terça-feira, abril 03, 2001

O eterno ("handicap") feminino

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 3 de Abril de 2001
Crónica x/2001


As propostas de quotas mínimas para cada um dos sexos (leia-se para as mulheres) nas listas eleitorais e nos órgãos políticos vão ser votadas esta semana no Parlamento.
O facto das quotas para as mulheres constituírem uma medida de discriminação (positiva, mas discriminação), tem sido suficiente para que algumas vozes tenham criticado a medida por uma questão de princípio. Para estes críticos, a democracia deve ver todos os cidadãos como seres iguais em direitos e deveres, não permitindo e muito menos proporcionando tratamentos de favor seja a que grupos for.
De facto, porém, as situações de favorecimento de certos grupos sociais considerados à partida menos favorecidos sempre existiram. São medidas de discriminação positiva o estacionamento reservado aos deficientes motores, a prioridade nas bichas para as mulheres grávidas, o acesso à habitação proporcionado aos moradores de bairros degradados ou os princípios que facilitam o acesso das regiões mais pobres a certos financiamentos comunitários.
Nenhum destes princípios parece criticável porque se considera que eles pretendem corrigir uma injusta desigualdade existente à partida e proporcionar igualdade de oportunidades a indivíduos que, sem algum favorecimento, nunca ficariam nas mesmas circunstâncias que os restantes.
É evidente que se pode argumentar que a discriminação positiva atribui um estatuto de menoridade aos indivíduos cujo espaço pretende assegurar. Mas este é um risco que, na maior parte dos casos, compensa largamente os riscos da inacção: o crescimento da dualidade, numa bola de neve de discriminação social.
As medidas de discriminação positiva são aceitáveis quando se trata de corrigir um desequilíbrio provisório e apenas como medidas pontuais. Sem isso, acabarão inevitavelmente por ser vistas como injustas e por criar dois tipos de cidadãos, vários níveis de direitos. Um indivíduo nascido num bairro de lata não deve contar ao longo da vida com apoios especiais por esse facto (no acesso à escola, à habitação, ao emprego, ao crédito, à reforma) mas é razoável e desejável que, num dado momento, ele beneficie de um empurrão para lhe permitir ultrapassar esse "handicap" de partida.
É por isso que a questão das quotas parece longe de resolver o problema da falta de poder das mulheres. Se se oferecerem às mulheres lugares cativos no Parlamento apenas por serem mulheres, estaremos a dizer que o facto de ser mulher constituiu um “handicap”. E como é pouco provável que as mulheres deixem de o ser (ou seja, como o "handicap" é inultrapassável), um benefício deste tipo arrisca-se a ter de se eternizar sem jamais resolver a questão de fundo.
A única acção razoável consiste em identificar as razões que fazem com que as mulheres não possuam a proeminência social e política que pensamos que seria justa e atacar as raízes do mal. As propostas existem, só que nunca foram postas em prática.

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