor às traduções (Shakespeare, Tchekov, Molière, Racine, Ibsen...). Ainda que Millôr não goste que se fale da “sua obra” (“obra é coisa de pedreiro”).
Hoje, aos 85 (84?) mantém uma coluna semanal na revista Veja, depois de ter passado por muitos dos maiores títulos da imprensa brasileira, incluindo O Estado de São Paulo, a Folha de São Paulo, o Jornal do Brasil. Os temas vão da política à literatura, passando pela língua – uma paixão de sempre, a par da praia e das mulheres, que diz que sempre o trataram muito bem.
Mas se há coisa que Millôr recuse são rótulos. “Humorista, eu não sou. Por acaso, o que escrevo é que tem humor”, diz numa entrevista à revista Continente.
Numa troca de mails com o humorista (Millôr não usa telemóvel nem cartão de crédito, mas trabalha com computador há mais de 20 anos, usa mail e dispôs-se a responder às minhas perguntas com grande simpatia, apesar de não gostar de entrevistas) as respostas mostram bem a sua recusa de qualquer classificação. Políticamente, é o que? “Eu vivo. Os outros me definem.” Mas é um anarquista ou só um liberal? “Você me diz”. Mas acrescenta logo a seguir: “Todo poder é fascista e há uma puta concorrência entre direita e esquerda pra ver quem é mais. Tudo é apenas uma questão de estilo.” Alguma vez sentiu que o poder político merecesse o benefício da dúvida? “Nunca”. Há alguma instituição em que acredite? “NÃO!”. Em maiúsculas e com ponto de exclamação, por causa das dúvidas. “[As instituições] nascem assim, deformadas. O grupo é uma deformação social gerada para proteger o grupo. Contra o indivíduo. O indivíduo, que eu represento, é responsável por tudo, não se exime de nada.”
Confessa que há muitos anos a política o interessou mas a sua relação com a política evolui “de algum entusiasmo pelo jogo, até o tédio absoluto de hoje. Tédio é a palavra. Não tenho nem raiva. Leio muito história. Que não é nem uma tragédia nem uma farsa. É uma canalhice.” Vota? “Não voto”.
Amargo? Nada. “Eu sou indecentemente feliz. Porque nasci assim. As pessoas vêem que o individuo nasce alto, baixo, homem, mulher, preto, branco. Mas não vêem o mais importante; a pessoa nasce feliz ou infeliz. Eu nasci feliz. Posso enfrentar qualquer infelicidade. Não, Malheiros, não é um paradoxo.”
E tem esperança em quê? “Em nada. Quem tem esperança é um fracassado. Eu vivo no presente.”
FIM