domingo, abril 19, 2009

Página de Rosto - Craig Newmark, o anti-Cristo dos jornais

por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 
19 Abril 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, pág. 14


Tímido, nerd confesso, Craig ganhou uma particular notoriedade durante a campanha eleitoral democrática de 2008 para as presidenciais, onde foi um dos arquitectos da utilização da Web

Nesta empresa está quase tudo ao contrário do que é habitual. O dono e fundador ganha milhões de dólares mas trabalha na assistência a clientes e passa os dias sentado ao computador a responder a mails com queixas e sugestões. O CEO da empresa, considerada um dos maiores exemplos de sucesso no mundo da Internet e que tem um dos sites mais visitados do planeta, é classificado com frequência como “comunista” e “anarquista” e possui uma filosofia de vida profundamente anti-sistema e anti-capitalista. Mas o mais surpreendente é que nesta empresa, a famosa Craigslist de San Francisco, que gere o site Craigslist.org, ninguém está interessado em aumentar as receitas e muito menos em maximizar o lucro ou em conquistar uma fortuna. Não é que digam que não estão: não estão mesmo. Porque têm tido inúmeras oportunidades para o fazer e têm-nas sempre recusado em termos que não estimulam novas propostas.

A Craigslist começou por ser a “Craig’s list” – a lista do Craig. Craig é Craig Newmark, um engenheiro de software de 56 anos, nascido na costa Leste dos Estados Unidos, em New Jersey, que foi trabalhar para San Francisco. Em 1994, quando estava na empresa financeira Charles Schwab a trabalhar na área da segurança informática “e a fazer evangelização em prol da Internet”, como costuma dizer, Craig decidiu criar um serviço por mail, inicialmente destinado apenas aos amigos, com a lista dos eventos mais interessantes à volta de San Francisco. Os amigos foram passando palavra e o número de destinatários foi crescendo até que, quando chegou aos 240, a qualidade do serviço começou a degradar-se. Craig decidiu então criar a Craigslist e instalá-la num servidor. Pensou inicialmente chamar-lhe “SF Events” mas os amigos convenceram-no de que não valia a pena – se toda a gente a conhecia como “Craig’s list”, por que não manter o nome?

Durante os primeiros anos, a lista foi-se expandindo com a colaboração dos próprios utilizadores, que tinham liberdade para publicar o que quisessem e que começaram a usar “a lista” para fins diferentes das intenções originais de Craig – como publicar um anúncio para vender uma mota ou para procurar um quarto, sempre de forma totalmente gratuita. O êxito foi crescendo e a San Francisco seguiram-se outras cidades dos EUA e do mundo (a lista possui uma organização geográfica, por países e cidades).

Em 1998, quando Craig já tinha deixado a Charles Schwab e trabalhava como consultor independente – nomeadamente para o Bank of America, na área do home banking – tornou-se evidente que era preciso fazer uma escolha: a lista tinha crescido tanto em conteúdo, utilizadores e reputação que era preciso dar-lhe a atenção necessária, vendê-la ou aceitar a sua degradação. Craig decidiu deixar a sua actividade de consultor e criar uma verdadeira empresa. A bola de neve não parou. Hoje, segundo dados do site, a Craigslist cobre 570 cidades de todo o mundo, com anúncios classificados que cobrem todas as áreas imagináveis, do emprego e do imobiliário a serviços de segurança, do trabalho voluntário a encontros eróticos, de restaurantes a advogados. O site tem mais de 20.000 milhões de visualizações de páginas por mês, ocupa o número 25 de todos os sites do mundo e o sétimo lugar dos sites de língua inglesa em tráfego. Tem 50 milhões de utilizadores e publica 40 milhões de novos anúncios por mês. Destes, mais de um milhão são anúncios de emprego. Para não falar dos fóruns onde são publicados mensalmente 100 milhões de posts. Craisglist é, antes de mais, uma comunidade e os utilizadores estão profundamente envolvidos na sua gestão, nomeadamente identificando anúncios de conteúdo ilegal ou ofensivo.

