domingo, abril 26, 2009

Página de Rosto - Lidia Yusupova: de Grozny, com coragem


por José Vítor Malheiros
Texto publicado a 26 Abril 2009 no jornal Público, suplemento P2, secção Página de Rosto, Pág. 13



Lidia Yusupova, advogada, activista de direitos humanos (Rússia)


As candidaturas para o Nobel da Paz deste ano já fecharam. Geralmente, é até Fevereiro de cada ano que o Comité Nobel que escolhe o laureado com o prémio da Paz aceita nomeações. As que cheguem depois dessa data só serão consideradas para o prémio do ano seguinte. Os cinco membros do Comité, nomeados pelo Storting, o parlamento norueguês, precisam de tempo para avaliar as propostas. É em Fevereiro que o Comité reúne pela primeira vez para escolher o laureado do ano e as propostas devem estar todas em cima da mesa nessa altura. Há muitas entidades que podem enviar nomeações, de membros de governos a antigos laureados e o pacote de nomeados costuma rondar as duas centenas. E, como se imagina, existe um lobbying considerável, para convencer diferentes entidades a apresentar um mesmo nome, para apresentar os seus méritos à melhor luz, para convencer os membros do Comité da utilidade e da justiça de um dado prémio. Porque o Nobel da Paz é um instrumento político, que se pretende que não apenas reconheça os esforços de um indivíduo ou organização, mas que possa promover a causa da paz.

Mas se há lobbying para promover candidatos, também existem pressões para afastar nomes, que não são menores. Há prémios que valem antes de mais pela denúncia que fazem e que são espinhos cravados na garganta de poderosos.

O nome de Lidia Yusupova estará certamente entre os candidatos deste ano, como esteve nos anos anteriores, assim como a organização a que pertence, a Memorial, uma prestigiada organização russa de investigação histórica, criada em 1992, que faz o levantamento e denúncia de atentados aos direitos humanos.

Em 2006, quando a nomeação de Lidia (ou Lida) Yusupova para o Nobel da Paz foi noticiada pela imprensa, esta advogada, hoje com 47 anos de idade, que era então a responsável pela delegação da Memorial em Grozny, a capital da Tchetchénia, recebeu no seu telemóvel um telefonema de um homem, que falava tchetcheno, que lhe disse: “Então, está contente por saber que foi nomeada para o Prémio Nobel da Paz? Mas sabe… para receber o prémio precisa de estar viva. Sabe o que seria melhor para si? Que deixasse de fazer o que está a fazer e que não ganhasse o prémio. Mesmo que viva até lá”.

A ameaça de morte surgia num contexto que lhe dava uma particular credibilidade: a jornalista Anna Politkovskaia tinha sido assassinada dias antes, quando entrava no elevador de sua casa, com vários tiros à queima-roupa, num típico assassinato contratado. Os responsáveis nunca foram identificados mas as suspeitas rondaram o Kremlin, os serviços secretos russos (mais ou menos por conta própria) e a clique dirigente tchetchena pró-russa. Três homens acusados de cumplicidade no crime de Politskaia chegaram a ser levados a tribunal, mas foram absolvidos – e nenhum deles tinha sido o assassino ou o mandante do crime. “As autoridades enviaram uma mensagem clara à sociedade civil russa”, disse na altura a organização Human Rights Watch. “Aqueles que se atreverem a criticar o governo podem ser mortos e os seus assassinos terão a sua impunidade garantida”.

Politkovskaia, como Yusupova – que colaborou inúmeras vezes com a jornalista, com quem mantinha uma estreita relação – tinha-se dedicado à causa da denúncia dos abusos dos direitos humanos na Tchetchénia, durante e depois da guerra, e escreveu artigos e livros que atacavam violentamente a presidência de Putin, a acção dos militares russos na Tchetchénia e os abusos cometidos por ambas as partes no violentíssimo conflito.
Yusupova sabia por isso que o aviso devia ser levado a sério. Mas, ainda que se tenha rodeando-se de precauções suplementares, a ameaça não a impediu de continuar o seu trabalho, investigando assassinatos e “desaparecimentos”, recolhendo depoimentos, acompanhando as vítimas ou aos seus familiares à polícia, ajudando-os a apresentar as suas queixas, fornecendo apoio jurídico e levando a tribunal acusações de violações dos direitos humanos. “Mais vale viver apenas um dia com honra, que degradada e humilhada toda a vida”, diria ao jornal norueguês Aftenposten dias depois. “Agora que a Anna [Politkovskaia] já não está connosco, temos de continuar o trabalho sozinhos”.
E este tem sido o mantra de Yusupova nos últimos anos.

