por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Abril de 2009
Crónica 12/2009
Se a queixa tivesse chegado através de um meio menos modernaço, não teria servido para nada. Felizmente foi via Twitter
Os líderes parlamentares dos partidos representados na Assembleia da República decidiram por unanimidade excluir as expressões "autista" e "autismo" do léxico dos deputados. A decisão surgiu após uma discussão suscitada por uma mensagem enviada pela mãe de uma criança autista ao deputado socialista Jorge Seguro e o facto de essa mensagem ter sido enviada através do Twitter lançou um irreprimível frisson no meio de políticos e jornalistas. "A primeira decisão tomada no Parlamento devido ao Twitter", "Twitter alterou a Assembleia da República", "Twitter conseguiu mudar discurso da Assembleia da República", "Foi graças ao Twitter que os deputados deixaram de se chamar autistas uns aos outros no Parlamento", noticiaram, com diferentes graus de emoção, os media. E Jorge Seguro considerou este caso um "bom exemplo de como as novas tecnologias podem funcionar ao serviço da cidadania". Que emoção! Fica-se com a sensação de que, se a queixa ou sugestão tivesse sido enviada através de um meio menos modernaço, como o telefone ou o mail, não teria servido para nada. Ou de que, inversamente, se a sugestão tivesse sido no sentido de os deputados usarem todos chapéus engraçadas à sexta-feira, ela poderia ter sido aceite por ter sido enviada através de uma nova tecnologia que é ainda mais nova do que outras novas tecnologias e que é mesmo muito, muito, moderna, o que é giríssimo - e moderno, claro.
Não se sabe se a conferência de líderes tenciona interditar outras palavras politicamente menos correctas, mas é de esperar - em nome da coerência - que outras expressões mereçam a mesma condenação, mesmo sem a intervenção directa de um tweet. Aliás, uma dirigente da Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo, que se manifestou "totalmente a favor" da decisão dos líderes parlamentares, exprimiu o desejo de que os deputados evitassem o uso depreciativo de outros adjectivos que correspondem a limitações físicas como "cego" ou "surdo".
Se este tipo de regras vingar, deixaremos de ter no Parlamento "políticas coxas" e "ministros surdos aos clamores do povo", mas também deixaremos provavelmente de ter "estratégias marcadas pela miopia", "autarcas que claudicam perante as pressões", "ministérios paralisados", "organismos anquilosados" e tantas outras expressões médicas que durante tantos anos enfeitaram o discurso parlamentar. Será uma mudança de fundo, pois a metáfora sanitária tem larga tradição na política (tanta que às vezes nem era matáfora). Mas não há razão para ficar por aqui. Se se pretende limpar o discurso político de incorrecção política, o que dizer do uso depreciativo de expressões como "provincianismo"? Não desagradará a provincianos? Há todo um vocabulário a espiolhar, adjectivos a proibir e certamente umas centenas de substantivos. E nem falamos ainda dos insultos - dos que o são e o podem ser - de bandalho e suas rimas a bobo, palhaço e outras insularidades. E os nomes próprios? O que dizer dos nomes próprios? Será que se deve poder chamar a alguém Bokassa? Ou Alberto João Jardim? Átila? Hitler? Não será melhor a conferência de líderes... Há toda uma bibliografia a folhear, séculos de história a peneirar a pente fino, dicionários biográficos a compulsar. E os venenos? Podemos dizer que uma diploma é peçonha, que o ambiente é sulfuroso, que um discurso é tóxico (e os activos?), que a religião é ópio, que isto já cheira mal? Pode-se dizer que esta portaria não interessa nem ao menino Jesus? E fascista? Não será insulto? E dizer que uma coisa horrível é estalinista não chocará filhos perdidos do paizinho dos povos? E dizer nazi, dizer nazi? Não devíamos proibir? A bandeira nazi sabemos que está proibida, dá para um deputado ser impedido de entrar e mesmo que os acharam mal a impedidela acharam mal a bandeirada. E se declarássemos, simplesmente, que tudo o que alguém achar mal não se devia dizer no Parlamento? Não seria mais simples?
E seria pedir de mais aos líderes parlamentares que não se esquecessem que o Parlamento tem de ser, por excelência, o lugar da liberdade de expressão, e que as normas de urbanidade podem ser sugestões às suas hostes mas nunca devem ser proibições que nada autoriza? Nem mesmo o Twitter? Jornalista (jvm@publico.pt)
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