terça-feira, abril 07, 2009

Pode ser de chocolate

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 7 de Abril de 2009
Crónica 11/2009

Quando o prato chega à mesa a regra de ouro é olhar para o seu conteúdo com uma verdadeira careta de nojo

"O croissant é simples, de ovo ou de chocolate?..." O empregado espera pacientemente a decisão. Depois de um beicinho de hesitação, a resposta vem com uma careta de contrariedade. "Pode ser de chocolate, pronto..." O empregado de café, não só educado mas também sábio, com uma experiência de vinte anos a atender desde senhoras e cavalheiros a gajos e gajas, não responde aquilo que dá vontade: "Eu não faço questão que escolha o de chocolate. Também temos croissants simples. Pode nem comer croissant nenhum. E temos fruta. Não quer umas groselhas?"

A cena repete-se em todas as refeições, todas as mesas, todos os lanches. Quando o cliente faz a escolha que lhe provoca a mais profunda má-consciência dietética, age como se essa escolha lhe fosse imposta por algum poder exterior, como se estivesse apenas a ceder por delicadeza à insistência do empregado, dos vizinhos de mesa, da moda, da sociedade em geral e nada estivesse mais longe dos seus desejos.

"Quer algum molho especial para a salada?" "Molhos? Não, não. Sem tempero... acho eu... Não sei, que molhos tem?" "Vinagrete, molho de mostarda, de queijo, de pimenta, mayonnaise..." "Bom... pode ser mayonnaise, pronto!..." O tom é de algum enfado e pode até ser acompanhado de desabafos. "Estes tipos só sabem fazer mayonnaise, mayonnaise... Sempre mayonnaise, também chateia".

Mas o nariz torcido não se restringe aos molhos e aos recheios. "O que é que é mais rápido?" "Os pratos do dia estão todos prontos a sair." "E quais é que são os pratos do dia?" "Pescada cozida, salada de frango e entrecosto frito com arroz de feijão" "Sei lá... qualquer coisa... desde que seja rápido... pode ser o entrecosto, pronto...".

A expressão é displicente, às vezes decepcionada, e o tom é frequentemente condescendente - para permitir o subtexto de "estes tipos só fazem coisas gordíssimas, o que é que eu hei-de fazer?".

Outra técnica muito usada é tratar todos os excessos como excepções, liberdades que só são admitidas só lá muito de quando em quando. "Pode pôr-me só um bocadinho de molho de manteiga no linguado? Desta vez apetece-me um bocadinho", dizem em tom de confidência ao maître, juntando delicadamente as polpas do indicador e do polegar para indicar que se trata apenas de uma pitadinha de tempero, não mais, só para dar um aroma, um arzinho. "Só um bocadinho de nada. Isso. Pode pôr mais um bocadinho. Ponha também nas batatas. E nos legumes. Aqui também. Pode pôr mais um bocadinho. Pronto, assim chega. Chega! Ai que exagero, meu Deus! Pode deixar a molheira."

Além do "já que insiste" e do "só um bocadinho" temos, ainda, a "dieta na base", que consiste em pedir pratos superdietéticos e em guarnecê-los com alguma coisinha só para lhes dar um bocadinho de graça. "É só uma salada de alface, sem tempero nenhum, nenhum, nenhum. É só mesmo a alface. Tomate? Não obrigado, o tomate é fruta, sabe? Tem imenso açúcar. É só mesmo a alface. Ah... estou a ver aqui que tem aquele fromage de chèvre entier que eu gosto tanto. Portanto é a alface com o chèvre. Tem imenso cálcio. Já que não vou temperar posso fazer uma extravagância. Ah... e a entrada?... Tem de ser fruta. Abacate! Tem aquele cocktail de abacate e camarão? Com o molho Aurora. Aqui tem mesmo de ser. O abacate sem o molho é horrível. Portanto é só a saladinha de alface e o abacate. Não há nada mais dieta."

Quando o prato chega à mesa a regra de ouro é olhar para o seu conteúdo com uma verdadeira careta de nojo, do género "mas eu pedi rúcula selvagem e trazem-me alheira de Mirandela" e usar o garfo para explorar o prato sempre com a mesma expressão de repugnância mas como se se tivesse esperança de encontrar no meio daquela mixórdia algo digno de ser mastigado (se quiser representar a cena usando o Método tem de lembrar-se daquela vez que teve de recuperar o anel de diamantes que a sua gata comeu).

Finalmente há a dieta cabalística, que aposta não nos elementos isoladamente considerados mas na sua combinação, que conseguirá eliminar tudo o que de nefasto e engordante existe nas travessas. "É o pato assado mas olhe - vou-lhe pedir um favor: em vez da laranja, pode trazer-me rodelas de limão e de kiwi? O limão anula a gordura e o kiwi tem imenso ómega-3 que é óptimo. E têm aquele gelado caseiro fantástico? Se me puder arranjar umas folhinhas de hortelã-pimenta para acompanhar, quero gelado. Que sabores tem? Pode ser de chocolate." Jornalista (jvm@publico.pt)

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