Politkovskaia está longe de ter sido a única vítima mortal entre os que se atreveram a denunciar crimes e torturas cometidos pelo poder russo. A International Helsinki Federation for Human Rights relatava em 2006 que, só nos dois anos anteriores, tinham sido mortos na Rússia 13 militantes de organizações de defesa dos direitos humanos, seis tinham desaparecido e 19 tinham sido detidos e torturados. E a lista continuou a crescer. No início deste ano, o advogado de direitos humanos Stanislav Markelov, também envolvido na investigação de crimes praticados pelo exército e pelas autoridades na Tchetchénia, e a jornalista Anastasiya Baburova, que o acompanhava, foram assassinados na rua. Dias antes, o tchetcheno Umar Israilov, que tinha apresentado uma queixa no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem contra o presidente tchetcheno pró-russo Ramzan Kadyrov, que acusou de o torturar, foi morto numa rua de Viena, onde vivia exilado. Há uma lista de crimes sem fim, praticados para evitar que outros crimes sejam trazidos à luz e investigados.

Lidia Yusupova sabe bem o que arrisca e não nega que tem medo, mas este é o rumo que decidiu dar à sua vida desde um dia do ano 2000, em Grozny, durante um bombardeamento russo contra a então república separatista tchetchena. Yusupova integrava então uma das muitas brigadas formadas por jovens e encarregadas de localizar e auxiliar as pessoas escondidas dos raides aéreos, levando-lhes alimentos e medicamentos. Num abrigo anti-aéreo Yusupova encontrou um grupo de crianças aterrorizadas e diz que nunca mais esqueceu a expressão de terror na sua cara. E decidiu dedicar a sua vida a lutar contra o medo e contra a violência que se exerce sobre os inocentes.
Lídia Yusupova nasceu em Grozny, na Tchetchénia, numa família de etnia russa. Começou por estudar literatura russa mas acabou por se licenciar em direito na Universidade Tchetchena de Grozny, a formação que se transformou na sua arma de eleição contra a arbitrariedade e a violência.

O seu trabalho na Memorial já lhe valeu duas distinções internacionais. Ao fim de três anos à frente da delegação de Grozny da Memorial, em 2004, Yusupova recebeu o prestigiado prémio Martin Ennals para defensores dos Direitos Humanos. E em 2005 conqusitou o prémio Thorolf Rafto de Direitos Humanos – que é considerado uma antecâmara do Nobel (quatro laureados ganharam previamente o Rafto). O prémio Martin Ennals tem o nome do primeiro secretário-geral da Amnesty International e é atribuído por um conjunto de dez ONG de defesa dos direitos humanos, entre as quais a mesma Amnesty International, a Human Rights Watch, a International Commission of Jurists e a World Organisation Against Torture.

A delegação da Memorial que Yusupova dirigia então era um pequeno escritório com apenas seis pessoas, onde muitas das vítimas de abusos dos militares ou das milícias tinham medo de bater à porta com receio de represálias das autoridades – o escritório chegou mesmo a ser atacado pelo exército –, o que obrigava Yusupova a deslocar-se pessoalmente aos locais dos crimes para recolher informações e instar as testemunhas a prestar declarações.

O prémio foi atribuído por unanimidade e o presidente do júri, no anúncio feito, onde sublinhou “os incansáveis esforços [de Yusupova] numa situação de guerra e de extremo perigo, onde as mulheres correm riscos acrescidos de violência”, considerou-a “uma das mulheres mais corajosas da Europa”.

O esforço da Memorial e a coragem de Yusupova eram (e são) tanto mais de sublinhar quanto o governo russo não se poupou a esforços para subtrair a guerra da Tchetchénia ao escrutínio internacional, proibindo o trabalho de organizações internacionais e impedindo as deslocações de observadores e jornalistas.

Hoje, a guerra da Tchetchénia – que Putin, astutamente, fez incluir na guerra global “contra o terrorismo”, apanhando a boleia de George W. Bush – acabou. O fim oficial da “operação contra-terrorista na Tchetchénia, que teve início em 1999, foi declarado há precisamente dez dias. Mas a situação está longe de estar pacificada. Há muitas feridas por sarar, milhares de mortes e desaparecimentos por esclarecer. “Todas as famílias tchetchenas estão traumatizadas” dizia Yusupova num depoimento citado pela Amnesty International. “Muitas famílias perderam dois ou três membros”.

Mas hoje são as “forças de segurança” do governo tchetcheno pró-russo, liderado pelo ditador Ramzan Kadyrov – “um homem cujos críticos são difíceis de encontrar”, diz o Los Angeles Times, “porque têm o hábito de desaparecer” -, que continuam a recorrer à tortura, às violações, às prisões arbitrárias, às execuções extra-judiciais, ao fogo posto a casas de oposicionistas. As violações, porém, ocorrem “numa menor escala”, segundo a Human Rights Watch.

As ONG humanitárias exigem que, agora que a situação oficial de guerra acabou na Tchetchénia, que os criminosos sejam levados à justiça e que as condenações do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sejam postas em prática. Mas ninguém parece alimentar esperanças sobre a questão, principalmente quando isso corresponderia a enfrentar Putin – o que ninguém na Europa parece querer. Seja como for, o papel de Lídia Yusupova continua a ser hoje tão fundamental como no passado.

E, quem sabe, se a Comissão Nobel norueguesa esquecer o peso de Putin e tiver a pequena coragem de pisar uns calos para pôr os direitos humanos à frente do gás natural, pode ser que reconheça este ano a grande coragem de Yusupova.

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