Só que este êxito não é bem recebido por todos. A Craigslist transformou-se na Némesis da imprensa. Estes anúncios classificados, que são publicados gratuitamente no site, foram durante anos uma receita cativa dos jornais diários e a actual crise da imprensa deve-se, em grande parte, a esta fuga de receitas publicitárias para a Internet – o que, nos EUA, significa em grande medida para a Craigslist. Uma empresa de consultoria estimou em 2005 que a Craisglist representaria uma perda de receitas para os jornais de 50 a 65 milhões de dólares por ano, apenas no domínio dos anúncios de emprego… e apenas na área da baía de San Francisco.

Não admira por isso que, quando Stephen Colbert entrevistou Craig Newmark para o seu programa Colbert Report, há cerca de um ano e meio, o tenha felicitado entusiasticamente por “estar a matar os jornais americanos”. Esses ninhos de liberais, entenda-se.

A acusação não tem muito sentido, porém: Craigslist é o site mais visível, mas a transferência ocorreria sempre. A questão é que os anúncios classificados, que representam em média 35 por cento das receitas dos jornais, se prestam muito mais a ser publicados e consultados online que num jornal em papel. O que não impede a imprensa escrita de olhar para Craig como para o anti-Cristo.
Qual é o negócio da Craigslist? Como é que um site de anúncios classificados gratuitos faz dinheiro? É que nem todos são gratuitos: os anúncios de emprego em 18 cidades e os de casas em Nova Iorque são pagos (25 a 75 dólares). Isso é suficiente para gerar receitas no valor de… ninguém sabe ao certo quanto. Como a empresa não está cotada na bolsa, Craig não é obrigado a dizer. Mas as estimativas andam pelas muitas dezenas de milhões de dólares por ano ou talvez por uma ou duas centenas. Nada mau para uma empresa que possui apenas 28 empregados e que opera a partir de uma pequena casa vitoriana de San Francisco. Quanto vale a empresa? Se Craig e Jim Buckmaster (o CEO, também sócio, que foi contratado por Craig através de um anúncio na lista), a quisessem vender, conseguiriam sem dúvida um valor acima dos mil milhões de dólares mas… nenhum deles quer. Não gostariam de ter dinheiro suficiente para poderem humilhar toda a gente à sua volta, para usar a formulação de uma pergunta feita por Jon Stewart a Craig Newmark? Ambos dizem que não precisam de mais dinheiro do que o que tem e falam mais vezes de princípios morais, de estilo de vida, da necessidade de reforçar os laços da comunidade e das suas responsabilidades para com os seus clientes que da vida de luxo que poderiam ter se vendessem. Um dia, dizem, alguém fará melhor aquilo que a Craigslist está a fazer hoje e ela será eliminada pela concorrência. Entretanto, continuam a dar o seu máximo e a investir na qualidade do serviço.
Em 2004 a EBay comprou 28,4 por cento da Craigslist, mas fê-lo através da compra da quota de um ex-empregado a quem Craig tinha dado sociedade. A princípio pensou-se que a EBay tentaria usar este passo – que lhe deu um lugar na administração - para adquirir toda a empresa, mas Craig e Buckmaster não cederam às pressões nesse sentido. As relações entre a EBay e a Craigslist azedaram, com ataques e processos judiciais mútuos: a EBay acusando a Craigslist de desvalorizar a empresa (e a sua participação, que comprou por um valor não divulgado), e a Craigslist acusando a EBay de espionagem e concorrência desleal. Após a sua entrada na Craigslist, a EBay lançou um site de classificados, o Kijiji, que a primeira diz apenas pretender a sua destruição. Mas a verdade é que concorrer com a Craigslist não é fácil. O site define-se como “um serviço público” e tem como filosofia fazer e oferecer o que os clientes querem. Um princípio simples que muitas empresas ignoram. Os utilizadores não gostam de publicidade e de pop-ups? O site não tem publicidade nem pop-ups. Os utilizadores não gostam de inquéritos? O site não faz inquéritos.

Tímido, nerd confesso (no site da empresa diz que já deixou de andar com os óculos colados com adesivo) Craig ganhou uma particular notoriedade durante a campanha eleitoral democrática de 2008 para as presidenciais, onde foi um dos arquitectos da utilização da Web (comunicação, promoção, organização das comunidades). E na fotografia que pôs no seu perfil do Facebook aparece ao lado de Obama. A identificação é “Customer Service Rep & Founder, Craigslist”

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