por José Vítor Malheiros
Texto publicado no Público de 17 de Abril de 2001
Crónica x/2001
Algumas horas antes do início das mini-férias da Páscoa, onde se esperava a habitual carnificina rodoviária, o Governo veio apresentar um novo pacote de medidas de combate aos acidentes.
A razoabilidade das medidas propostas não está em causa. O que suscita alguma surpresa é o facto de o Governo e a Administração Pública continuarem a falar da sinistralidade como se se tratasse de algo que a simples produção de legislação pudesse controlar.
Ao ouvir os discursos sobre o tema, ficamos com a convicção de que se foram experimentando sucessivas políticas que tudo levava a crer que seriam eficazes, que elas foram falhando sucessivamente para nossa enorme surpresa e que somos obrigados a puxar pela imaginação, tentando abordagens legislativas originais, para ver se se acerta com a solução, que continua a fazer-se esquiva.
A falácia deste raciocínio é que, na realidade, as soluções não foram experimentadas. Tudo aquilo que compõe o Código da Estrada, com excepção da circulação pela direita, é ignorado pela generalidade dos automobilistas, com alegria e impunidade, e vai continuar a sê-lo.
Os automobilistas portugueses não vêem o Código da Estrada como um instrumento social que visa garantir a fluidez e a segurança do tráfego, mas como uma ferramenta legal para decidir quem paga quando se bate. O problema é que às vezes não se bate apenas mas também se mata.
A verdade é que as leis que regulam a circulação não são aplicadas, a não ser em períodos excepcionais de zelo como as tontas operações de "tolerância zero" — que não são senão caricaturas de medidas razoáveis. Não é uma multa por se exceder o limite de velocidade em 10 quilómetros à hora que leva um automobilista a sentir a necessidade de cumprir a lei. Pelo contrário.
Todos sabemos a razão da esmagadora maioria dos acidentes na estrada: excesso de velocidade, ultrapassagens irregulares, etc. É evidente que seria possível identificar os prevaricadores perigosos e aplicar a lei de forma dissuasora (já experimentaram colocar-se na faixa da esquerda de uma auto-estrada a 120 quilómetros à hora? Subir a Av. da República de Lisboa a 100 à hora e ver se conseguem ultrapassar alguém? Contar quantos carros passam com vermelho na Av. da Liberdade?), mas é claro que o Governo não o pretende fazer. E não o quer fazer porque sabe que isso seria visto como um ataque por aquela faixa do seu eleitorado para quem o carro é parte integrante da imagem do seu corpo — a imagem mais correcta é a de um implante peniano, o que também é válido para as mulheres.
A aplicação da lei não basta. A existência de transportes públicos que sejam uma alternativa possível e agradável ao transporte privado é essencial. Mas sem a vontade de afrontar aqueles que acham que têm um direito divino a ultrapassar pela direita, os mortos e os feridos vão continuar.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário